A bondade combatente, por Pablo Neruda

Nestes tempos de midiotices e de intolerância egoísta,

nestes tempos de manifestações de fascismo explícito e de

ambições incontroladas.

Neste domingo tenebroso onde será festejado o enterro da democracia,
só me resta apelar, mais uma vez para Pablo Neruda. Passo-lhe a palavra.

Paulo Martins

Mas não tive a bondade morta nas ruas.

Rechacei o seu aqueduto purulento

e não toquei o seu mar contaminado.

Extraí o bem como um metal, cavando

além dos olhos que mordiam,

e entre as cicatrizes foi crescendo

meu coração nascido nas espadas.

Não saí desbocado, descarregando

terra ou punhal entre os homens.

Não era

meu ofício o da ferida ou o veneno.

Não sujeitei o inerme em ataduras

que lhe atravessassem chicotes gelados,

não fui à praça procurar inimigos

espreitando com a mão mascarada:

não fiz mais que crescer com as minhas raízes,

e o chão que estendeu o meu arvoredo

decifrou os vermes que jaziam.

Veio morder-me Segunda-feira e lhe dei algumas folhas

Veio insultar-me Terça-feira e fiquei dormindo.

Chegou logo Quarta-feira com dentes iracundos.

Eu a deixei passar construindo raízes.

E quando Quinta-feira veio com uma venenosa

lança negra de urtigas e de escamas

eu a esperei em meio à minha poesia

e em plena lua lhe parti um cacho de uva.

Venham aqui estrelar-se nesta espada.

Venham se desfazer em meus domínios.

Venham em amarelos regimentos,

ou na congregação dos sulfurosos.

Morderão sombra e sangue de sinos

sob as sete léguas do meu canto.

2 comentários em “A bondade combatente, por Pablo Neruda

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