Nesse estado de distração e anestesia coletiva em que temos vivido, o fuzilamento do músico Evaldo Rosa dos Santos, dentro de um carro alvejado dezenas de vezes por militares do exército quando ia com a família a um chá de bebê em Guadalupe, no Rio, é um grito insuportável. Não fosse o vídeo com as vozes desesperadas, não fosse o olhar das testemunhas, não fosse o depoimento doloroso de sua esposa relatando a reação debochada dos soldados diante de seu pedido de socorro, é provável que a morte de Evaldo desaparecesse ainda mais rápido das manchetes – onde, aliás, já mal se fala nele – e que a primeira nota emitida pelo comando de Exército, alegando, de modo ultrajante e cruel, que os soldados teriam apenas reagido a uma “injusta agressão”, se tornasse a versão oficial e definitiva desse assassinato.
O tom de fatalidade, quase destituído de comoção, que domina a cobertura da imprensa a respeito desse crime deixa claro que há certas premissas, na narrativa legitimadora da ordem, que não devem ser questionadas. Os militares afirmam ter atirado por “engano” contra Evaldo, confundido com assaltantes que teriam cometido um roubo na região. A “justificativa” do engano só pode ser evocada como válida porque existe o pressuposto de que qualquer homem negro tem “perfil suspeito”. O fuzilamento sumário do carro onde Evaldo estava mostra bem que o princípio de presunção de inocência, elemento básico do estado de direito, não vale para um homem de perfil suspeito. O argumento de que os militares atiraram contra ele porque o confundiram com um assaltante demonstra que, a despeito das leis que integram o estado de direito, ladrão se mata com tiro.
Há, entretanto, uma premissa mais sólida, incessantemente reiterada, jamais posta em questão: a de que o Rio de Janeiro vive em estado de guerra. O estado de guerra não apenas suprime a ideia de estado de direito – e as garantias que o definem -, mas transforma todas as vítimas inocentes da violência estatal em “danos colaterais”, em “baixas civis”. As autoridades lamentam, às vezes se retratam, os noticiários consentem com alguns segundos de choro e indignação dos familiares (depois, é claro, de terem apurado exaustivamente os antecedentes das vítimas), mas a guerra não pode parar. Guerra? Que guerra? Há por acaso dois exércitos com poder de fogo, capacidade logística e de organização equiparáveis? Há por acaso dois exércitos? O que significaria “ganhar” essa guerra?
O Brasil é violento porque é profundamente desigual. Nenhuma sociedade profundamente desigual se mantém enquanto tal sem um sistema violento de dominação que imponha sua “normalidade”. A “paz” entre cidadãos profundamente desiguais é uma trégua precária e intermitente, sob a qual segue operando, sem cessar, o estado da guerra. Manter a narrativa da “guerra” é importante porque é ela que legitima o funcionamento do sistema de violência ostensiva e seletiva que promove a reprodução das desigualdades profundas que caracterizam o estado de normalidade de nossa ordem política; é essa narrativa que autoriza o assassinato de inocentes de perfil suspeito em nome da segurança dos cidadãos de bem, porque, para estes, numa sociedade profundamente desigual, todos os homens pobres e negros são potencialmente perigosos.
Em tempos de relativa estabilidade econômica e institucional, essa “segurança” é feita, com a violência de sempre, pelo aparato policial ordinário; em tempos de crise econômica e instabilidade política, o exército é chamado. De um ponto de vista legal, está claro que envolver as forças armadas em operações de segurança interna é desviá-las de sua função legal e expor a sociedade ao risco de ver se repetirem tragédias como a que ocorreu ontem em Guadalupe. De um ponto de vista político, não parece, entretanto, inusual que um exército de mentalidade colonialista e doutrinado para garantir a lei e a ordem contra os “inimigos internos” seja mobilizado para patrulhar as ruas de um bairro pobre onde uma população de “perfil suspeito” vive em estado de liberdade vigiada. Oitenta tiros de fuzil contra o corpo de um homem negro em Guadalupe, cento e dezessete fuzis na mansão de um miliciano na Barra da Tijuca: as fronteiras mais vigiadas do país são as que separam a zona norte e a zona sul.