POR UMA REVOLUÇÃO DO CORAÇÃO, por Ulysses Ferraz

POR UMA REVOLUÇÃO DO CORAÇÃO
Em um mundo regido preponderantemente pelas forças de mercado, os arautos da ideologia neoliberal querem nos convencer de que já nascemos com os nossos objetivos delimitados. E querem nos persuadir de que esse mundo é o único mundo possível. Um mundo em que nossos fins já estão determinados, antes mesmo de nascermos. Nesse mundo, que de certa forma aceitamos e ajudamos a criar, gerações após gerações, só nos resta competir para vencer o jogo dos mercados. Toda nossa energia é canalizada para os meios, para os processos, para os mecanismos, para as técnicas de obtenção de resultados previamente estabelecidos.

Mundo da eficiência, não importa qual seja o fim. Vencer na vida, chegar lá, ter sucesso é, em última instância, sinônimo de sermos consumidores de alto poder aquisitivo. Liberdade para consumir. Poder de compra é o grande troféu. Essa escolha antecipada e socialmente determinada nos faz competir sem trégua por um objetivo que não escolhemos, mas que internalizamos, aceitamos e passamos a acreditar como sendo parte da natureza humana.

A competição se torna expressão humana naturalizada, “biologicamente” determinada, parte da “essência” mesma de sermos humanos. Acreditamos e aceitamos essa naturalização de nossas crenças mais essenciais. E nos lançamos à competição mais violenta. A competição como modo de vida. Cotidiana, banalizada, metódica. Daí tanto ódio, tanta violência, porque competir é sempre deixar o outro para trás. Nessa lógica, perdemos todos, até quando cremos vencer.

Por isso odiamos, por isso somos violentos, por isso vivemos na intolerância, na indignação. Com o outro, sempre o outro, nosso competidor direto e muitas vezes indeterminado, impessoal. Talvez se nós buscássemos nos apropriar de nossos objetivos, de nossos fins, deslocando a energia imensa hoje apenas aplicada aos meios, e vivêssemos norteados pelo que nosso coração realmente deseja, pelo que realmente nos toca, nos move e comove, talvez fizéssemos a verdadeira revolução.

Talvez construíssemos um outro mundo. Mundo em que a revolução seja usar as forças coletivas e institucionais como meios, como instrumentos para realizar os fins de um mundo mais justo, mais equilibrado, mais livre, mais diversificado, mais igualitário, mais humano. E mais cooperativo.

Uma revolução do coração, em que a razão, ao contrário de inexistir e se opor ao coração, seria sua fiel aliada e utilizada como instrumento de iluminação para vivermos a vida que realmente vale a pena ser vivida. Uma revolução do coração, em que meios racionais deixassem de ser usados para fins irracionais.

Em tempos de pandemia e isolamento social, quando nossa viabilidade enquanto espécie depende cada vez mais da nossa capacidade de cooperação e ajuda mútua, o mundo como temos vivido até agora, individualista, economicista, consumista e ultracompetitivo, já não faz mais sentido. Se é que já fez algum dia.

Muito ajuda quem não atrapalha

Muito ajuda quem não atrapalha
(Sérgio Sérvulo da Cunha)

Você é microempresário, e, devido à quarentena decretada pelo governo, está sem qualquer receita. Por isso está justamente preocupado: como pagar as suas contas? Ao fechar as portas do seu negócio, o governo não disse como é possível fazer isso, nem colocou, ao seu alcance, meios para fazer isso.
A quarentena a que você está obedecendo – no interesse seu e de todos – foi decretada pelos governos municipal e estadual, que não têm competência legal para fazer o que o governo federal deveria ter feito, e não fez: decretar, junto com a quarentena, a moratória dos débitos.
Por isso, não se desespere: a moratória virá, se não em decorrência da lei, imposta pelos fatos.
Cuide, em primeiro lugar, da sua vida e das suas necessidades básicas; se você tem recursos disponíveis, preserve-os para o essencial; e se você estiver capitalizado, busque pagar suas contas aos credores que estão em situação pior do que você. Preocupe-se com sua clientela e com seus funcionários. Nas relações trabalhistas e negociais, evite criar conflitos, e litígios que serão julgados, no futuro, segundo velhos princípios, e não segundo regras transitórias, feitas de afogadilho.
Fechamos portas, abramos corações: há desempregados, e trabalhadores informais que precisam ser assistidos, mediante parcerias municipais de que participem indústrias e empresas de alimentação, para distribuição de cestas básicas. Há trabalhadores autônomos e avulsos a quem o governo deve, com urgência, medidas que para ele não passam, praticamente, de uma penada.
Essa crise veio mostrar para o governo o que ele não, mas a maioria das pessoas já sabia: que estamos todos no mesmo barco; a sociedade não é feita de duas camadas de pessoas: a elite, de um lado, e a ralé, de outro. O governo não é feito para favorecer os que têm, em detrimento dos que não têm. Essa é uma concepção de sociedade, e de governo, pertencente ao passado.
Muitos, é verdade, continuam se comportando assim. Por exemplo: a concessionária de transporte que diminuiu o número das suas balsas, aglomerando seus passageiros em menor número de viagens. Mas muitos, e muitos, estão se comportando de modo diferente. Por exemplo: profissionais da saúde, lutando bravamente nas primeiras trincheiras; aquele funcionário de concessionária de eletricidade que se recusou a cortar a luz de uma família em quarentena.
Continuemos a demonstrar, por todos os modos, a nossa solidariedade. São muitas as virtudes, que a competição ordinária costumava ocultar, e que aparecem agora. Tendo essa crise aberto nossos olhos, fixemos alguns objetivos inarredáveis para depois dela:
Nós, da Baixada Santista, precisamos nos unir para aprovar algum dos projetos de lei, em curso no Congresso, estabelecendo benefícios tributários em favor dos municípios portuários; sem isso será impossível recuperar depois da crise a nossa economia regional, fragilizada pela recessão, abatida pela globalização dos serviços de transporte marítimo.
Outra coisa: impossível continuar com esses índices de desigualdade: precisamos aprovar uma renda mínima para todo e qualquer brasileiro, o que, do ponto de vista econômico, é perfeitamente possível. Segundo Ladislau Dowbor, “o desafio não é a falta de recursos; o que hoje produzimos é amplamente suficiente para uma vida digna e confortável para todos. No mundo se produz anualmente 85 trilhões de bens e serviços por ano, o que, razoavelmente distribuído, asseguraria 15 mil reais por mês por família de quatro pessoas. E o Brasil está precisamente nesta média mundial.” Aliás, se você está em casa, sem fazer nada, essa é uma excelente ocupação: veja o que estão fazendo com a economia brasileira, assistindo os videos de Dowbor na internet.

“Tutto Andrà Benne?”

Por Nina Paduani
Eu quase não tenho dormido. Longe de mim me queixar, sei dos meus privilégios. Vivo numa casa confortável, com minha família que amo, tenho um emprego, um salário. E agora também tenho a companhia do Davide, que depois de curado está aqui. Mas tenho um trabalho de cuidar, e não deixo de me preocupar. Já se passaram três semanas de confinamento, e, na previsão mais otimista, terão mais três. O desconforto psicológico na solidão das casas me tira o sono. E também a solidão dos profissionais de saúde que trabalham na linha de frente, isolados de suas famílias, lutando pela vida num cenário de guerra, devastação, morte. O desamparo, a impotência, o medo. E também os enlutados. Mais de dez mil mortos, são algumas dezenas de milhares de enlutados tendo de elaborar sua perda sem o corpo de um pai, de uma mãe, de um irmão, de um filho. Sem o direito a realizar um enterro digno, se despedir, sem cumprir os ritos daquilo que nos torna humanos. Como será isso? O que acontecerá na psique? É um país inteiro chorando a perda dos seus.

Eu não gosto desse “tutto andrà bene”. Quer dizer, acho válido para crianças. Mas como discurso entre adultos, não. Porque, como podemos ver, as coisas estão andando mal. Negar parece-me obstinar com uma resposta que reitera o otimismo, a produção de conteúdo, a saturação do trauma. É querer seguir a cartilha do capitalismo, que, convenhamos, é desumana. As coisas andam mal e parece-me importante fazer algo desse “mal”, questionar tudo o que nos trouxe aqui, e não substituir os corpos e os abraços por uma hiperconexão para fazer de conta que. Não vai nada bem e talvez devamos ficar. Parar, estacionar, deixar doer, desistir, cair. E tentar um ritmo diferente, um passo novo.

Mas se os acontecimentos daqui me tiram o sono e entristecem, os do Brasil me destroem. Porque a epidemia na China foi detectada quando já estava disseminada. Não havia, ainda, a noção de como o vírus se disseminaria. Nem se imaginava a velocidade do contágio. As pessoas lembravam do H1N1, em que alguns cuidados bastaram para controlá-lo. “Limpe as mãos, não dê abraços e beijos e isso basta”, todos pensavam. Os erros da Itália, a demora na decretação da quarentena, a gente pode entender, porque era algo novo. Mas ver o governo brasileiro deliberadamente tentando levar o país ao colapso na saúde, matando centenas de milhares de pessoas, com o apoio de seus fiéis seguidores, acaba comigo. O exemplo está aqui, o mundo inteiro viu os nossos erros. Não decretar a quarentena e matar milhares de pessoas não será um trágico erro, como foi aqui na Itália, mas sim uma escolha. Uma escolha de um governo que é baseado no ódio, voltado para a destruição. O governo bolsonaro é a pulsão de morte institucionalizada.

Ou o Brasil acaba com o Bolsonaro, ou o Bolsonaro acaba com o Brasil.

