Neoliberalismo, despolitização e des-democratização

Para a autora, Tatiana Roque, o neoliberalismo não é, somente, a simples orientação de determinado modelo econômico pautado exclusivamente pelas regras do mercado.

Trata-se, na verdade, de algo mais amplo, de uma racionalidade política que implica em um tipo pré-formatado de organização social (decisões tomadas somente no topo da pirâmide social) e  um modelo de Estado (mínimo, omisso, ativo somente para promover os privilégios de classe).

O neoliberalismo, da forma definida no texto, implica desativação de uma série de princípios que regem a democracia liberal. A autora cita estes fundamentos em seu texto.

A atual desativação dos fundamentos da democracia ocorre em um ambiente social degradado e de desencanto com a participação política.

Uma das referências bibliográficas mencionadas no texto é o artigo de Wendy Brown, intitulado “American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization”. Isto revela que o fenômeno da despolitização e das consequentes des-democratização e desmonte das conquistas civilizatórias não se limita ao Brasil. É um tsunami, pelo poder de destruição de vidas, global.

Para mim está claro que o principal erro do cidadão é o seu crescente desinteresse pela esfera pública, a desvalorização do bem público e o desprezo pela ordem jurídica.

A despolitização  é a principal razão da crise política e não, como muitos pensam, sua solução. Cidadãos despolitizados escolhem maus políticos. Os maus políticos, praticando a baixa política, retroalimentam a despolitização, levando à crise que vemos em todos os quadrantes do mundo atual.

A democracia representativa requer, para ser minimamente funcional, de eleitores bem informados e conscientes, ou seja, de eleitores politizados, para além das consciências superficiais formatadas.

A alta política é importante demais para ser deixada exclusivamente nas mãos de representantes mal-intencionados e para ser encarada como um fardo ou obrigação enfadonha.

Paulo Martins

Leia o texto a seguir:

Hoje, evitar o impeachment. Mas em seguida, inventar lógicas que recuperem a política como projeto coletivo, resgatem a esfera pública e reabilitem a potência da ação coletiva

Por Tatiana Roque, publicado em outraspalavras.net

Defender a democracia. Esse é o mote que tem reunido ações de diferentes correntes político-partidárias. Há um sentimento de que há algo em risco, algo bem maior que o governo. Mas parece exagero pensar, por outro lado, que uma ditadura nos espreita, nem mesmo um projeto coordenado de usar meios autoritários que ameacem a liberdade do cidadão comum. A percepção de que a democracia está fragilizada é real, mas, ao invés de representar um retorno ao passado, pode ser explicada por uma compreensão aguda da atual fase do capitalismo neoliberal. Lembremos que, no pedido de impeachment, o suposto crime de responsabilidade seria um desrespeito à austeridade fiscal. Ou seja, se julgado procedente, representará uma criminalização da política econômica.

O neoliberalismo está muito além, contudo, de uma orientação da economia. Trata-se de uma racionalidade política que envolve um tipo preciso de organização social, um modelo de Estado e mecanismos eficazes de produção de subjetividade. Práticas de governança, nos termos de Foucault, que se traduzem como uma razão política normativa que abarca muitos campos para além daqueles ligados ao mercado.

Entendido desse modo, o neoliberalismo implica uma desativação de diversos princípios que regem a democracia liberal. Só para dar alguns exemplos de fenômenos em curso:

  • suspensão da separação entre esfera pública e esfera privada;
  • tratamento de opções políticas como ofertas concorrentes que o cidadão-consumidor deve escolher;

  • conformação da ação pública aos critérios da produtividade e da rentabilidade;

  • exacerbação dos poderes de polícia, que deixa de estar submetida a qualquer controle;

  • desvalorização simbólica da lei, considerada mais tática do que princípio, com consequente fragilização do sistema jurídico;

  • confusão entre as esferas política e econômica;

  • centralidade dos temas da gestão para a avaliação da boa governança.

