Texo do cientista político Luis Felipe Miguel:
“Breve ensaio de bolsominiongrafia
Tem muita gente boa estudando o bolsonarismo. Não eu, que sou só um diletante. Mas vou dar meu pitaco nessa discussão, sem querer competir com quem domina o metier – que é, sabemos, um pouco ciência, um pouco arte, um pouco exorcismo.
Com o declínio do PSDB, o ex-capitão angariou a simpatia de largas fatias do empresariado. Alguns, como o notório dono das lojas Havan, estavam há tempos buscando um fascista para chamar de seu. Muitos outros simplesmente entendem que é Bolsonaro quem pode cumprir aquele que é, no momento, o programa político da burguesia no Brasil: destruição de direitos e paulada na classe trabalhadora.
Esse é um voto, por assim dizer, “esclarecido”. Claro que o mergulho no autoritarismo explícito sempre é temerário (sem trocadilho) e pode levar a consequências não antecipadas, mas esse pessoal tem uma ideia do que está comprando e acha que compensa os riscos. Trata-se de um sintoma de como a nossa classe dominante se sentiu ameaçada com o pequeno avanço que os mais pobres conseguiram nos governos do PT.
O outro eleitor do Bozo é o “cidadão de bem” da classe média. Esse também se sente ameaçado com a possibilidade de maior igualdade social; retira seu amor próprio da possibilidade de olhar para baixo e ver a distância que o separa da base da pirâmide. Grupo mais vulnerável à influência da mídia jornalística, como sempre demonstraram as pesquisas de sociologia da comunicação, a classe média adotou o antipetismo como seu credo. E dele para o fascismo foi um passo.
O reacionarismo do ex-capitão reforça a sensação de que as hierarquias sociais de gênero e de raça não serão desafiadas, o que é um alívio para o “cidadão de bem” (embora seja irreal, claro, porque não há como voltar para uma situação de passividade diante das opressões). Reforça as defesas que o impedem de ver a si mesmo como trabalhador. E ele também se anima com o nacionalismo de fachada, aquele que pensa em camiseta amarela, hino na escola e brados de “Brasil acima de todos”, mas se lixa para petróleo ou indústria aeronáutica.
Chamar esse voto de “esclarecido” seria forçar a barra. Mas se trata de um voto destinado a proteger as próprias ilusões.
Esses dois grupos não dão nem pro começo dos 28% de votos que, dizem as pesquisas, o ex-capitão vai amealhar nas eleições. Bozo ganha entre os mais ricos, mas os mais ricos são uma fatia ínfima da população. A maior parte dos votos dele vem de pobres – cerca de dois terços de seus eleitores têm renda familiar de cinco salários mínimos ou menos. Na verdade, no Brasil os que podem se dar ao luxo de contar só com a votação dos ricos são os candidatos à diretoria do Country Club.
Há, portanto, um grande contingente de bolsonarianos pobres – e esses, é possível arriscar, se alinham contra seus interesses objetivos. Serão as vítimas preferenciais de todo o programa do ex-capitão: desproteção social, redução do Estado, liberação plena da truculência policial, fim das políticas de combate aos preconceitos. São vulneráveis à falsa segurança dos “valores” e hierarquias fixos e inamovíveis, ao machismo discursivo que o Bozo encarna, às soluções primárias baseadas na violência, à compensação perversa do exercício da violência sobre outros ainda mais frágeis do que eles.
É comum ver, na esquerda, uma autocrítica por nossa incapacidade de dialogar com essas pessoas. Acho necessário encarar essa crítica em duas frentes diferentes. Por um lado, reconheçamos: é mesmo impossível dialogar com um bolsomínion convicto. Falo por experiência própria. Há uma couraça de negação, uma impermeabilidade a qualquer evidência, uma impugnação à lógica elementar, uma recusa inexpugnável à introdução de qualquer dissonância cognitiva.
Não importa o que você diga, a resposta será sempre algo entre “Lula é presidiário” e “sua mãe é peluda”. Não existe uma fresta por onde possa entrar uma troca argumentativa. É de levar à apostasia até o habermasiano mais entusiástico.
Mas, por outro lado, é preciso entender que esse tipo de mentalidade se afirma no vácuo deixado pela ausência do discurso de esquerda em muitos dos espaços populares. Não o discurso para ganhar votos, mas para ganhar mentalidades. Falta disputar o senso comum, apresentar sem meias palavras valores societários radicalmente novos, fazer a crítica permanente das opressões cotidianas. Quanto mais a direita mostra os dentes, mais nos sentimos constrangidos a defender um status quo que nunca foi nosso. Como se o projeto da democracia limitada e da economia de mercado tenuamente regulada fosse o nosso – e eles, fundamentalistas religiosos e fundamentalistas de mercado, encarnassem a rebeldia.
Para impedir a vitória do fascismo nas eleições, o caminho é esclarecer os indecisos, os ainda pouco convencidos. Mas para varrer o fascismo da sociedade é preciso demarcar com radicalidade o espaço de um projeto verdadeiramente emancipatório.”