E por falar em amor ao próximo …

Post publicado em um site infestado por Bolsominions, uma pessoa que se diz “nem de esquerda, nem de direita” ( imagino que ser de direita é pouco para ela) diz que as pessoas que estão nas ruas precisam estar e que não podem ser criticadas. Alega que o motivo das críticas é a falta de empatia e de amor ao próximo. Procurei as postagens dessa pessoa e dos seus amigos e foi detectado apoio cego e acrítico a tudo que vem de Bolsonaro. A minha resposta, que serve para todos, sejam negacionistas, inocentes úteis ou culpados inúteis, compartilho a seguir:

Nem todos que estão na rua trabalham em funções essenciais, infelizmente. Tenho visto muita gente na rua, sem necessidade. Especialmente após cada bravata ou fala desastrada do presidente. Idosos jogando carta em praças, carros de luxo fazendo carreatas, grupos de homens em porta de botequim bebendo cerveja e conversando, ônibus mais cheios do que poderiam ou deveriam (falta um escalonamento inteligente dos horários de trabalho), comércios não essenciais abertos clandestinamente à meia-porta. Bolsonaro estimula a ida das pessoas para a rua. Domingo, por exemplo, ele saiu de sua residência presidencial e foi para bairros de periferia de Brasília estimular o desrespeito às medidas de mitigação da tragédia do coronavírus.

Bolsonaro fez, desde o início da crise, tudo para negar a sua gravidade e não tomou as medidas necessárias, no campo econômico e no campo da saúde pública, para preservar vidas e evitar o desespero trazido pela falta de renda.

Quase 12 milhões de pessoas estão sem emprego no Brasil desde a inauguração do governo Bolsonaro em 01 de janeiro de 2020. Guedes e Bolsonaro escolheram adotar uma política econômica que implica em manter a economia em coma induzido e em hiportemia, para combater uma febre (inflação) que já estava baixa desde Meireles/Temer.

Manter as pessoas desempregadas, a taxa de juros SELIC baixa e a economia em semi-recessão são as únicas medidas que economistas neoliberais sabem receitar. Qualquer que seja o paciente, qualquer que sejam as doenças que atacam o tecido econômico, estes economistas receitam sempre estes mesmos remédios. Assim, quando chegou ao Brasil o vírus Corona pegou o país em semi-recessão, com desemprego estrutural altíssimo e desigualdade social e econômica grande e crescente.

O trabalho em condições precárias, sem proteção, sem carteira assinada, intermitente ou por conta própria foi o novo normal implantado e incentivado pela criminosa reforma da CLT e pelo modelo econômico de Guedes/ Bolsonaro. Explodiu o número de pessoas que trabalhavam por conta própria, ou seja, ambulantes que não podiam adoecer e que tinham que estar na rua garimpando uns caraminguás dia após dia. Quem podia agarrou-se ao Uber. Quem não podia, pedalava as bicicletas do Itaú para entregas de comida e farmácia rua acima. A quantidade de pessoas jogadas na rua, sem eira e nem beira crescia assustadoramente nas principais metrópoles do país.

Ora, em ambiente tão precário e desigual, ao observar o impacto do vírus sobre as atividades econômicas e a vida das pessoas, o governo deveria, como primeira e urgente medida, ter adotado um programa de renda mínima amplo, visando proteger todas as pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica.

Diziam não haver dinheiro e não fizeram nada. Agora que a Câmara dos Deputados tomou a iniciativa e aprovou um programa emergencial de renda para alguns setores mais vulneráveis, o DINHEIRO, QUE ESTAVA ESCONDIDO, VAI APARECER.

Como vai aparecer? Contrário ao que ocorre com famílias, um país que emite sua própria moeda pode e deve, em situação de guerra ou de tragédia econômica e social terminal, criar moeda.

Amor ao próximo pode ser condição necessária, mas não é suficiente. Só amor não salva vidas. Precisamos da imediata distribuição coordenada de cestas básicas, da instituição e pagamento urgente de uma renda mínima a todos os necessitados, da ação coordenada e ativa dos governos nos três níveis e, amor ao próximo, que ninguém vai sair dessa sozinho.

Paulo Martins

Destaque

O SÉCULO XXI PEDE PASSAGEM

O SÉCULO XXI PEDE PASSAGEM
Adhemar Bahadian
Informo o passamento do século XX, os cem anos mais amargos da modernidade. Como ainda está estrebuchando, seria mais certo dizer cento e vinte anos, porque até hoje chegam as pragas que periodicamente o infestaram.
Em 1914, nossos avós viveram a primeira guerra mundial. Em 1944, nossos pais morreram nas terras da Europa. Em 1964, sobrevivemos a uma ditadura militar. A partir dos anos 70, nos intoxicamos com o alucinógeno do neoliberalismo e em 1991 nos embebedamos em homenagem ao fim da história pela fantasia de uma globalidade dividida por profunda desigualdade social.
Agora, quando a história parece repetir-se e desaba sobre nós uma variante ainda mais malévola que a gripe espanhola, carro fúnebre do morticínio da primeira guerra, teremos a oportunidade de nos recriarmos? A história não se repete, os erros humanos é que se multiplicam, quase sempre em torno de nossa incapacidade de construirmos um mundo melhor.
Este coronavirus, queiramos ou não, nos transformará. Não há economia que dele sairá imune. Não há ideologia política que depois dele nos fará reconstruir um mundo carcomido por falácias e desfigurado por uma profunda injustiça entre países e, dentro deles, entre irmãos de sangue. Só o mais obtuso dos seres deixará de perceber que esta virulência do coronavirus nada mais é do que a metáfora de nossa vida dita humana, em que nos entre-devoramos tangidos pelas piores pulsões de nossos instintos e que, por isto mesmo, chamamos pulsão de morte.
Se hoje nos assusta o ataque sub-reptício de um vírus, nos deveriam apavorar as barbaridades dos poderosos deste mundo e suas máquinas de guerra ou de empobrecimento.
Tanto na primeira guerra quanto na segunda tivemos estadistas que nos propuseram mundo mais solidário. Mas tanto as ideias de Wilson e a Liga das Nações quanto o projeto de Roosevelt e as Nações Unidas já nasceram, a primeira, debaixo da insensatez da Paz de Versailles- berço sangrento de Hitler- e a segunda no rastro de fogo e horror de Nagasaqui e Hiroshima.
Terminada a guerra e desmantelados os sistemas coloniais, iniciamos uma corrida armamentista que abarrotou de ouro cofres públicos e privados e o imperialismo econômico substituiu com honras o pacto colonial.
Tivemos o desplante de culpar os escravos por sua condição abjeta. Fomos intolerantes a cor de pele, a religiões que não adoravam os nossos deuses e bestialmente erigimos altares em que se exibem os ricos e se ajoelham os pobres. Criamos a sociedade da intolerância e demos a ela o simpático disfarce de sociedade da abundância. Inscrevemos em moeda falsária, a sacrílega admoestação de que “in God we trust”.
A partir dos anos 60, abatemos a tiros líderes e mergulhamos em guerras que muito antes de nos vencerem talharam em nossos cânticos “de um mundo livre” a marca de ferro em brasa da hipocrisia.
E em 2008 desnudamos nossas mais deslavadas mentiras e apropriamos hipotecas de gente honrada em nome da cobiça e do canibalismo financeiro. Enterramos poupanças em areia movediça e transformamos sonhos em ilusões amargas antes de perdidas. E de tudo fizemos um caldo de cultura cozinhado no ódio e na mais absoluta indiferença à sorte de milhões de irmãos espalhados pelos quatro continentes e, pelos quatro, rejeitados ou expulsos. Jogamos literalmente milhares de irmãos aos ventos e às marés.
Fizemos da cena política um picadeiro. Elegemos, por ignorância ou míseras ideologias, estadistas de papelão, mágicos de oz das terras do faz de conta e nos alegramos com os coliseus modernos em que a violência se confunde com o entretenimento e desta espúria combinação surgem os grandes líderes que nos apontam os caminhos das guerras, da cobiça e do desrespeito.
Nossas cidades se tornaram armadilhas ardilosas e imensos covis. Andamos por elas como se atravessássemos zonas desmilitarizadas ou campos minados em que a cada movimento suspeito pode surgir o aço da lâmina ou o fogo da bala. Perdida ou não.
Voltamos às cavernas e nos olhamos uns aos outros com o olhar da suspeita e da desconfiança. Passiva e bovinamente acatamos os conselhos desavisados de nossos líderes a nos sugerirem comprar armas de grosso calibre e andarmos armados de destemida arrogância.
Somos vítimas de uma combinação canhestra em que a ignorância se associa à ideologia e aprofunda a pobreza e o desnível social, sempre a nos enganar com um canto de sereia marcial.
Nesta hora em que nosso eleito desrespeita cotidianamente a vida e o futuro de nosso povo, agarrado como craca nos cascos de um navio a pique, mais do que revolta, surge nos homens de bem uma profunda vergonha de termos compactuado com a mentira e a ideologia.
Hoje, parte da sociedade brasileira é vítima de sua própria cegueira. De mãos dadas com seu carrasco-redentor caminha impotente para sua hora final. Docilmente, apesar de alertada pelo próprio carrasco de que sua salvação depende apenas de sua determinação em salvar-se.
Talvez nossa efetiva sobrevivência comece no dia em que levarmos a sério esta frase que lhe escapou das pequenas e ainda não cerradas frestas de sanidade.
Tomemos o destino em nossas mãos. E enfrentemos o século XXI com a humildade que ele nos impõe e com a coragem que a vida nos exige.