A democracia liberal, diante desse quadro, segue operando como esfera política ideal, mas perde sua face normativa. Wendy Brown1 chega a denominar des-democratização a desativação atual de fundamentos como: igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania, regras ditadas pela lei e imprensa livre. Pierre Dardot e Christian Laval2 ressaltam que o neoliberalismo é distinto do liberalismo clássico justamente pela função proeminente do Estado que deve, ao mesmo tempo, construir o mercado e se construir segundo as normas do mercado. As leis do mercado deixam de ser concebidas, portanto, como leis naturais e cabe ao Estado garantir o bom funcionamento da concorrência. Seu papel é deslocado, assim, da esfera da justiça e das garantias ao cidadão para a esfera da gestão, cuja função é gerar um ambiente propício para a ação das empresas. A partir dessa lógica, podemos entender que seja mais importante respeitar a meta fiscal do que garantir o pagamento dos programas sociais, ou o financiamento da universidade pública. A lei adquire um papel tático que pode ser flexibilizado em prol da performance: uma legalidade de resultados.

Essas mudanças impõem-se gradativamente em um ambiente social degradado, em um mundo no qual a participação política é percebida como inócua: só nos resta cuidar de nossas vidas, pois a ação coletiva não tem consequência e não dá retorno algum. O indivíduo deve ser empresário de si, ficando responsável pela sua sorte, pelo investimento em si mesmo, como um capital que deve render frutos, mantendo-se produtivo e empregável. Além disso, a racionalidade liberal responsabiliza o indivíduo pela solução de problemas tipicamente sociais, como educação e saúde. Como consequência, os direitos do cidadão seguem cada vez uma lógica de direitos do consumidor.

Compreende-se, assim, o esvaziamento da política: o desinteresse do cidadão pela esfera pública, a desvalorização do bem público e da ordem jurídica. No momento em que vivemos, a dissolução da democracia corresponde ao esgotamento desses pressupostos. Mais do que o risco de qualquer regime autoritário, estamos diante de uma indiferenciação dos regimes políticos: não importam os partidos, não importam os governos, as práticas de gestão e as políticas de austeridade serão as mesmas.

Diante da dificuldade desse quadro, a esquerda se vê frequentemente na posição desconfortável de defender um regime em declínio. Defender a democracia liberal é o que temos para hoje, mas depois de amanhã precisaremos de diagnósticos mais eficazes. O desafio é inventar racionalidades políticas à altura do que o neoliberalismo tem de inédito e, sobretudo, do que tem de operacional em todas as esferas da existência.

1 Wendy Brown, “American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization”. Political Theory, Vol. 34, No. 6, 2006, pp. 690-714.

2 Christian Laval ePierre Dardot, A nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo Editorial, Coleção Estado de Sítio, 2016.

Notas críticas sobre a injustiça fiscal brasileira

O mito: “temos a maior carga tributária do mundo”. Os fatos: sistema fiscal pune a maioria, mas é dócil com privilegiados. A afronta: ricos e empresas querem pagar ainda menos. Veja números e tabelas.

Por Joana Rozowykwiat, no site do Inesc, e publicado no site outraspalavras.net.

De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Heritage Foundation, de 2014 e 2015, a carga tributária média mensal brasileira é a quinta mais baixa entre as 20 maiores economias do mundo e está longe de figurar como a mais elevada do planeta.

“Quando a gente avalia, na comparação com outros países, vemos que os cerca de 36% de carga tributária [em relação ao PIB] do Brasil está na média dos outros lugares. O problema é que temos aqui uma situação de injustiça fiscal que penaliza os pobres e a classe média”, diz Grazielle Custódio David, especialista em Orçamento Público e assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Segundo ela, essa situação de desigualdade acontece basicamente por duas razões. Primeiro, porque grande parte da estrutura tributária do país está baseada em impostos indiretos, ou seja, que incidem sobre o consumo de bens e serviços e não sobre a renda e a propriedade.

“O problema de ter uma grande taxação de consumo é que, proporcionalmente, quem acaba pagando mais são os mais pobres. Por exemplo, se vai comprar arroz no supermercado, um pobre paga o mesmo imposto que um rico. Mas, quando a gente relaciona com o salário que aquela pessoa recebe, a proporção que o pobre paga é muito maior que a da pessoa rica. Isso configura uma situação de injustiça fiscal”, aponta Grazielle.

