A nomeação da “namoradinha do Brasil” para o cargo de secretária da cultura só vem confirmar a suspeita de que a novela estatal que se desenrola no país poderia se chamar: “A volta dos que não foram”. Afinal, se formos minimamente honestos, lembraremos que o epíteto mais correto para ela é infelizmente: a “namoradinha do Brasil da ditadura”.
A atriz se criou e brilhou naquelas telenovelas dos anos 1960/70 que nos fizeram crescer, sonhar e fingir que o país vivia num paraíso, quando na verdade vivíamos num paraíso fajuto, de caserna. Censores, torturadores, assassinos perseguiam jovens idealistas rotulados de “subversivos” e “terroristas”. Crimes hediondos eram cometidos diariamente pelo governo militar empossado graças ao Golpe de 1964.
Sei disso porque pertenço à primeira geração de crianças crescidas diante da TV. Com o medo imposto pelo regime militar, a censura à imprensa e o boicote a qualquer arte reflexiva, o que me restava era ver desenhos animados com heróis japoneses na hora do almoço e telenovelas alienantes na hora do jantar.
A TV, que apenas começava no Brasil, era praticamente estatal em termos de ideologia. Havia até censor militar trabalhando dentro da rede Globo, exercendo uma censura que interferia não só no conteúdo dos telejornais, mas no comportamento moral e sexual dos personagens das novelas (soube disso numa série de matérias publicadas no próprio jornal O Globo em 2014).
Acho que só virei CDF na infância porque estudar era o que havia de intelectualmente desafiador para uma menina inserida num regime totalitário que controlava até – e sobretudo – o pensamento. Era um tipo insidioso de repressão, que forjava e limitava o cotidiano: o que se podia estudar, o que se podia ler, o que se podia escutar, o que se podia dizer.
Típica “filha da ditadura”, só pude tirar o atraso da minha formação política, cultural, intelectual quando entrei na adolescência, que coincidiu com a abertura política dos anos 1980. Só então entendi que grande parte da sociedade brasileira havia aceitado sem luta, caladinha, a barbárie do governo militar, a maioria até contente com os efeitos do “milagre econômico” que a mantinha próspera e segura em sua bolha.
O que se criou nesse período foi uma população amedrontada e alienada, que evitava se politizar, ou ler, ou se informar. E aqueles que se politizavam, liam e partiam para a militância, defendendo nossa dignidade e integridade, eram minoria. Por isso, aliás, foram vencidos.
Demorei a perceber que cresci assim, em meio a um medo que não era meu, sem consciência dele, mas no fundo sabendo que esteve sempre ali, ao lado, em torno, dentro da minha casa, na política que nunca era assunto de conversa. E escrevi o romance “Rio-Paris-Rio” só para falar de toda essa violência muda, que foi certamente mais sutil, menos brutal do que a tortura ou o assassinato de militantes, é óbvio, mas foi de uma brutalidade silenciosa, insidiosa e igualmente criminosa, por impedir uma, duas, três gerações do acesso à politização, à informação, à liberdade de expressão.
Não por acaso o fascismo da ditadura civil militar no Brasil dos anos 1960-70 volta agora e se “moderniza” em ideias neofascistas. Dói ver a “namoradinha do Brasil da ditadura” e integrantes de todas as gerações que passaram por esse horror (a minha principalmente) nostálgicos de um período escabroso da sociedade brasileira.
E esse é o efeito perverso da censura na formação do indivíduo. O silêncio corrosivo imposto pelo regime ditatorial inibiu nosso saber-poder político e nos atrasou demais na conscientização de ideias básicas como: o que é liberdade, o que é igualdade social, o que é direito humano – ou, simplesmente, o que é humano.
Se o autoritarismo agora retorna, disposto a interferir em todas as esferas da vida pública e privada, sendo tão bem aceito por grande parte da população, é porque talvez nunca tenha ido.
Ter a atriz-símbolo desse período à frente da Cultura, ela que representa um dos mais medíocres gêneros culturais do país, é a pá de cal em qualquer possibilidade de pensamento e liberdade de expressão por meio da literatura e da arte.
Assim como na ditadura dos anos 1960-70, professores, artistas e intelectuais são os primeiros expulsos da ágora. O neofascismo, bem como o fascismo original, é feito de gente tacanha, violenta e com uma visão “moral” autoritária de como deve se comportar uma sociedade. Um autoritarismo que está sempre a um passo do totalitarismo.
O neofascismo é tsunami. Salve-se quem puder.
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