Brasil vai pedir US$ 100 bilhões ao Banco Mundial para combater “gripezinha”

Documento do governo cita cubanos e isolamento para pedir empréstimo em pandemia

Luiz Fernando Toledo Da CNN, em São Paulo
25 de Março de 2020 às 18:33


Dois documentos internos do governo federal, um da Secretaria de Assuntos Econômicos Internacionais, vinculada ao Ministério da Economia, e outro do Ministério da Saúde, mostram grande preocupação do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com os impactos que a pandemia do novo coronavírus terão para o país se ações emergenciais não forem tomadas para evitar que a doença se espalhe ainda mais.

“Os atrasos entre o início da epidemia e a implementação de medidas de controle são onerosos”, escrevem os técnicos em um documento finalizado na tarde desta terça-feira, 24, a que a CNN teve acesso. Eles citam o caso do último surto de ebola para exemplificar o impacto que uma epidemia pode ter e destacam que “a mitigação a epidemia continua sendo a única opção política.” Afirmam ainda que “atrasos na detecção e controle são, em última análise, muito caros, porque os custos de contágio e mitigação crescem exponencialmente”.

O relatório foi gerado às 18h46, menos de duas horas antes do discurso do presidente em rede nacional, quando voltou a chamar o coronavírus de “gripezinha” e criticou medidas de quarentena adotadas por governadores como em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Segundo o documento, os custos adicionais do COVID-19 para o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ultrapassar R$ 410 bilhões. “Apenas os custos com internações em unidades de terapia intensiva (UTI), para o cenário de uma taxa de infecção populacional de 10%, seria de R$ 9,31 bilhões. A estimativa de gastos no cenário de 10% é semelhante ao montante anunciado pelo governo federal para o combate à pandemia, de 9,5 bilhões de reais”, destaca o texto, que não explica a origem do valor total dos custos adicionais, que é mais do que todo o orçamento do Ministério da Saúde para 2019 (R$ 147,43 bilhões, segundo o Portal da Transparência).

O relatório produzido embasa uma carta-consulta, documento usado para pedir empréstimos. O governo federal solicitou US$ 100 milhões ao Banco Mundial para o enfrentamento da pandemia, que seriam disponibilizados até abril de 2020. Procurado, o Banco Mundial confirmou a solicitação, mas disse que mais detalhes deveriam ser esclarecidos pelos ministérios.

O objetivo principal do empréstimo, segundo a carta, é aumentar a capacidade de diagnóstico do país, com monitoramento diário para acompanhar a evolução dos casos, bem como no apoio aos estados.

No início de março, o Banco Mundial anunciou um pacote de US$ 12 bilhões para apoiar os países a lidar com ações de combate e prevenção ao coronavírus. O objetivo é combater e prevenir as consequências da pandemia, inclusive econômicas e sociais. O projeto prevê ações que seriam implementadas ao longo de 12 meses.

Entre os componentes prometidos pelos brasileiros para uso dos recursos está a compra de kits de testes moleculares e rápidos para detecção do COVID-19, contratação de atendimento pré-clínico, à distância, para fazer triagem de pacientes com sintomas e contratação de profissionais de saúde em caráter emergencial.

O projeto prevê como fonte de financiamento o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), com a modalidade de empréstimo Programa de Investimento, em que os recursos só podem ser usados em despesas específicas.

A implementação do processo será por conta da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde, com apoio de outras secretarias da pasta. O órgão preparou uma série de slides, a que a reportagem teve acesso, em que apresenta o chamado Programa Emergencial de Apoio ao Enfrentamento da Pandemia de Coronavírus (COVID-19).

No documento, o órgão federal defende, entre outras ações, medidas como o isolamento, a quarentena e “diversas medidas de adoção compulsória”. Prevê ainda a testagem de 1,53 milhões de pessoas sintomáticas. Também é citado, como forma de provimento de médicos, um“edital CRM e cubanos”, sem detalhes, com “oferecimento de remuneração atrativa”.

O documento prevê ainda alguns riscos para a medida, como o de prazos (fornecedores não conseguiriam atender à alta demanda em tempo hábil), escassez de insumos (alta demanda global), preços (aumento considerável de preços por causa da demanda), escassez de pessoal qualificado e de especialistas.

Há ainda a preocupação com a desaceleração da economia mundial e no Brasil. O relatório cita dados do Banco Mundial de que a pandemia pode resultar em desaceleração do PIB global de 4,8%. Já no Brasil, cita que “a queda acumulada do Ibovespa, até o dia 18 de março de 2020, era de 42%, contra 41,22% durante a crise de 2008.”

Em nota, o Ministério da Economia confirmou o pedido de empréstimo, mas disse que o texto do documento é de competência técnica e autoria do Ministério da Saúde. “Não temos posicionamento em relação ao tema”, diz a pasta. A CNN pediu nota ao Ministério da Saúde, que ainda não deu retorno. O espaço segue aberto para manifestação.

MMT

Do economista David Deccache

Nos últimos dias, explicita ou implicitamente, vários economistas, da ortodoxia à heterodoxia, passaram a assumir os pontos mais óbvios da Teoria Monetária Moderna.

No fim do ano passado, André Lara Resende já havia aceitado a fragilidade da teoria econômica ortodoxa frente ao poder explicativo da MMT. É bom destacar que ele foi um estudioso da teoria ortodoxa por quatro décadas.

Lembro como as pessoas se assustavam quando o pequeno grupo de economistas que defendiam a MMT no Brasil diziam que não havia NENHUMA restrição financeira para países monetariamente soberanos. Causava espanto quando dizíamos que tributos não financiam os gastos públicos e que emissão de títulos não eram empréstimos destinados a financiar o governo.

As pessoas, e aqui incluo os economistas, se espantavam quando nós falávamos que o governo gasta simplesmente criando dinheiro … do nada!

Caso curioso foi quando uma jornalista, analfabeta econômica da Revista Época, zombou do economista José Luis Fevereiro em 2018 durante a campanha eleitoral. O motivo? Fevereiro disse o óbvio: não há hipótese alguma de ocorrer crise fiscal para países que emitem a própria moeda. Algo que André Lara Resende e muitos outros falam com a maior naturalidade o mundo atualmente.

Enfim, a crise e a dor ensinaram , na marra, aos economistas e especialistas no assunto, que o Estado cria dinheiro do nada.

Para alguns a ficha ainda não caiu, mas a pergunta “de onde virá o dinheiro para financiar isso ou aquilo?” é de uma estupidez sem precedentes. Este tipo de pergunta se faz para um pai de família, não para uma nação que emite a própria moeda.

Quando alguém te perguntar de onde virá os bilhões que o Brasil precisa para salvar a vida de milhões de pessoas, responda com outra pergunta: de onde está vindo os trilhões de dólares que os EUA, União Europeia ou a China gastaram para minimizar os impactos da crise? Aumento de receitas tributárias? Empréstimos do setor privado (perceba a falta de lógica desta questão)?

Olavo de Carvalho declarou em 22/03/2020

“Não houve nenhuma morte pelo Coronavírus. Isto é manipulação da mídia”.

Este senhor tem milhares de seguidores. A grande maioria dos seus seguidores acredita cegamente no que ele fala. Quantas mortes poderemos atribuir a este senhor irresponsável?

Ciente que o vídeo ultrapassou a sua bolha de idiotas, o covarde apagou. Mas a prova está aqui.

Fonte: Istoé

Complemento: o Blog da Cidadania publicou:

O Youtube tirou do ar um vídeo em que o guru bolsonarista Olavo de Carvalho colocava em dúvida a existência da pandemia do novo coronavírus no mundo. Até o momento, a doença já contaminou mais de 1.500 pessoas no Brasil e matou 25. No mundo, mais de 350 mil pessoas foram contaminadas, e mais de 15 mil morreram, segundo dados da universidade norte-americana Johns Hopkins.

A plataforma entendeu que o conteúdo publicado feria as diretrizes da comunidade. Em sua lista de regras, o Youtube afirma que, em seu esforço para contribuir no combate ao coronavírus, fará “a remoção rápida de vídeos que violem nossas políticas assim que eles forem sinalizados. Isso inclui o conteúdo que incentiva as pessoas a não procurarem tratamento médico ou que afirmem que substâncias nocivas podem ser benéficas à saúde.”

“É essencial encontrar conteúdo de confiança neste momento. Por isso, continuaremos garantindo que o YouTube ofereça informações precisas aos usuários”, diz a lista de diretrizes do Youtube. Em nota ao Painel sobre o caso, a assessoria de imprensa do Youtube disse que não comenta casos particulares.

Em debate por meio de vídeo com três alunos membros de um site conservador, Olavo de Carvalho duvidava da existência da pandemia.

“O número de mortes dessa suposta epidemia não aumentou em nem um único caso o número de mortos por gripe no mundo. É o mesmo que dizer que essa endemia simplesmente não existe. Na verdade, não tem um único caso confirmado de morte por coronavírus. Para confirmar, você precisaria fazer o exame de cada órgão do falecido. Onde fizeram isso? Nunca fizeram nenhum”, diz Olavo.

“É a mais vasta manipulação de opinião pública que já existiu na história humana. Parece coisa de ficção científica”, completa. No vídeo, ele argumenta que a crise parte de uma estratégia de manipulação de informação articulada por China e Rússia.

PANDEMIA DA IMBECILIDADE – FSP22/03

PANDEMIA DA IMBECILIDADE – FSP22/03

Em que momento ficou decretado que o burro do fundão tinha mais autoridade do que a professora?

Em que momento, exatamente, decidimos globalmente que ser legal não era legal? Em que ano, que mês, que dia, ficou decretado que o burro do fundão que bota tachinha na cadeira da professora tinha mais autoridade do que a professora? Que mecanismo esdrúxulo da psicologia social nos fez (e faz) crer que a busca pela paz, pelo respeito, pela tolerância, pela preservação do meio ambiente e contra a desigualdade são frescuras de gente fraca ou um complô comunista para destruir a sociedade?