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O outro entrave à justiça fiscal, diz Grazielle, está relacionado à forma de tributar a renda no país. “A gente tem uma situação em que a classe média, a faixa que recebe entre 20 e 40 salários mínimos, é a que paga mais imposto de renda hoje no Brasil. Já quem recebe, por exemplo, acima de 70 salários mínimos, praticamente não paga imposto”, compara.

No país, hoje, as rendas do trabalho são submetidas à cobrança de imposto de acordo com uma tabela progressiva com quatro tipos de alíquotas (7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%). Já nas rendas do capital o leão dá apenas uma mordiscadinha, uma vez que as rendas decorrentes da distribuição de lucros e dividendos são isentas de Imposto de Renda. E outras, como ganhos financeiros ou de capital, estão sujeitas a alíquotas exclusivas, inferiores àquelas cobradas sobre a renda do trabalho.

“Se a gente compara um assalariado que paga na alíquota máxima de 27% com alguém que recebe mais do que o limite do imposto de renda, há uma situação terrível. Porque a maioria deles [os mais ricos] recebe por lucros e dividendos e, quando a gente avalia quanto eles pagam em imposto de renda, normalmente chega em 6%. Olha a situação: um grupo, que é a classe média, paga 27,5% de IR. E quem ganha muito mais que este grupo paga muitas vezes só 6%, porque existe a isenção de cobrança do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos”, lamenta Grazielle.

Segundo dados da Receita Federal, em 2014, um grupo com cerca de 71 mil brasileiros ganhou quase R$ 200 bilhões sem pagar nada de Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF). Foram recursos recebidos, em sua maioria, como lucros e dividendos.

 

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Essa isenção da tributação sobre lucros e dividendos foi instituída no país em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). “Entre todos os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), só o Brasil e a Estônia têm essa isenção. É uma vergonha, um vexame que o Brasil tenha aprovado uma lei como esta, que acaba punindo muitos de seus cidadãos, e beneficiando muito poucos”, critica Grazielle.

Os pesquisadores Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estimam que o governo poderia arrecadar mais de R$ 43 bilhões ao ano com a cobrança de imposto de 15% sobre lucros e dividendos recebidos por donos e acionistas de empresas.

Em um momento de ajuste fiscal, no qual o governo faz malabarismos para cortar gastos e aumentar a arrecadação, o valor seria mais que bem-vindo.

As manipulações da Fiesp

Os ricos brasileiros não têm mesmo do que se queixar. De acordo com Grazielle, o Brasil tem ainda um dos mais baixos impostos sobre patrimônio. “Hoje, no Brasil, a arrecadação com impostos sobre patrimônio está na faixa de 3%. A média mundial é entre 8 e 12%”, informa, apontando a falácia no argumento de quem cita a carga tributária como abusiva.

A assessora do Inesc criticou o discurso de combate aos tributos, que interessa, especialmente, aos super-ricos, sobre quem menos pesam os impostos. Ela aponta a Fiesp como grande representante desse grupo – em grande parte possuidor de empresas e recebedor de lucros e dividendos não tributados.

Para ela, a entidade mente e manipula informações, de forma a conseguir a adesão da população para suas campanhas pela redução da carga tributária. Ao propalarem desinformação, as iniciativas terminam conseguindo apoio entre as classes baixa e média, que de fato sentem no bolso o preço dos impostos.

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“A Fiesp, através de sua atuação, inclusive de lobby com o Legislativo, grandes campanhas e articulação, representando os interesses dos super-ricos, tem formulado um discurso fácil de ser assimilado, porque as pessoas percebem uma carga pesada para elas e acatam esse discurso. Mas o problema é que eles [da Fiesp] contam uma mentira, ou uma verdade incompleta. Manipulam as informações, e o pobre e a classe média acabam sentindo, sim, o peso, porque todo o peso da carga tributária está sobre eles. Enquanto isso, os ricos praticamente não pagam imposto. É um discurso forjado, manipulador, para enganar a população”, acusa.

