Já escrevi e postei o suficiente neste blog para mostrar com transparência e argumentos irretorquíveis que o circo que foi armado na Câmara dos Deputados e está sendo preparado no Senado é um golpe parlamentar, com sustentação na grande mídia coronelista e no Judiciário que veste camisa ideológica.
O fato de não ser um golpe tradicional a golpes de baioneta, com tiros de canhão ou de fuzis de assalto não tiram sua principal característica: foi tramado deste o seu nascimento no discurso do senador e candidato derrotado Aécio Neves no dia 04/11/2014, para tirar do poder um projeto para o país, vencedor nas urnas pelo voto direto, e colocar no seu lugar outro projeto, derrotado. Tudo sem legitimidade, interrompendo o fluxo normal da tênue democracia que havia sido implantada com a constituição de 1988.
O Paraguai serve como exemplo de que não faz a menor diferença se o golpe foi com violência e assassinato, como no caso da deposição de Salvador Allende no Chile ou com simples violência simbólica. A vaselina parlamentar não faz o golpe menos golpe, quando os seus efeitos práticos, teratológicos, estão bem visíveis.
Como já deixei claro em diversos artigos e publicações, não houve base legal para a instauração do processo de impeachment, que nasceu de uma chantagem do presidente da Câmara dos Deputados, Sr. Eduardo Cunha.
Em um dos meus grupos na rede social, um amigo postou a onomatopeia de um grupo de animais, começando pela galinha, que cacareja, e encerrando com a anta, que segundo ele, “diz que é golpe” e com o burro, “que confirma”. Acho que o compartilhamento deste tipo de ofensa denigre mais a imagem do ofensor do que a dos eventuais ofendidos.
No caso, eu não saberia como classificar o tradicional e respeitado jornalista Elio Gaspari que no título de seu artigo disse que “há golpe” mas, ao mesmo tempo, “aumentou o ponto para ajustá-lo à linha reta”, ou seja, conseguiu arranjar um jeito de dizer, ao mesmo tempo, que há e que não há golpe.
Quem acompanhou com atenção as sessões da Comissão Especial do Impeachment do Senado pôde verificar que não houve infringência às regras fiscais na edição dos quatro decretos de crédito suplementar e nos atrasos de pagamento do Plano Safra, que possam ser atribuídos diretamente à Sra. presidente da República.
Restou cabalmente provada a não existência de crime de responsabilidade. Sem crime de responsabilidade, sem culpa ou sem dolo, não há que falar em base legal para o impeachment. Prosseguindo o feito sem atenção às provas, está configurado o golpe.
O jornalista Elio Gaspari confunde-se em seu artigo publicado no jornal Folha de São Paulo quando afirma que “no caso dos três decretos assinados pela presidente, houve crime”. Ora, ele compra pelo preço de face, sem qualquer cuidado, o relatório de auditores do Senado que afirmaram não ter havido ato da presidente para praticar as chamadas pedaladas nem efeito sobre a meta fiscal de um dos decretos. Mas que nos três outros decretos teria havido, em tese, desrespeito à meta fiscal do “momento” de assinatura dos tais decretos.
Entramos, então, no território do imponderável, do quem sabe e do talvez: desde quando existem metas fiscais anuais de determinado “momento”? As metas fiscais são anuais, ponto. Se é legal, é razoável supor que o cumprimento ou não da meta será aferido mediante relatório detalhado, para o período de 12 meses completos. Como aferir metas momentâneas? Como governar um país tão complexo com as metas fiscais do minuto?
Mesmo que tivesse havido descumprimento momentâneo da meta fiscal na edição dos três decretos, ficou sobejamente comprovado nos autos do processo que não houve a configuração de crime, nem por omissão, nem por dolo.
Pisar na linha ao cobrar um lateral pode ser considerada uma infração das regras do jogo, mas estas mesmas regras não autorizam o juiz, por este motivo, a expulsar o jogador infrator dando-lhe cartão vermelho.