Pois são estas distorções mentais que a ascensão de Trump, Bolsonaro, Orbán, Erdogan, Salvini e tantos outros ogros coroa, muito mais do que uma onda da direita. Bolsonaro foi eleito repetindo vez após outra que seu ídolo era o torturador Brilhante Ustra. Não Margaret Thatcher. Não Ronald Reagan. Não os economistas Mises ou Hayek.

Ustra. Um açougueiro que levou crianças de cinco anos para verem os pais destruídos após uma sessão de tortura. (O menino não reconheceu a própria mãe, desfigurada). Bolsonaro dedicou o voto do impeachment de Dilma ao torturador e declarou no programa Roda Viva que seu livro de cabeceira era a biografia do carrasco. Admiradores de ditaduras costumam mentir para esconder a selvageria. Bolsonaro, não: parece ter uma fixação justamente pelas sevícias. Fez da ação humana mais abjeta a sua bandeira —e foi eleito.

Como toleramos tamanha excrescência? Admitir que uma pessoa que aplaude torturadores seja nosso presidente porque fará reformas econômicas necessárias é como levar os filhos num pediatra sabidamente pedófilo porque é um médico competente. “Abusou do meu filho? Sim, abusou, é o jeitão dele, mas a febre, ó, baixou que é uma beleza!”.

A maior crise que enfrentamos, globalmente, não é a pandemia de coronavírus e nem a recessão mundial que ela provavelmente trará, ambas passarão: é uma crise de valores. Valores estes que os próprios ostrogodos que nos desgovernam fingem defender. O sujeito que repete como um papagaio “Brasil acima de tudo” incentiva manifestações no meio de uma pandemia e mesmo estando em quarentena, sai do palácio e dá a mão para centenas de aduladores. Coloca em risco, assim, a vida de milhares de brasileiros. O mesmo sujeito que repete como um autômato “Deus acima de todos” rasga os evangelhos toda vez que abre a boca ou faz arminha com a mão.

Escrevi na última crônica que a quarentena, turbinada pelas redes sociais e suas fake news, iria mandar o mundo de vez para a cucuia. Depois de dez dias em casa, porém, a sensação tem sido outra. É cedo pra fazer qualquer previsão, as notícias mudam a cada hora e ninguém sabe o que nos aguarda, mas existe uma chance de ouro de que este circuit breaker global faça com que paremos de correr como ratinhos numa roda de egoísmo e imbecilidade e nos dediquemos a alguma reflexão.

Precisamos repensar profundamente a sociedade. Não falo aqui da idade mínima para aposentadoria de tal ou tal categoria ou das alíquotas de imposto de renda desta ou daquela faixa de remuneração. Tais discussões são importantes, é claro, mas antes delas temos que recriar uma linha entre o que é tolerável e o que é intolerável. Antes dos marcos regulatórios, temos que estabelecer os marcos civilizatórios.

Por tudo que nos ameaça, 2020 pode entrar para a história como o pior ano das nossas vidas. O que significa que, depois dele, as coisas devem melhorar. Não se trata de otimismo, mas de instinto de sobrevivência. Se não trocarmos o ódio e a violência pela esperança e pelo amor, já, a humanidade não chega até a esquina. Tá ok?

Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

Carta Aberta de Professores do Instituto de Economia da UFRJ: Impacto Econômico da Covid-19 e Medidas de Combate à Crise Econômica

Carta Aberta de Professores do Instituto de Economia da UFRJ: Impacto Econômico da Covid-19 e Medidas de Combate à Crise Econômica
O mundo está enfrentando uma grave crise econômica provocada pelo avanço da pandemia da Covid-19. Instituições internacionais (FMI, OCDE, UNCTAD, etc.) e economistas renomados estão projetando significativa desaceleração do crescimento mundial, no melhor dos cenários, ou uma recessão global em 2020, em cenários menos otimistas.
As medidas implementadas de isolamento e/ou quarentena para impedir o avanço do vírus nos países mais afetados provocaram a interrupção das atividades normais das pessoas, desmobilizando recursos. Isso impactou negativamente a produção, o consumo corrente e os investimentos. Portanto, a gravidade dos efeitos econômicos da Covid-19 deve-se à sua capacidade de gerar, ao mesmo tempo, choques negativos na oferta e na demanda agregada mundial. Ademais, há uma enorme pressão sobre os recursos (físicos e humanos) na área de saúde com o aumento dos casos de pessoas infectadas, sobretudo no pico da epidemia, o que requer uma espécie de economia de guerra nesse segmento.
Em virtude disso, muitos governos estão adotando medidas para: i) garantir que não haja desabastecimento de bens e insumos básicos, por meio do monitoramento das cadeias de distribuição (transportes e o comércio atacadista e varejista) e, quando necessário, de eventuais intervenções em setores produtores e importações emergenciais; e ii) estimular a economia por meio de políticas monetária, fiscal e creditícia.
A economia brasileira será profundamente afetada por essa conjuntura crítica decorrente do avanço na Covid-19 no país, o que é agravado pela nossa situação prévia de baixo dinamismo e incapacidade para recuperar os níveis de produção anteriores à recessão de 2015-16.
Nesse quadro, que já era preocupante antes de a pandemia se instalar, a resposta do governo brasileiro para enfrentar a crise econômica (plano divulgado no dia 16/03/2020) gera ainda maior preocupação ao não propor nenhum recurso novo, apenas antecipação de recursos ou diferimento de pagamentos. Ademais, o ministro da Economia mantém o discurso de que a melhor resposta para combater a crise econômica seria a aprovação das reformas administrativa e tributária.
As reformas já aprovadas (Emenda Constitucional 95/2016 do “Teto dos gastos”, reformas trabalhista e previdenciária) não foram capazes de proporcionar a retomada do crescimento econômico e, em alguns casos, ampliaram as vulnerabilidades para enfrentar os desafios atuais das crises de saúde e econômica provocadas pela Covid-19.
A EC 95/2016, por exemplo, alterou o cálculo do mínimo constitucional na área de saúde que implicou uma redução de mais de R$ 20 bilhões nos recursos federais que deveriam ter sido utilizados para saúde pública desde 2018. Ademais, somada a um resultado primário rígido, essa emenda constitucional impede a execução de políticas fiscais anticíclicas que permitem, durante a crise, manter o fluxo de renda da população, por meio de instrumentos de transferência de renda e da ampliação de investimentos.
Diante desse quadro, a economia brasileira deverá mergulhar numa recessão em 2020, provocando a ampliação do número de desempregados e da população em situação de extrema pobreza. Segundo estimativas realizadas por Warwick McKibbin & Roshen Fernando (ver The Global Macroeconomic Impacts of COVID-19: Seven Scenarios, CAMA Working Paper, Australian National University, 2020), a economia brasileira deverá perder, em 2020, dois pontos percentuais de crescimento, num cenário mais favorável, e até oito pontos percentuais num cenário mais desfavorável.
A recessão está contratada e pode ter a gravidade de uma depressão caso não sejam utilizados todos os instrumentos disponíveis de política econômica, sobretudo os fiscais, para combater a crise. Em uma economia sob efeito da Covid-19, haverá um esgotamento da capacidade instalada e escassez da mão de obra no setor saúde, combinados a desemprego e falta de produtos e insumos nos outros setores. Nesse contexto, a necessidade de priorizar os objetivos imediatos do país – a luta contra a pandemia e a contenção dos seus efeitos sobre a atividade econômica – em detrimento do equilíbrio fiscal de curto prazo não é uma questão ideológica.
As medidas econômicas anunciadas pelo governo brasileiro são paliativas: suficientes apenas para impedir a ruptura do sistema de crédito sem conseguir estimular a economia, pois o aumento da liquidez deverá ficar empoçado no sistema financeiro. Entretanto, a política de gastos governamentais deveria assumir papel central na reativação econômica e na economia de guerra na área da saúde. Para tanto, são necessários gastos adicionais ao previsto no orçamento para a infraestrutura de combate à doença e coordenação do governo central em virtude da baixa capacidade fiscal dos estados e munícipios.
Pelas razões apontadas, professores do Instituto de Economia, abaixo assinados, consideram ser sua obrigação expressar publicamente sua profunda preocupação com a lenta reação das autoridades econômicas ante a gravidade da crise. Nessa situação, defendemos que o governo e o Congresso brasileiro adotem os seguintes pontos para combater a crise:
1) Ampliação dos benefícios e de programas de transferência de renda para famílias, de trabalhadores formais e informais que perderem ou tiverem sua capacidade de geração de renda diminuída pela crise, em especial para as famílias afetadas pela pandemia com filhos em idade escolar, garantindo que estes possam permanecer junto aos pais.
2) Eliminação da fila do Bolsa Família e reajuste do benefício.
3) Recomposição da verba de saúde em relação aos mínimos constitucionais definidos antes da EC 95/2016 e garantia de recurso extra para ampliação de testes, de leitos e aquisição de equipamentos para emergência.
4) Recomposição das verbas para Ciência e Tecnologia, especialmente para áreas capazes de enfrentar a pandemia, de forma a garantir nossa capacidade de desenvolver medicamentos e vacinas.
5) Alteração das demais regras fiscais vigentes, além do Superávit Primário, como a Regra de Ouro e a suspensão do Teto de Gastos, de forma a se criar um espaço legal para a necessária política de expansão dos gastos públicos.
6) Suspensão de multa, juros e penalização sobre pagamento atrasado de contas dos serviços de utilidade pública.
7) Ajuda fiscal aos estados e municípios, seja por meio de transferências do governo federal, seja pela renegociação de dívida, de forma a permitir aos entes subnacionais elevar seus gastos para fazer frente à emergência médica e seus impactos sociais mais imediatos.
8) Política de expansão de crédito e alongamento de dívidas utilizando os bancos públicos, para socorrer empresas e famílias mais afetadas pela pandemia.