Para que serve o imposto

De acordo com Grazielle, a maior consequência deste tipo de campanha é que, ao insistir que a carga tributária é alta, distancia as pessoas de uma compreensão real sobre a importância dos impostos.

“A gente vai então ignorando o que determina uma carga tributária, que são as demandas sociais”, ressalta. Segundo ela, cria-se um quadro de contradição, em que as pessoas pleiteiam melhores serviços públicos, mas combatem a forma que o Estado tem de promovê-los.

“É isso que leva as pessoas para as ruas. É saúde, educação, segurança, promoção de direitos fundamentais, direitos humanos. E são essas demandas e necessidades sociais que vão determinar qual é a carga que um país tem que ter de tributos para garantir esse tipo de assistência à sua população. Se a gente quer que essas demandas sejam atendidas, os impostos são necessários. Agora, a forma como esse imposto vai ser cobrado da sociedade, aí é que entra a questão da justiça fiscal, que precisa melhorar no país”, diz.

Ela avalia que o debate sobre a importância dos tributos não interessa à parcela mais rica da população – a mesma que faz críticas ao tamanho do Estado. “Esses super-ricos não têm muito interesse de que essas demandas sociais sejam atendidas para o coletivo, porque muitos deles, por exemplo, recorrem a um plano de saúde, a uma escola privada, muitos contratam segurança privada, e esquecem que a maioria da população não tem como recorrer a isso e necessita que o Estado garanta.”

Para ela, mais que um debate sobre ter mais ou menos impostos, é preciso redistribuir a carga já existente.

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“Isso pode ser feito com a diminuição de impostos indiretos e com redistribuição do imposto de renda. A gente pode, por exemplo, criar mais faixas, com diferentes alíquotas, diminuindo a incidência do Imposto de Renda até os 40 salários mínimos, e aumentando a partir daí, desde que se revogue a lei que isenta de taxação os lucros e dividendos. Além disso, a gente pode trabalhar muito na questão dos impostos sobre patrimônio”, sugere.

A especialista em Orçamento Público defende que, com esta série de medidas, é possível aumentar a arrecadação – e, consequentemente, o orçamento público –, diminuir o peso da carga tributária sobre os mais pobres e a classe média e, ainda, atender melhor às demandas sociais e promover políticas públicas com melhor financiamento, o que acabaria por gerar melhor qualidade nos serviços.

Grandes fortunas

Outra medida que vem sendo discutida como forma de aumentar a justiça fiscal no país é a implantação do imposto sobre grandes fortunas, que está previsto na Constituição, mas precisa ser regulamentado. Grazielle, contudo, avalia que a medida enfrenta dificuldades para avançar.

“Uma grande resistência a esse tipo de taxação é de quem diz que vai haver fuga de capitais do país. Outra questão é que, quando se fala em imposto, significa que a União não pode compartilhar. Então existe uma resistência de estados e municípios para avançar nisso, se for em formato de imposto. Se fosse, por exemplo, no formato de uma taxa, ou outro formato de cobrança, talvez tivesse mais apoio de governadores e prefeitos”, avalia.

Segundo ela, nesse sentido, a adesão dos estados e municípios é maior à proposta de recriação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). “Como a CPMF é uma contribuição, ela pode ser compartilhada. Talvez por isso, o debate sobre a taxação de grandes fortunas perca um pouco de força”, explica.

Segundo ela, por causa da resistência que foi forjada na sociedade em relação a novos tributos, talvez seja melhor o governo trabalhar com as possibilidades que já existem, eliminando desonerações e aumentando a fiscalização e cobrança, de forma a recuperar recursos que estão na Dívida Ativa da União ou foram sonegados.

“Hoje as renúncias tributárias são altíssimas no Brasil, concedidas ao setor privado, sem que haja um controle adequado de qual retorno existe. Você desonera uma grande empresa, falando que ela vai garantir mais empregos, que vai melhorar a economia, mas não tem depois nenhum estudo que avalie se isso de fato aconteceu”, condena.

