Jornalistas, deuses ou ambos?, por Ulysses Ferraz

“Não há discurso nem ação que, para ter acesso ao debate público, não deva submeter-se a essa prova de seleção jornalística, isto é, a essa formidável censura que os jornalistas exercem, sem sequer saber disso, ao reter apenas o que é capaz de lhes interessar.” (Pierre Bourdieu)

No Brasil de hoje, alguns juízes julgam-se deuses. Igualmente, alguns jornalistas julgam-se juízes. Logo, alguns jornalistas julgam-se deuses. Fazem um jornalismo que mistura tecnocracia com teocracia. Julgam tudo e todos. Os textos são sentenças. Proposições categóricas. Atropelam dados e fatos. Suas análises distorcem doutrinas jurídicas e teorias econômicas. Usam as teses do direito que melhor lhes convêm, como se fossem as únicas possivelmente cabíveis. Por outro lado, são especialistas em fazer uso de teorias econômicas como se estas fossem parte de alguma ciência da natureza. Falam de economia como se tratassem de Física, Química ou Biologia. Argumentam como se houvesse uma única teoria válida. Discorrem sobre inflação e juros, como se falassem de forças gravitacionais.

Despacham dogmas e verdades absolutas a seu bel prazer. São frios, cínicos e pretensamente técnicos. Representam o melhor, ou o pior, do jornalismo tecnocrático brasileiro. Uma imprensa que se esconde em eufemismos e tecnicismos para servir aos interesses dos mais poderosos. Decidem e filtram o que julgam ser relevante para a sociedade por meio de suas pautas seletivas. Acreditam-se donos do mundo. Contudo, em sua aparente lógica irrepreensível, escondem-se em raciocínios circulares, cujas retóricas mais lembram os antigos sofistas das ágoras gregas. Um exemplo emblemático desse tipo de jornalismo é um texto recentemente publicado pela jornalista Míriam Leitão. Vejamos:

“A presidente Dilma foi infeliz na comparação histórica que fez entre Ricardo Pessoa, da UTC, e Joaquim Silvério dos Reis. O que o empreiteiro Ricardo Pessoa está entregando não é um movimento de independência do Brasil, como foi a heroica Inconfidência Mineira. Ele está delatando crimes contra o erário, saque da maior empresa do Brasil, desrespeito às leis eleitorais e, se o que diz for confirmado, estará prestando um serviço, por mais detestável que tenham sido seus atos passados como integrante do grupo que praticou esses crimes.”

De fato, Ricardo Pessoa não está entregando um movimento de independência do Brasil. Está, na verdade, participando de um programa de delação premiada no qual é um dos réus. Logo, é parte interessada. Seus interesses relacionam-se tanto à diminuição de sua culpa, quanto à redução de sua pena . Trata-se, portanto, não de uma prestação de serviço à sociedade, mas de um simples ato em causa própria. Ora, se nem a confissão é prova suficiente para uma condenação, já que possui o mesmo valor probatório dos demais meios de prova, menos ainda será a delação premiada, que é uma afirmação feita sobre supostos delitos de terceiros com intuito de reduzir a própria pena. A delação é uma confissão alheia, não uma prova cabal. Ao contrário, a delação precisa se valer de provas.

Também é preciso esclarecer que os crimes delatados por Ricardo Pessoa impactaram o caixa de uma sociedade de economia mista e não o erário público, como afirma a jornalista. A Petrobras não é o Tesouro Nacional. Trata-se de empresa de capital aberto, uma sociedade de economia mista, regida pelo direito privado. Embora a união federal detenha 28,7% do capital social da empresa e possua a maioria das ações com direito a voto, os lucros e prejuízos da Petrobras não impactam o Tesouro Nacional diretamente. Só impactam na medida em que a empresa também é contribuinte e paga impostos proporcionais aos seus resultados. Mas as baixas de Impairment que provocaram o prejuízo da empresa em 2014 são de natureza contábil e não afetaram o resultado tributável da empresa. As baixas a título de corrupção também não influenciaram o seu passivo tributário. Nem a distribuição de dividendos.

Ao contrário de desfalcar o erário público, em 2014 a Petrobras recolheu R$ 102 bilhões em impostos e contribuições. A contrapartida da empresa à sociedade pode ser muito bem evidenciada pela análise da Demonstração do Valor Adicionado (DVA), que é uma demonstração facultativa para as empresas de capital aberto. Analisando o DVA de 2014, a Petrobrás gerou um total de 146 bilhões de reais em valor adicionado. Deste total, R$ 19,8 bilhões foram distribuídos a título de salários e participação nos resultados dos empregados, contra R$ 18,7 em 2013. Outros R$ 31 bilhões foram distribuídos em benefícios e encargos sociais em 2014, contra R$ 25 bilhões em 2013. Estas informações estão disponíveis publicamente, mas não são divulgadas nos jornais porque não funcionam para sustentar argumentos cujo único propósito é manipular a opinião pública de acordo com interesses bem definidos.

Em seguida, a jornalista afirma:

“Dilma disse que “não respeita delator”. Mas a lei brasileira prevê o que está acontecendo neste momento: a colaboração à Justiça por parte dos envolvidos. Por isso, as informações prestadas por Paulo Roberto Costa, Alberto Youssef, Pedro Barusco e, agora, Ricardo Pessoa estão abrindo uma oportunidade para o Brasil corrigir erros, recuperar dinheiro desviado e prevenir crimes”.

É correto afirmar que a legislação brasileira prevê a colaboração à Justiça por parte dos envolvidos. No entanto, a Constituição Federal, base de todo o ordenamento jurídico brasileiro, também prevê, em seu art. 5º, LVII, “que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Os dispositivos constitucionais são lógica e hierarquicamente superiores aos procedimentos de delação premiada. As informações prestadas pelos envolvidos na delação premiada são apenas uma parte da condução de um processo legal que deverá ser concluído segundo os dispositivos previstos na Constituição Federal e no direito processual brasileiro.

Além disso, não são os delatores que estão abrindo uma oportunidade para o Brasil “corrigir erros, recuperar dinheiro desviado e prevenir crimes”. É a força e a independência das instituições brasileiras, investidas constitucionalmente de suas funções, por meio da Polícia Federal e do Ministério Público. São essas instituições que estão a abrir essa oportunidade, quando as denúncias forem comprovadas. Delatores são apenas um tipo de testemunha. São parte de um todo. Parte interessada, diga-se de passagem. Não se confundem com o resultado de uma investigação. Seus depoimentos, antes de verdades irrefutáveis, são apenas mais um dos elementos probatórios a serem confirmados ou rejeitados no curso de um devido processo legal.

Não obstante, uma parte significativa de nossa imprensa brasileira prefere julgar antecipadamente. Afinal, consideram-se juízes. Ou deuses. Quem sabe ambos. Criaturas com o poder da condenação social, que transcende qualquer condenação judicial. São seres capazes de julgar com frieza e eficácia. E se a história vier a contradizer suas sentenças prévias, essas criaturas divinas possuem a prerrogativa de sempre sair impunes. Haverá sempre a notícia do dia seguinte.
Postado por ulysses ferraz às 20:06

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