Rio de Janeiro, 17 de março de 2020

1 Adilson de Oliveira
2 Alexandre Laino de Freitas
3 Alexis Nicolas Saludjian
4 Almir Pita
5 Ana Celia Castro
6 Ana Cristina Reif De Paula
7 Andre de Melo Modenesi
8 Angela Ganem
9 Ary Vieira Barradas
10 Bernado Karam
11 Caetano Christophe Rosado Penna
12 Camila Cabral Pires Alves
13 Carlos Aguiar de Medeiros
14 Carlos Eduardo Frickmann Young
15 Carlos Frederico Leão Rocha
16 Carlos Pinkusfeld Bastos
17 Celia de Andrade Lessa Kerstenetzky
18 Daniel de Pinho Barreiros
19 Denise Gentil
20 Edson Peterli Guimarães
21 Eduardo Costa Pinto
22 Eduardo Figueiredo Bastian
23 Ernani Torres
24 Esther Dweck
25 Fabio de Silos Sá Earp
26 Fabio Neves Perácio de Freitas
27 Fernando Carlos Greenhalgh de Cerqueira Lima
28 Galeno Tinoco Ferraz Filho
29 Gustavo Daou Lucas
30 Helder Queiroz Pinto Junior
31 Helena Lastres
32 Isabela Nogueira de Morais
33 Italo Pedrosa Gomes Martins
34 Jaques Kerstenetzky
35 Joao Carlos Ferraz
36 João Felipe Cury Marinho Matias
37 Joao Luiz Maurity Saboia
38 João Luiz Simas Pereira de Souza Pondé
39 Joao Sicsu
40 José Eduardo Cassiolato
41 José Luís Fiori
42 Julia Paranhos de Macedo Pinto
43 Kaio Glauber Vital da Costa
44 Lena Lavinas
45 Leonarda Musumeci
46 Lia Hasenclever
47 Luis Fernando Rodrigues de Paula
48 Luiz Carlos Delorme Prado
49 Luiz Martins de Mello
50 Marcelo Colomer Ferraro
51 Marcelo Gerson Pessoa de Matos
52 Margarita Silvia Olivera
53 Maria da Conceição Tavares
54 Maria Isabel Busato
55 Maria Mello de Malta
56 Maria Silvia Possas
57 Maria Tereza Leopardi Mello
58 Marília Bassetti Marcato
59 Marina Honorio de Souza Szapiro
60 Marta Calmon Lemme
61 Marta dos Reis Castilho
62 Nicholas Miller Trebat
63 Norberto Montani Martins
64 Numa Mazat
65 Paulo Tigre
66 Raphael Padula
67 Renata Lebre Rovere
68 Rene Carvalho
69 Ricardo Alberto Bielschowsky
70 Ricardo de Figueiredo Summa
71 Rodrigo Vergnhanini
72 Rolando Garciga Otero
73 Ronaldo Bicalho
74 Victor Prochnik
75 Wilson Vieira

Como evitar a depressão econômica? Monica de Bolle

Embora eu, pretensioso, discorde de muita coisa que a economista Monica de Bolle escreve, compartilho seu artigo publicado hoje no jornal O Estado de São Paulo. Serve como contraponto à inação do governo federal – leia-se Paulo Guedes e Bolsonaro – que acham que se não falarmos em recessão da economia brasileira, ela não vem.

Bolsonaro repreendeu o ministro da Saúde, Mandetta, por estar falando demais na catástrofe que será o coronavírus no Brasil se não tomarmos medidas importantes e radicais neste momento. Bolsonaro e Guedes estão seguindo a linha de não tomar as medidas radicais necessárias para diminuir os estragos que o coronavírus trará para a saúde dos brasileiros, para não “atrapalhar o crescimento econômico e a recuperação da economia brasileira”. O mundo econômico derretendo e a pandemia se espalhando, e os dois, Guedes e Bolsonaro, fingindo que acreditam em crescimento econômico hoje e agora. Agora é hora de unir todos os esforços para barrar a progressão da epidemia no Brasil e do Estado usar sua capacidade de indutor de desenvolvimento para, investindo, diminuir a profundidade do poço que vamos cair. Até porque, nenhum investidor estrangeiro que tem amor ao seu capital vai querer investir em uma economia devastada, com um povo – para eles, mão-de-obra ou consumidor – empobrecido e doente. Leia as sugestões da economista Mônica de Bolle.

Paulo Martins

Como evitar a depressão econômica?

Embora o governo brasileiro esteja muito longe de reconhecer a gravidade do momento, há os que começam a pensar no que fazer

Monica de Bolle, O Estado de S. Paulo 18 de março de 2020 | 04h00

Acompanho as análises nos jornais brasileiros sobre a ruptura inédita causada pela pandemia e me causa angústia a falta de urgência. Não me refiro apenas à irresponsabilidade atroz do presidente da República, que põe em risco a vida das pessoas, mas também ao fato de que poucos no Brasil se deram conta do que é essa crise. Trata-se de uma parada súbita da economia mundial como jamais vimos. E, ao que tudo indica, não será uma parada súbita de curta duração, como a observada após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, ou como aquela proveniente da crise financeira de 2008. Não se trata apenas da incerteza atrelada à epidemia, mas das medidas de saúde pública que estão sendo tomadas mundo afora. Para desacelerar a propagação do vírus, fronteiras, escolas, universidades, bares, restaurantes, escritórios estão sendo fechados. Alguns países impuseram toques de recolher. As companhias aéreas já sofrem o baque do isolamento e do distanciamento social. A economia mundial sente os primeiros efeitos da parada súbita.

A crise será de longa duração. Para desacelerar a progressão da epidemia e “achatar a curva”, como o esforço pela desaceleração ficou conhecido, as medidas inéditas estarão conosco por vários meses. Uma vez alcançado o pico da epidemia, serão mais vários meses de semiparalisia até que seja seguro começar a abandonar as medidas excepcionais de saúde pública. Será um recomeço gradual. A não ser que tenhamos rapidamente uma vacina – o que hoje não parece provável – estamos falando, possivelmente, de mais de um ano de parada quase total do mundo. Para 2020, o quadro de retração global é certo. Registraremos, pela primeira vez em muitas décadas, uma queda do PIB global. É por esse motivo que países começaram a adotar políticas extraordinárias para atenuar os efeitos da crise. Em tempos de calamidade inédita e risco de depressão, metas fiscais e a evolução da dívida tornam-se absolutamente irrelevantes. Não se compara o desajuste fiscal proveniente do que é necessário agora ao quadro de depressão que se instaurará se as medidas forem insuficientes ou se governos forem contaminados pela inação. A inação mata.

Embora o governo brasileiro esteja muito longe de reconhecer a gravidade do momento – as medidas recém-anunciadas por Paulo Guedes são insuficientes – há os que começam a pensar no que fazer. Há mais de uma semana tenho defendido o que considero necessário para enfrentar a crise de longa duração a abater em breve o Brasil, que entra nela a partir de uma situação econômica muito frágil. São elas: suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; a instituição de uma renda básica universal mensal no valor de R$ 500 para os 36 milhões do Cadastro Único que não recebem Bolsa Família – esses são os grupos mais vulneráveis; a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de aumentar esse montante; acelerar e dar maior flexibilidade à aprovação do seguro-desemprego; disponibilizar recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas e médias empresas. Por fim, recomendo um programa de investimento público em infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES.

As medidas de caráter imediato – saúde, proteção social e setorial – somam cerca de R$ 310 bilhões ao longo de 12 meses, ou uns 4% do PIB. Isso é metade dos cerca de 8% do PIB que gastávamos com os juros altos de 14% há poucos anos. Embora seja um montante considerável, o mais arriscado nesse momento não é o que vai acontecer com o déficit ou com a razão dívida/PIB – até porque não há investidor no mundo, hoje, preocupado com a sustentabilidade das contas públicas. Para viabilizar o que proponho, precisamos da imediata flexibilização da meta fiscal e da suspensão do teto de gastos por um período de dois anos. Deixo claro que o teto é importante para sustentabilidade fiscal de longo prazo – mas, o momento é de calamidade.

É claro que, se a situação melhorar, se uma vacina for encontrada, se os cientistas encontrarem um tratamento eficaz para a síndrome respiratória aguda que se manifesta nos casos mais graves da doença, os montantes que sugiro poderão ser reduzidos. Mas, na situação em que estamos é melhor errar para mais do que para menos. Errar para menos significa pôr em risco a vida de dezenas de milhões de pessoas. Manter o pensamento encaixotado, hoje, é fatal.

  • ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

A arte

“Não, Raul Seixas não teve uma visão ao compor “O Dia em que a Terra Parou”. Saramago não “previu por acaso” uma pandemia em Ensaio Sobre a Cegueira.
Jean Yves-Ferri e Didier Conrad não fizeram o quadrinho do Asterix enfrentando o vilão Coronavírus em 2017 por um golpe de sorte, ou George Orwell quando escreveu 1984, ou Aldous Huxley com seu Admirável Mundo Novo, ou Mark Homan e Greg Kotis com Urinal, o Musical, ou Bong Joon-Ho com Parasita e assim vai.
Não é mera coincidência.
É justamente isso que a arte faz. Lê a sociedade e a desvenda de modo que ela nos seja revelada não apenas pelo nosso pensamento, mas através dos nossos sentimentos.
A arte está dizendo há muito tempo que nosso modelo de vida não é sustentável e que não tardaria para que a sociedade neoliberal, individualista, medicalizada, incapaz de lidar com frustrações, sobrecarregada de trabalho e precarizando as relações trabalhistas, terceirizando o cuidado com os filhos, com pouca ou nenhuma preocupação com o meio ambiente, enfim, para que essa sociedade entrasse em colapso.
Há tempos que a arte nos diz: parem de ser infantis e achar que bandido bom é bandido morto porque nossas mãos se sujam de sangue cada vez que ignoramos o sofrimento do outro para que tenhamos nossos privilégios.
Nós somos os bandidos.
Parem de achar que o mundo se divide em mocinhos e ladrões, princesas e vilões, as relações humanas são muito mais complexas, trazem conflitos, dilemas, nuances e não podem ser traduzidas apenas em poucas palavras.
É preciso que haja, sim, muita coisa escrita nos livros e é preciso que existam cada vez mais livros, mais quadros, mais filmes, mais peças, mais música, mas ao invés de manter olhos e ouvidos abertos, a sociedade marginalizou e combateu os artistas, essa gente chata que fica nos dizendo o que não queremos ouvir e nos mostra o que não queremos ver.
Essa gente cheia de mimimi, mamando na Lei Rouanet dizendo o tempo todo que não podemos nos fechar em nós mesmos e temos que aprender a viver como coletividade.
Essa gente mostra que não há possibilidade de sobrevivência se alguns ficam extremamente felizes enquanto outros são massacrados, que cada vez que um de nós tem muito mais do que suas várias gerações futuras poderiam precisar, é porque alguém não tem o necessário para viver, e que não podemos cuidar só dos “nossos” e o resto que se vire, porque todos são “os nossos”.
Artistas, esse povo que fica chorando por verba pública porque diz que arte (e não mero entretenimento), assim como ciência, não podem ficar sujeitas a regras de mercado e que esse tal mercado não pode ser o regulador da sociedade porque não há possibilidade de economia forte sem justiça social.
A arte está nos alertando desde muito tempo que nossa moral foi flexibilizada a ponto de aceitarmos como líderes, pessoas que defendem tortura ou que prendem criança em gaiola somente porque prometem mais dinheiro e nós acreditamos, maldosamente ingênuos, perversamente cegos, que esse dinheiro vai chegar a quem precisa.
Arte e ciência mostram que se a consciência do todo não for acordada, treinada, exercitada, não teremos chance enquanto espécie neste planeta.
Se não houver paz para todos, não haverá para ninguém.
Agora parece que as pessoas começam a ver que a distância entre eu e a operária de fábrica da China que faz meu tênis em troca de um salário de fome, pode ser apenas a de um microrganismo. Prestem atenção na arte, ela é incômoda, chata, como tudo o que tem ligação estreita com a realidade.
Arte dói, liberdade dá trabalho, consciência é um incômodo constante, pensamento nos deixa em crise, democracia precisa ser cuidada.
São remédios amargos, mas são os únicos que podem nos salvar.” Não sei a autoria, se alguém souber me diz aqui pra o devido crédito.

Compartilhado do Facebook de João Lopes

Destaque

A essência do neoliberalismo, por Pierre Bourdieu

A essência do neoliberalismo, por Pierre Bourdieu.
12/03/202
Os economistas têm suficientes interesses específicos para contribuir decisivamente para a produção e reprodução da crença na utopia neoliberal. Apartados do mundo econômico e social efetivo, participam e colaboram para o desmantelamento das instituições e dos coletivos, mesmo se algumas de suas consequências lhes causem horror

Por Pierre Bourdieu*

Seria o mundo econômico, verdadeiramente, tal como insiste o discurso dominante, uma ordem pura e perfeita, dispondo implacavelmente a lógica de suas consequências previsíveis e prestes a reprimir todos os seus desvios com sanções que inflige, seja de maneira automática, seja – com maior exceção – pelo intermédio de seus braços armados, o FMI ou a OCDE, e das políticas que eles impõem: diminuição do custo da força de trabalho, redução das despesas públicas e flexibilização do trabalho? E se, na verdade, não se tratasse apenas da colocação em prática de uma utopia, o neoliberalismo, assim convertido em “programa político”, mas uma utopia que, com a ajuda de sua teoria econômica, passa a pensar a si mesma como a descrição científica do real?

Esta teoria tutelar é uma obra de pura ficção matemática, fundada, desde o princípio, numa formidável abstração: essa que, em nome de uma concepção tão estreita como estrita da racionalidade identificada à racionalidade individual, consiste em pôr entre parêntesis as condições econômicas e sociais das disposições racionais e das estruturas econômicas e sociais que são a condição de seu exercício.

Para compreender o tamanho desta omissão, basta pensar no sistema de ensino, que nunca é considerado enquanto tal num momento em que possui um papel determinante na produção de bens e serviços, assim como na produção dos produtores. Deste pecado original, inscrito no mito walrasiano[i] da “teoria pura”, brotam todas as falhas e deficiências da disciplina econômica, e a fatal obstinação com a qual ela se apega à oposição arbitrária, que ela mesma faz existir, por sua própria existência, entre a lógica propriamente econômica, fundada na concorrência e portadora da eficiência, e a lógica social, submetida à regra da igualdade.

Dito isso, essa “teoria” originalmente dessocializada e deshistoricizada tem, hoje mais do que nunca, os meios de se fazer verdadeira, empiricamente verificável. Na verdade, o discurso neoliberal não é um discurso como os outros. À maneira do discurso psiquiátrico nos asilos, segundo Erving Goffman[ii], trata-se de um “discurso forte”, que só é tão forte e difícil de combater justamente porque tem a seu favor todas as forças de um mundo de relações de força que ele mesmo contribui para produzir enquanto tal, especialmente ao orientar as decisões econômicas daqueles que dominam as relações econômicas e, assim, somar sua força própria, propriamente simbólica, a estas relações de força. Em nome deste programa científico de conhecimento, convertido em programa político de ação, produz-se um imenso “trabalho político”(denegado, posto que, em aparência, é puramente negativo) que visa a criar as condições de realização e de funcionamento da “teoria”; um programa de destruição metódica dos coletivos.

O movimento, possibilitado pela política de desregulamentação financeira, em direção à utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito, realiza-se através da ação transformadora e, é preciso dizer, destrutiva de todas as medidas políticas (das quais a mais recente é o Acordo Multilateral sobre o Investimento, destinado a proteger as empresas estrangeiras e seus investidores contra os Estados Nacionais), visando pôr em questão todas as estruturas coletivas capazes de se antepor à lógica do puro mercado: nação, cuja margem de manobra não para de diminuir; grupos de trabalho, por exemplo, pela individualização dos assalariados e das carreiras em função das competências individuais e a atomização dos trabalhadores que resulta disso, sindicatos, associações, cooperativas; até mesmo a família, que, através da constituição dos mercados por agrupamentos etários, perde uma parcela de seu controle sobre o consumo.

O programa neoliberal, que obtém sua força social da força político-econômica daqueles cujos interesses exprime – acionistas, operadores financeiros, industriais, homens políticos conservadores ou socialdemocratas convertidos às reconfortantes renúncias do laisser-faire, altos funcionários das finanças (ainda mais árduos na imposição de uma política preconizando seu próprio declínio pois, diferentemente dos grandes empresários, não correm qualquer risco de ter de pagar pelas consequências) –, tende globalmente a favorecer a cisão entre a economia e as realidades sociais, e assim a construir, na realidade, um sistema econômico conformado à descrição teórica, isto é, uma espécie de máquina lógica que se apresenta como uma cadeia de restrições conduzindo os agentes econômicos.

A globalização dos mercados financeiros, acompanhada pelo progresso das técnicas de informação, garante uma mobilidade de capital sem precedentes e oferece aos investidores, preocupados com a rentabilidade de curto prazo de seus investimentos, a possibilidade de comparar de maneira permanente a rentabilidade das maiores empresas e de punir, por consequência, os fracassos relativos. As próprias empresas, colocadas sob tal ameaça permanente, devem se ajustar de maneira cada vez mais rápida às exigências dos mercados; isso sob a pena, como se costuma dizer, de “perder a confiança dos mercados”, e, de uma vez só, o apoio dos acionistas que, preocupados com obter uma rentabilidade de curto prazo, são cada vez mais capazes de impor sua vontade aos managers, de lhes fixar normas, por meio de diretrizes financeiras, e de orientar suas políticas em matéria de contratação, de emprego e de salário.

Assim se instauram o reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos sob contratos de duração determinada ou os trabalhos temporários e os “planos sociais” reiterados, e, no interior mesmo da empresa, a concorrência entre filiais autônomas, entre equipes coagidas à polivalência e, enfim, entre indivíduos, por meio da “individualização” da relação salarial: fixação de objetivos individuais; entrevistas individuais de avaliação, avaliação permanente; altas individualizadas de salários ou concessão de bônus em função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas; estratégias de “responsabilização” tendendo a assegurar a autoexploração de certos empresários que, simples assalariados sob forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo tidos como responsáveis por suas vendas, seus produtos, sua agência, sua loja, etc., sob a forma de “independentes”; exigência de “autocontrole” que estende a “implicação” dos assalariados, segundo as técnicas do “gerenciamento participativo”, para bem além do trabalho dos executivos. Estas são algumas das técnicas de assujeitamento racional que, ao impor o sobreinvestimento no trabalho, e não apenas naquele dos cargos de responsabilidade, e o trabalho na urgência, acabam por enfraquecer ou abolir as referências e as solidariedades coletivas[iii].