Ela lembra que a Dívida Ativa da União ultrapassa hoje R$ 1 trilhão. “Porque não investir na capacidade de fiscalização e cobrança dessas dívidas?”, questiona, acrescentando que outros R$ 500 bilhões anualmente se perdem na sonegação.

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Grazielle cita ainda manobras feitas por grandes empresas, com o objetivo de pagar menos impostos. “A gente fez um estudo com a Vale, no qual foi possível observar a série de planejamentos tributários que eles fazem. Vendem, por exemplo, minério a preço muito abaixo do valor de mercado para países que são paraísos fiscais. Lá eles revendem e redistribuem para outros países, já com preço de mercado. Quando o minério sai daqui com preços baixos, eles já estão pagando menos impostos.

Chega no paraíso fiscal, não vão pagar imposto também. E, como vendem de lá com valor normal, então ganharam de novo. São manobras que tentam ficar dentro da lei, mas que acabam por sonegar, porque deixam de pagar os impostos devidos”, explicou.

De acordo com ela, de certa forma, há certos estímulos à sonegação no Brasil. “Sou uma empresa, tenho que pagar Cofins, por exemplo, e não pago. Pego esse dinheiro e invisto [no mercado financeiro]. O dinheiro fica rendendo juros. Depois de um tempo, vou para a Dívida Ativa, espero vir o Refis [programa de refinanciamento fiscal], aí negocio a dívida para pagar um valor ainda mais baixo do que eu devia. Quer dizer, ganho duas vezes, com os juros e pagando menos imposto”, exemplifica.

Além disso, a certeza da impunidade é algo que não ajuda a coibir os crimes fiscais, afirma. “No Brasil, pela lei, se depois você paga o que deve, o crime tributário deixa de existir. Não existe punição. Em outros países não existe essa revogação. Se a pessoa fez, além de ter que pagar o valor, muitas vezes com correção, ela ainda pode ser punida penalmente. A certeza da impunidade, a coisa do Zé Malandro, é que reforça a sonegação”, ressalta, defendendo que é preciso fortalecer as instâncias governamentais de fiscalização, controle e cobrança.

“A gente fica falando que em 2015 fizemos um orçamento deficitário de R$ 30 bi. Mas espera aí! A gente tem uma sonegação de R$ 500 bi, mais uma desoneração tributária de mais R$ 500 bi, mais uma dívida ativa de quase R$ 1,5 trilhão. Será que a gente tem um orçamento negativo de fato como nação ou poucas pessoas estão, aí, ficando com nosso dinheiro, deixando de pagar o que devem, e a gente sofrendo as consequências, sofrendo um ajuste fiscal?”, indaga.

Que reformas queremos?

Atualmente funciona no Legislativo uma Comissão Especial da Reforma Tributária, tema que deve estar muito em pauta este ano. Contaminado pelas meias verdades difundidas pela Fiesp, o debate deve refletir o cabo de guerra entre os interesses de super-ricos e trabalhadores, observa Grazielle.

“Se existe intenção de fazer a reforma tributária andar? Existe interesse dos dois lados, inclusive”, opina. De acordo com ela, um grupo dentro da Câmara, que tem entre seus integrantes o presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB), tem a intenção de fazer uma reforma que promova redução da carga tributária. Enquanto isso, do outro lado, setores progressistas defendem a justiça fiscal.

“Há pressão dos dois lados para que a reforma tributária aconteça. Acho que esse é um ano em que se vai discutir muito isso. Agora, por qual desses dois caminhos nós vamos acabar trilhando é a grande incógnita. Nossa defesa é que seja o caminho de uma reforma tributária com justiça fiscal”, encerra.

Adam Smith, muito além da mão invisível

Ulisses Ferraz tem um blog que publica artigos muito interessantes. O endereço do blog é : ulyssesferraz.blogspot.com.br. O artigo que publicamos foi publicado pelo Ulysses em 10/06/2015. Vale a pena compartilhar, o que faço com prazer. Recomendo diversos outros artigos do Ulysses, sempre profundos, claros e sobre assuntos relevantes.