Se querem derrubar a presidente eleita e não querem enfiar na cabeça a carapuça de golpistas, que achem crimes de verdade, provem, apresentem um processo de impeachment sério e sigam o que dita a Constituição Federal. Fora disso, é golpe. Com vaselina e desfaçatez parlamentar, mas é.
Uma dúvida persiste: o meu amigo me chamou de ANTA ou de BURRO? Se eu puder escolher, prefiro que ele me julgue um BURRO. Combina mais com minha teimosia e decisão de nunca desistir de argumentar, mesmo sem chance de sucesso.
Paulo Martins
Abaixo compartilho o artigo do jornalista Elio Gaspari:
No sábado, dia 25, a senadora Rose de Freitas, líder do governo de Michel Temer no Senado, disse o seguinte: “Na minha tese, não teve esse negócio de pedalada, nada disso. O que teve foi um país paralisado, sem direção e sem base nenhuma para administrar.”
Na segunda-feira, dia 27, a perícia do corpo técnico do Senado informou que Dilma Rousseff não deixou suas digitais nas “pedaladas fiscais” que formam a espinha dorsal do processo de impeachment. Ela delinquiu ao assinar três decretos que descumpriam a meta fiscal vigente à época em que foram assinados. Juridicamente, é o que basta para que seja condenada por crime de responsabilidade. (Depois a meta foi alterada, mas essa é outra história.)
Paralisia, falta de rumo e incapacidade administrativa podem ser motivos para se desejar a deposição de um governo e milhões de pessoas foram para a rua pedindo isso, mas são insuficientes para instruir um processo de impedimento. Como diria o presidente Temer: não “está no livrinho”.
Se uma coisa tem o nome de julgamento, ela precisa guardar alguma semelhança com um julgamento, mesmo que a decisão venha a ser política.
Durante a ditadura, parlamentares perdiam seus mandatos em sessões durante as quais, em tese, era “ouvido” o Conselho de Segurança Nacional. Nelas, cada ministro votava. Ninguém foi absolvido, mas o conselho era “ouvido”. Tamanha teatralidade teve seu melhor momento quando o major-meirinho que lia o prontuário das vítimas anunciou:
– Simão da Cunha, mineiro, bacharel…
Foi interrompido pelo general Orlando Geisel, chefe do Estado Maior das Forças Armadas:
… Basta!
Bastou, e o major passou à próxima vítima.
Dilma Rousseff é ré num processo que respeita regras legais, mas se a convicção prévia dos senadores já está definida na “tese” da líder do governo, o que rola em Brasília não é um julgamento. É uma versão legal e ritualizada do “basta” de Orlando Geisel.
O constrangimento provocado pelo resultado da analise técnica das pedaladas aumenta quando se sabe que a maioria do atual governo na comissão de senadores passou a rolo compressor em cima do pedido de perícia, feito por José Eduardo Cardozo, advogado de Dilma. Ela só aconteceu porque Cardozo recorreu ao Supremo Tribunal Federal e o ministro Ricardo Lewandowski deu-lhe razão.
Desde o início do processo de impeachment estava entendido que a peça acusatória não viria com a artilharia do petrolão e de outros escândalos da presidente afastada. Haveria uma só bala, de prata, contábil. No caso dos três decretos assinados pela presidente, houve crime. Isso é o que basta para um impedimento, mas deve-se admitir que esse critério derrubaria todos os governantes, de Michel Temer a Tomé de Sousa.
Os partidários da presidente sustentam que o seu impedimento é um golpe. Não é, porque vem sendo obedecida a Constituição e todo o processo está sob a vigilância do Supremo Tribunal Federal.
Pelas características que adquiriu, o julgamento de Dilma Rousseff vai noutra direção. Não é um golpe à luz da lei, mas nele há um golpe no sentido vocabular. O verbete de golpe no dicionário Houaiss tem dezenas de definições, inclusive esta: “ato pelo qual a pessoa, utilizando-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos, estratagema, ardil, trama”.