Por Lenio Luiz Streck
Tempos interessantes estes em que vivemos: tempos em que o clamor social é capaz de afastar a densidade principiológica da Constituição que lhe dá sustentação. Tempos em que a “voz das ruas”, seja lá o que isso signifique, é capaz de dizer que, onde está escrito x, deve-se ler y.
Em países como nosso, uma visão de uma “realidade social” que vem para substituir a Constituição e sua força normativa é uma temeridade. Porque, quando a voz das ruas vale mais que a Carta Maior, viramos uma espécie de democracia plebiscitária. E essa democracia plebiscitária, por sua vez, acaba por validar um Judiciário plebiscitário.
Afinal… O que é isto — a voz das ruas? Quando um ministro do Supremo diz “Estou atendendo ao anseio popular”, “Temos de ouvir a voz das ruas”, eu estarei aqui para dizer “Alto lá! Como se afere isso? Como se determina e mede a voz das ruas? Tem uma pesquisa?”.
“A-há! Pegamos o professor Lenio”, alguém dirá. “Temos uma pesquisa.”
Bom, se a resposta for “sim, há uma pesquisa”, aí, paradoxalmente, o Judiciário não precisaria existir. A tese da voz das ruas torna o Judiciário autofágico. Porque se o anseio popular vale mais que a Constituição, caímos em um paradoxo: uma vez que podemos demonstrar o que pede o anseio popular, que vale mais que tudo, o Judiciário passa a ser dispensável.
Na verdade, nestes 30 anos da Constituição, ainda há um déficit considerável acerca do verdadeiro papel do rule of law. As faculdades de Direito colaboraram enormemente para que o ensino do Direito viesse a ser substituído por péssimas teorias políticas do poder. Resultado: na hora em que precisamos de resistência constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, em que soçobra(ra)m as garantias constitucionais.
Quando um magistrado diz que julga “conforme sua consciência” ou julga “conforme o justo” ou “primeiro decide e depois vai encontrar um fundamento” ou ainda “julga conforme os clamores da sociedade”, é porque está repetindo algo enraizado no imaginário jurídico. É o velho dualismo metodológico que volta. E, naturalmente, um comportamento que se naturaliza leva muitos anos para “desnaturalizar”. Transforma-se em dogmática, eliminando o tempo e as coisas (cronofobia e factumfobia). E o que ocorre é que não queremos admitir que ideologizamos — para usar uma palavra suave — a aplicação da lei no país.
A comunidade jurídica está em insolvência epistêmica. Fracassamos, porque não conseguimos contrapor ao dualismo uma coisa minimamente óbvia, obviamente mínima: Constituição é remédio contra a maioria. Um Supremo Tribunal não pode atender à “voz das ruas”, porque, entre o clamor das ruas e da Constituição, vale o ronco da Constituição. Ora, nenhuma democracia no mundo se fortaleceu com questões sazonais.
Resumindo: se for verdade que o Judiciário (em especial, o STF) deve ouvir a voz das ruas e até existir pesquisa indicando isso, temos a seguinte questão: se a tese é boa, é ruim. Por uma simples razão: se a voz das ruas pode ser mensurada e deve ser levada em conta, já não precisa(re)mos do Judiciário. E a Constituição se torna desnecessária.
Via Dalva Olliver