Paulo Martins

Quarta-interesse feira, 10 de junho de 2015

Adam Smith, muito além da mão invisível
“Assim como Karl Marx é uma fonte de conhecimento social demasiado valiosa para ser deixado como propriedade exclusiva dos comunistas, Adam Smith é demasiado sábio e divertido para ser relegado aos conservadores, poucos dos quais alguma vez o leram.” (John Kenneth Galbraith)

Os liberais conservadores, ou neoliberais, inspirados nos economistas clássicos, frequentemente citam como referência para suas ideias Adam Smith, filósofo e economista clássico do século XVIII. Para os novos arautos do pensamento liberal, que escrevem diariamente em jornais, blogs e revistas, Adam Smith é uma espécie de mentor intelectual, que teria oferecido fundamentação teórica para a ideia de que as desigualdades sociais seriam algo natural e inerente à condição humana. Nada mais equivocado.

Adam Smith, de fato, foi um liberal e sempre defendeu a superioridade do livre mercado em relação a outras formas de organização econômica. Seu alvo principal era o mercantilismo. Mas uma leitura atenta de sua obra nos mostra que sua formação humanística e filosófica o tornava um pensador muito mais sutil e sofisticado, que compreendia as nuances e contradições do funcionamento de uma economia de mercado, embora fosse seu defensor mais notável.

Seu livro mais célebre, A Riqueza das Nações, é uma espécie de bíblia, que os neoliberais adoram citar, mas que dele provavelmente só leram a passagem da mão invisível, a qual transcrevo a seguir: “Orientando sua atividade de tal maneira que sua produção seja de maior valor, o mercador ou o comerciante visa apenas seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo”.

No debate acadêmico dos pesos pesados da economia atual, há uma tendência a refutar a hipótese da “mão invisível”. Joseph E. Stiglitz, vencedor do prêmio Nobel de Economia em 2001, e outros teóricos importantes, demostraram, em farta literatura, que os mercados livres frequentemente não só conduzem à injustiça social, mas sequer produzem resultados eficientes.

Mas a despeito de todas as críticas à ideia da mão invisível, vale a pena ler o texto de A Riqueza das Nações na íntegra. Além de muito bem escrito, há diversas passagens no livro em que o autor faz uma análise crítica sobre a propriedade privada, admite a existência de um conflito de classes e da formação de monopólios. Essas passagens oferecem uma visão mais ampla do pensamento do autor, que vai além da frequentemente citada pelos nossos (de)formadores de opinião. Vejamos:

“O governo civil, instituído com a finalidade de oferecer segurança à propriedade, é, na realidade, instituído para defender o rico do pobre ou os que têm alguma propriedade dos que não têm propriedade nenhuma”.

“Os salários correntes do trabalho dependem do contrato estabelecido entre duas partes, cujos interesses não são, de modo algum, idênticos. Os trabalhadores desejam obter o máximo possível; os patrões, dar o mínimo. Os primeiros se unem para elevá-los; os segundos, para rebaixá-los. Não é difícil, no entanto, prever qual das partes vencerá na disputa e forçará a outra a aceitar suas condições. Os patrões, ao serem em menor número, podem se unir facilmente”.

“Além disso, em tais confrontos, os patrões podem resistir durante muito mais tempo. Um proprietário de terras, um colono, um comerciante ou um fabricante podem, normalmente, viver um ano ou dois com os capitais que já adquiriram, sem ter que empregar nenhum trabalhador. Em troca, muitos trabalhadores não poderiam subsistir uma semana, alguns poucos poderiam fazê-lo durante um mês, e um número escasso deles poderia viver durante um ano sem emprego. Ao longo prazo, o trabalhador é tão necessário para o patrão como este o é para ele, mas a necessidade do patrão não é tão imediata”.

“O interesse dos empresários, porém, em qualquer ramo de comércio ou indústria é sempre, em alguns aspectos, diferente e até mesmo oposto ao interesse do povo… Seu interesse é sempre diminuir a concorrência… Mas isso sempre será contrário… (aos interesses do povo), e só poderá servir para permitir que os empresários, aumentando seus lucros para níveis maiores que o normal, cobrem, em proveito próprio, um imposto absurdo do resto de seus concidadãos”.