A instituição prática de um mundo darwiniano da luta de todos contra todos, em todos os níveis da hierarquia, que encontra a adesão ao trabalho e à empresa na insegurança, no sofrimento e no estresse, não poderia, sem dúvidas, ser completamente bem-sucedida se ela não encontrasse a cumplicidade das disposições precarizadas produzidas pela insegurança e pela existência, em todos os níveis da hierarquia, e mesmo nos níveis mais elevados, entre os empresários principalmente, de um exército de reserva de mão de obra docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego. O fundamento último de toda esta ordem econômica posta sob o signo da liberdade é, com efeito, a violência estrutural do desemprego, da precaridade e da ameaça de demissão que ela implica: a condição do funcionamento “harmonioso” do modelo microeconômico individualista é um fenômeno de massa, a existência do exército de reserva de desempregados.

Esta violência estrutural influi também no que chamamos de contrato de trabalho (reconhecidamente racionalizado e desrealizado na “teoria dos contratos”). O discurso empresarial nunca falou tanto de confiança, de cooperação, de lealdade e de cultura empresarial quanto em uma época em que se obtém a adesão a cada instante fazendo desaparecer todas as garantias temporais (três quartos dos contratos são de duração determinada, a parcela dos empregos precários não para de crescer, o licenciamento individual tende a não ser mais submetido a qualquer restrição).

Vemos, assim, como a utopia neoliberal tende a se incarnar na realidade de uma espécie de máquina infernal, cuja necessidade se impõe até mesmo aos dominantes. Como o marxismo de outros tempos, com o qual, neste sentido, ela tem vários pontos comuns, essa utopia suscita uma crença formidável, a free trade faith (a fé no livre comércio), não apenas naqueles que dela tiram suas justificações de existência, como os altos funcionários e os políticos, que sacralizam o poder dos mercados em nome da eficiência econômica, que exigem o levante das barreiras administrativas ou políticas capazes de incomodar os detentores de capital na procura puramente individual pela maximização do lucro individual, instituída em um modelo de racionalidade, que querem os bancos centrais independentes, que pregam a subordinação dos Estados nacionais às exigências da liberdade econômica pelos mestres da economia, com a supressão de todas as regulamentações em todos os mercados, a começar pelo mercado de trabalho, a interdição de déficits e de inflação, a privatização generalizada dos serviços públicos, a redução das despesas públicas e sociais.

Sem necessariamente compartilhar os interesses econômicos e sociais dos verdadeiros crentes, os economistas têm suficientes interesses específicos no campo da ciência econômica para contribuir decisivamente, quaisquer que sejam seus estados de espírito a propósito dos efeitos econômicos e sociais da utopia que vestem de razão matemática, para a produção e reprodução da crença na utopia neoliberal. Separados por toda sua existência e, sobretudo, por toda sua formação intelectual, na maioria das vezes puramente abstrata, livresca e teoricista, do mundo econômico e social tal como ele é, eles são particularmente propensos a confundir as coisas da lógica com a lógica das coisas.

Confiantes nos modelos que não têm quase nunca a chance de submeter à prova da verificação experimental, tidos a olhar por cima as conquistas das outras ciências históricas, nas quais eles não reconhecem a pureza e a transparência cristalina dos seus jogos matemáticos, e das quais eles são frequentemente incapazes de compreender a verdadeira necessidade e a profunda complexidade, eles participam e colaboram para uma formidável mudança econômica e social que, mesmo se algumas de suas consequências lhes causem horror (eles podem contribuir com o Partido socialista e dar sábios conselhos aos seus representantes nas instâncias de poder), não pode desagradá-los pois, sob o risco de algumas falhas, imputáveis particularmente ao que eles às vezes chamam de “bolhas especulativas”, ela tende a dar realidade à utopia ultraconsequente (como certas formas de loucura) à qual eles consagram suas vidas.

O mundo está aí, porém, com os efeitos imediatamente visíveis da colocação em prática da grande utopia neoliberal: não apenas a miséria de uma fração cada vez maior das sociedades mais avançadas economicamente, o crescimento extraordinário das diferenças entre os rendimentos, a desaparição progressiva dos universos autônomos de produção cultural, cinema, edição etc., pela imposição intrusiva de valores comerciais, mas também e sobretudo a destruição de todas as instâncias coletivas capazes de se opor aos efeitos da máquina infernal, das quais em primeiro lugar está o Estado, depositário de todos os valores universais associados à ideia de público, e a imposição, por toda parte, nas altas esferas da economia e do Estado, ou no seio das empresas, desta sorte de darwinismo moral que, com a cultura do winner, feita para os matemáticos superiores e para o salto a elástico, instaura como norma de todas as práticas a luta de todos contra todos e o cinismo.

Podemos esperar que a massa extraordinária de sofrimento que um tal regime político-econômico produz esteja, um dia, na base de um movimento capaz de interromper esta corrida em direção ao abismo? Na verdade, estamos aqui face a um extraordinário paradoxo: enquanto os obstáculos encontrados no caminho da realização da “nova ordem” – esta do indivíduo solitário, mas livre – são hoje tidos como imputáveis à rigidez e arcaísmos, e toda intervenção direta e consciente, ao menos desde que vinda do Estado, e por qualquer parcialidade que o seja, é de cara descreditada, portanto intimada a desaparecer em prol de um mecanismo puro e autônomo, o mercado (sobre o qual esquecemos que é também o lugar de exercício dos interesses); na realidade, é a permanência ou a sobrevivência das instituições e dos agentes da antiga ordem em vias de desmantelamento, e todo o trabalho de todas as categorias de trabalhadores sociais, e também todas as solidariedades sociais, familiares ou outras, que fazem com que a ordem social não se afunde no caos, apesar do volume crescente de população precarizada.

A passagem ao “liberalismo” se dá de maneira insensível, logo imperceptível, como a deriva dos continentes, escondendo assim seus efeitos, os mais terríveis no longo prazo. Efeitos que se encontram também dissimulados, paradoxalmente, pelas resistências que ela suscita, desde já, da parte daqueles que defendem a antiga ordem extraindo dos recursos que ela encobria, nas solidariedades antigas, nas reservas de capital social que protegem toda uma parte da ordem social presente da queda na anomia (capital que, se não é renovado, reproduz, é destinado ao enfraquecimento, mas cujo esgotamento não será para amanhã).

Mas estas mesmas forças de “conservação”, que são facilmente tratadas como forças conservadoras, são também, em outra relação, forças de resistência à instauração da nova ordem, que podem tornar-se forças subversivas. E se podemos, então, conservar qualquer esperança razoável, o que ainda existe, nas instituições estatais e também nas disposições dos agentes (especialmente os mais ligados a estas instituições, como a pequena nobreza de Estado), de tais forças que, sob a aparência de simplesmente defender, como criticaremos logo em seguida, uma ordem desaparecida e os “privilégios” correspondentes, devem, de fato, para resistir à prova, trabalhar na invenção e na construção de uma ordem social que não teria como lei única a procura do interesse egoísta e a paixão individual pelo lucro, e que daria lugar a coletividades orientadas à busca racional pelos fins coletivamente elaborados e aprovados.

Dentre os coletivos, associações, sindicatos, partidos, como não dar um lugar especial ao Estado, Estado nacional ou, melhor ainda, supranacional, isto é, europeu (etapa na direção de um Estado mundial), capaz de controlar e de impor eficazmente os lucros realizados nos mercados financeiros e, sobretudo, de combater a ação destrutiva que estes últimos exercem sobre o mercado de trabalho, organizando, com a ajuda dos sindicatos, a elaboração e a defesa do interesse público que, queira-se ou não, jamais sairá, mesmo ao custo de algum erro de escrita matemática, da visão de contador (em outro temos, diríamos de lojista) que a nova crença apresenta como a forma suprema da realização humana.

*Pierre Bourdieu (1930-2002), filósofo e sociólogo, foi professor na École de Sociologie du Collège de France

Tradução: Daniel Souza Pavan

Notas

[i] NDLR: em referência a Auguste Walras (1800-1866), economista francês, autor de De la nature de la richesse et de l’origine de la valeur (1848); ele foi um dos primeiros a tentar aplicar a matemática ao estudo econômico

[ii] Erving Goffman, Asiles. Etudes sur la condition sociale des malades mentaux, Editions de Minuit, Paris, 1968.

[iii] Podemos nos remeter, sobre tudo isso, aos dois números da Actes de la recherche em sciences sociales consagrados às “Nouvelles formes de domination dans le travail” (1 e 2), nº114, setembro de 1996 e nº115, dezembro de 1996, e, especialmente à introdução de Gabrielle Balazas e Michel Pialoux, “Crise du travail et crise du politique”, nº114, p.3-4.