Em outro livro importante, intitulado Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith faz uma constatação categórica, que contradiz a suposição corrente de que seu pensamento não levava em conta as mazelas da desigualdade social. Smith diz que “nenhuma sociedade pode florescer e ser feliz enquanto parte de seus integrantes for pobre e miserável”. E arremata: “A disposição de admirar, quase idolatrar os ricos e poderosos, e desprezar as pessoas de condições precárias e pobres é a maior causa universal da corrupção de nossos sentimentos morais”. Como se pode notar, a ideologia do “cada um por si e todos por nenhum” não faz parte do pensamento filosófico do autor.

Tony Judt, em seu livro O Mal ronda a Terra, também nos oferece uma interpretação que ultrapassa a visão convencional sobre o pensador escocês, ao afirmar que “para Smith, a adulação crítica da riqueza pela riqueza não era apenas desagradável. Era uma característica potencialmente destrutiva da moderna economia comercial, que com o passar do tempo, a seu ver, mina as qualidades que o capitalismo precisa conter para se sustentar e nutrir”. No mesmo livro, Judt cita novamente Smith: “Sentir muito pelos outros e pouco por si; conter o egoísmo e exercitar os afetos benevolentes constituem a perfeição da natureza humana”. Na visão dos articulistas da grande mídia, uma frase como esta só poderia ser atribuível a algum lunático pensador da esquerda “retrógrada”. Jamais ao nobre “guru” da causa neoliberal.

Como podemos perceber, a obra de Adam Smith vai muito além da interpretação empobrecedora daqueles que hoje alegam ser seus herdeiros intelectuais. Somos bombardeados por opiniões superficiais de supostos especialistas da história do pensamento econômico, que não passam de leitores de orelhas de livros. Pessoas que propagam uma cultura de segunda mão, tão-somente para defender seus interesses mais mesquinhos. Com essa gente, todo cuidado é pouco. Melhor ir direto na fonte. Ler um clássico, inclusive os clássicos do pensamento econômico, é sempre uma dádiva.
Postado por ulysses ferraz às 05:21

O PIB é um indicador medíocre – Ladislau Dowbor

Diálogos Essenciais

Entrevista a Catia Santana, no Jus Economico | Outras Mídias

A tímida previsão de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil tem tomando conta do noticiário econômico deste ano. O indicador que mede a soma anual dos bens e serviços produzidos, não mede,  no entanto, resultados ou progressos obtidos pelo País. Para Ladislau Dowbor, professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração, formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976), consultor para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios , “o PIB é uma cifra que, tecnicamente, ajuda a medir a velocidade que a máquina gira, mas não diz o que ela produz, c

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Contas Públicas: contra a corrente

É possível equilibrar contas públicas sem atingir direitos sociais, como querem governo e direita. Veja como iniciar Reforma Tributária que obrigue ricos a pagar impostos

Por Célio Turino, em Outras Palavras

É fato que o Brasil precisa de um Ajuste Fiscal, pois não há como conviver com um déficit nominal de 8% do PIB (quase R$ 500 bilhões!) e, a continuar assim, o país quebra, levando junto conquistas e direitos e afetando principalmente os mais pobres. Mas não o “Ajuste” que está sendo apresentado pelo governo. Além de não ajustar nada, ele mantém intocados os privilégios dos bancos e dos mais ricos, exigindo sacrifícios apenas de quem já se sacrifica.

Mas antes de apresentar este ensaio com propostas alternativas para um Ajuste Fiscal, um esclarecimento para o público leigo. Quando governo, mídia e bancos falam em Superávit Primário, estão se referindo a uma abstração, uma ardilosa manobra para excluir dos gastos do Estado os pagamentos com Dívida Pública – como se apenas as despesas com Educação, Saúde e direitos sociais pudessem ser cortadas, enquanto o pagamento aos Bancos e rentistas (20 mil famílias) permanece intocável, sagrado. Por isso, se quisermos ajustar de fato as finanças públicas, é necessário olhar o orçamento público por inteiro, com o conjunto de despesas e receitas, daí a necessidade de colocar Juros e Dívida também na mesa de corte.