TANTERIOR
Fellini, 100 anos

O Brasil não pode ser Bolsonaro, por Mário Sergio Conti

Por Mario Sergio Conti – 22 de fevereiro de 2020

Lá veio ele. De terno xexelento e gravata brega. Erguendo os polegares a troco de nada. Articulando aos trancos e barrancos sujeito, verbo e predicado.
Arreganhando os dentes numa risada maníaca. Ostentando a papada e o pescoção obscenos para os celulares da claque.
Outra manhã no portão do Alvorada. O cenário foi calculado para ser morfético: o chiqueirinho insolente para jornalistas, a canhestra coreografia de jagunços simiescos, o alvoroço dos bajuladores. O Mito sai do palácio com o script pronto.
Tanto que na terça-feira, sem que nada lhe fosse perguntado, e recorrendo a um aspone, ladrou suas cachorradas contra a repórter Patrícia Campos Mello. Aí fez uma cara de espertalhão que ganhou o dia, afixou a metálica risada-cicatriz na fuça e se mandou. Só a sua corja achou graça.
Mesmo que as patadas do presidente e seus asseclas sejam reiteradas diariamente, houve dessa vez um incômodo inusitado. A infâmia não foi tida por corriqueira. Como definir o embaraço que se espalhou por parte da opinião pública?
Houve por certo enjoo, cansaço, gente que de novo perguntasse: de que bueiro saiu esse cara? Mas sentiu-se outra coisa, um dissabor fugidio que pegou fundo, constrangimento, humilhação, repulsa. Salvo engano houve vergonha.
A vergonha é um sentimento tão evidente que fica difícil defini-lo. Talvez seja um meio termo entre pudor e culpa, mas se alimenta de ambos.
Ocorre no íntimo da pessoa, mas vem de fora, diz respeito a como os outros a enxergam. Dá-se a ver no rubor e no gesto de cobrir o rosto com as mãos.
No Gênesis, Adão e Eva comem o fruto proibido e, ao acordarem, sentem vergonha pela primeira vez. A consciência do que fizeram os perturba. Têm vergonha da nudez e se cobrem com folhas. Envergonhados, são expulsos do Paraíso.
Vergonha vem do latim “Verecundia”, cujo plural é sinônimo de órgãos sexuais. Na sua carta, Pero Vaz de Caminha joga com os dois sentidos, contrapondo as vergonhas das índias à sem-vergonhice dos lusos:
“Moças bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas costas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”.
A vergonha inexiste na infância. Crianças não se importam com a nudez, em urinar e defecar em público, em ter prazer com dejetos. A partir da puberdade, diz Freud, a vergonha é um dos mecanismos —como a timidez, o asco e o pudor— com os quais a cultura recalca a pulsão sexual dos indivíduos.
A vergonha dos brasileiros foi outra: a de ter um presidente sem noção. Que fala no Alvorada como num vestiário de caserna. Que se dirige a nós como se aos da sua laia. Que agride quem não é ignóbil como ele. Como reagir à torpeza cotidiana?
Carlo Ginzburg é um eminente historiador italiano. “O Queijo e os Vermes”, seu livro mais conhecido, inaugurou um gênero, o da micro-história. Tem 80 anos e a aura de um sábio.
Pois ele tem um ensaio contraintuitivo —inédito no Brasil e republicado há pouco na Inglaterra— no qual argumenta que a vergonha tem uma dimensão social e positiva. “O Vínculo da Vergonha” abre assim: “O país ao qual se pertence não é, como diz a retórica habitual, aquele que se ama, mas o do qual se tem vergonha.” Não que a vergonha seja uma escolha: “Ela desaba sobre nós, nos invade —nossos corpos, nossos sentimentos, nossos pensamentos— como uma doença repentina”.
Ginzburg busca suas raízes gregas. Para Aristóteles, ela é uma paixão, e não uma virtude. Em Homero, é um grito de guerra que atemoriza o inimigo: “Aidos!”, cujo sentido ecoa na expressão “Tenha vergonha na cara!”.
O decisivo, diz ele, é a dimensão coletiva da vergonha. A desonra que ela provoca serve de mola para vencê-la.
Ela é uma reação ao perigo, um vínculo que congrega.
Daí que, na “Ilíada”, Nestor exorte seus soldados a ter “vergonha, a pensar nos filhos e esposas, nas posses e pais, vivos ou mortos: tenham coragem e não fujam da luta”. A vergonha é uma tomada de consciência, um passo para a união. O Brasil não pode ser Bolsonaro.
Foi o que ocorreu com o leitor Danilo Tucciarelli na carta que a Folha publicou. Ele pediu desculpas a Patrícia Campos Mello por ter votado em Bolsonaro, mas descobriu que o presidente é “um sujeito sujo e covarde”.
Conclui sua carta assim: “Tenho mãe, esposa, irmãs e, em breve, terei uma filha. E a última coisa que desejaria que acontecesse a elas é o que vem acontecendo com a jornalista.” A vergonha homérica está aí.

O coronavírus e a economia, Luiz Gonzaga Belluzzo

O coronavírus e a economia

Luiz Gonzaga Belluzzo

Abster-se de gastos em uma depressão é desperdiçar homens e máquinas e aumentar a miséria humana

A pandemia do coronavírus aplacou as exuberâncias das Bolsas de Valores no mundo inteiro. Logo após o anúncio da disseminação do bicho, os mercados de ações dobraram os joelhos urbi et orbi.

Os bancos centrais anunciaram providências. Na segunda-feira 2 de março os mercados comemoraram, os índices responderam com expressivas saudações de alívio. Já na terça-feira 3 de março, o Federal Reserve de Jerome Powel tascou uma redução de 0,5% na policy rate americana. As Bolsas recuaram.

“Eles estão empurrando a corda”, disse o veterano investidor de mercados emergentes Mark Mobius em uma entrevista à Bloomberg TV. “O problema não se reduz às taxas de juro, já muito baixas globalmente. O problema maior é a cadeia de suprimentos abrigada na China.” Os mercados vão piorar, “a menos que a China possa aumentar a produção”, disse ele.

“Empurrar a corda” é uma metáfora keynesiana que pretende apontar a ineficácia da política monetária para estimular a economia e seus mercados em momentos de grande incerteza. Em 1995, a economia japonesa curtia uma deflação braba. Lá estava o economista-chefe da Jardine Fleming Securities, Richard Werner. Assustado com a persistência da deflação, com a velocidade de tartaruga da economia, Werner recorreu à metáfora keynesiana.

“Como Keynes apontou na década de 1930, ao cunhar a metáfora da corda, em um ambiente deflacionário quando as taxas de juro reais estão se aproximando de zero, a visão convencional da política monetária é impotente.” O Banco do Japão empurrou a corda sem sucesso por vários anos: a taxa básica atingiu um patamar histórico de 1%. No entanto, a economia não dava sinais de vida. Werner argumenta que o enrosco não decorria do “preço do dinheiro”, pois as taxas de juro estavam no chão. O problema, diz ele, era a “quantidade de dinheiro”.

Até mesmo um observador desatento da crise de 2007/2008 poderia se espantar com a “quantidade de dinheiro” despejada pelos bancos centrais – mais de 22 trilhões de dólares – para salvar os “mercados” apavorados com as consequências de suas próprias insanidades. O dinheiro sobra, mas poder aquisitivo, ou seja, o gasto, continua modorrento. O cacau circula nas altas esferas da finança e recusa-se a baixar à terra onde habitam homens e mulheres.

A economia só volta a funcionar embalada pelo dispêndio de empresas, famílias e governo. Depois da Grande Recessão de 2007/2008 foram mais bem-sucedidas as políticas econômicas que injetaram renda monetária na economia. Os Estados Unidos puxaram a fila. Cresceram mais que os europeus, a despeito do aumento da desigualdade e da precarização nos mercados de trabalho.

Devo relembrar a mensagem enviada por Keynes a seus amigos americanos em 1934: “Quando me deparo com a questão do gasto, imagino que ninguém de senso comum duvidaria do que vou dizer, a menos que sua mente tenha sido embaralhada anteriormente por um financista de escol ou um economista ortodoxo. Nós produzimos a fim de vender. Em outras palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que nós possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-nos de gastar. Então, como eu disse, a resposta é óbvia”.

Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como, então, uma nação pode tornar-se rica fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse pensamento desnorteia o público.

No entanto, um comportamento que pode fazer um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta, ele não afeta só a si mesmo, mas outros. A despesa é uma transação bilateral. Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua. Se você responder comprando algo que eu posso fazer para você, então minha renda também é aumentada.

Assim, quando estamos a pensar na nação como um todo, devemos ter em conta os resultados como um todo. O resto da comunidade é enriquecido pela despesa de um indivíduo. Sua despesa é simplesmente uma adição à renda de todos os outros. Se todo mundo gasta mais, todo mundo é mais rico e ninguém é mais pobre. Cada homem beneficia-se da despesa de seu vizinho, e as rendas são aumentadas na quantidade exigida para fornecer os meios para a despesa adicional.

Há apenas um limite para que o rendimento de uma nação possa ser aumentado desta forma: o limite fixado pela capacidade física de produzir. Abster-se de gastos em um momento de depressão, não só falha, do ponto de vista nacional, como significa desperdício de homens disponíveis e desperdício de máquinas disponíveis, para não falar da miséria humana.

Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens?

Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens?

Os direitos são feitos de suor, de sangue, de carne humana apodrecida nos campos de batalha, queimada em fogueiras!

Quando abro a Constituição no artigo quinto, além dos signos, dos enunciados vertidos em linguagem jurídica, sinto cheiro de sangue velho!

Vejo cabeças rolando de guilhotinas, jovens mutilados, mulheres ardendo nas chamas das fogueiras!

Ouço o grito enlouquecido dos empalados.

Deparo-me com crianças famintas, enrijecidas por invernos rigorosos, falecidas às portas das fábricas com os estômagos vazios!

Sufoco-me nas chaminés dos Campos de concentração, expelindo cinzas humanas!

Vejo africanos convulsionando nos porões dos navios negreiros.

Ouço o gemido das mulheres indígenas violentadas.

Os direitos são feitos de fluido vital!

Pra se fazer o direito mais elementar, a liberdade,
gastou-se séculos e milhares de vidas foram tragadas, foram moídas na máquina de se fazer direitos, a revolução!

Tu achavas que os direitos foram feitos pelos janotas que têm assento nos parlamentos e tribunais?

Engana-te! O direito é feito com a carne do povo!

Quando se revoga um direito, desperdiça-se milhares de vidas …

Os governantes que usurpam direitos, como abutres, alimentam-se dos restos mortais de todos aqueles que morreram para se converterem em direitos!

Quando se concretiza um direito, meus jovens, eterniza-se essas milhares vidas!

Quando concretizamos direitos, damos um sentido à tragédia humana e à nossa própria existência!

O direito e a arte são as únicas evidências de que a odisseia terrena teve algum significado!”

Publicado em geledes.org.br

Juíza Federal Raquel Domingues do Amaral