Em 5/5/2015 escrevi artigo analisando os planos de austeridade do governo federal. Já previa que o resultado seria este que aí está, agravando o endividamento do Estado brasileiro, quando o objetivo anunciado seria o oposto. O artigo começava assim: “‘Ajuste Fiscal’ que começa a ser votado hoje, é sacrifício inútil: juros consumirão toda ‘economia’ gerada pelo corte de direitos e investimentos. É hora de construir agenda alternativa”. Infelizmente minha análise, e de vários outros pensadores livres, estava correta. Neste texto, apresentei sugestões para uma série de medidas, que continuam atuais. Dada a correlação de forças e a tormenta que atravessamos, reapresento-as em formato mais moderado, simples e exequível, sendo que algumas medidas nem dependem de aprovação no Congresso. A elas:

a) Criar duas novas alíquotas de Imposto de Renda: de 35% sobre os rendimentos acima de R$ 30 mil mensais (R$ 390 mil/ano) e 40% acima de R$ 100 mil/mês (R$ 1,3 milhão/ano). Com isto haverá um pequeno acréscimo entre 7,5% e 12,5% no Imposto das pessoas muito ricas (1% da população que detém 40% da riqueza). Em contrapartida tributar Imposto de Renda somente a partir de R$ 4 mil/mês (ou R$ 52 mil/ano). Estas duas medidas devem ser apresentadas em conjunto, pois são complementares, de modo que a isenção aos mais pobre é compensada com o acréscimo aos mais ricos, produzindo Justiça Tributária. Além deste componente, a medida também vai liberar recursos para a economia popular e solidária, com impacto positivo na arrecadação tributária, evitando aumento do desemprego e ativando a recuperação da economia como um todo. Outro reflexo positivo será a elevação da renda dos aposentados. Antes que alguém tome as dores dos ricos, um lembrete: no mundo capitalista que se diz civilizado só se começa a tributar renda a partir de US$ 1.200, ou mais, e as alíquotas chegam a 45%. Estimativa de Receita: R$ 10 bilhões.

b) Taxar ganhos de Capital. Entre as economias organizadas do mundo, apenas Brasil e Estônia não tributam ganhos de Capital. A isenção no Brasil foi adotada ao final do século passado, sob o falso argumento da bitributação: alegou-se que as empresas já pagavam Imposto de Renda da Pessoa Juridia (IRPJ). Mas imposto de empresarial é custo repassado aos produtos, sendo que quem paga de fato são os consumidores; e ganho de dividendo é Renda Individual, que tem permanecida isento em privilégio injustificável. Até quando seguiremos na rabeira da civilização também em relação à renda dos milionários, mantendo regalias pré-Revolução Francesa? Junto a esta medida, o país também deve estabelecer uma justa taxação sobre a remessa de lucros ao exterior. Segundo estudos do IPEA, se houver tributação na ordem de 15%, haverá incremento de R$ 43 bilhões na arrecadação do Estado (ou 140% do total previsto com a CPMF). Mas cabe a pergunta: se um assalariado que ganha R$ 6 mil por mês paga 27,5% do seu salário em IRPF, por que um grande acionista só deveria pagar 15%?

c) Taxar fortunas e heranças, conforme previsto na Constituição e nunca regulamentado. A tributação pode ocorrer a partir de determinado valor (R$ 4 milhões, com alíquotas entre 0,4% a 2,1%, conforme projeto da deputada Jandira Feghali, ou mesmo outras alternativas). Qualquer país capitalista, incluindo EUA, já faz isso há décadas — por que ainda não no Brasil? Seremos os últimos a taxar fortunas, como fomos os últimos a abolir a escravidão? Segundo estudos do economista Amir Khair, uma alíquota média de apenas 1% sobre o patrimônio dos muito ricos permitiria uma arrecadação suplementar de R$ 100 bilhões/ano; para efeito deste cálculo, melhor estimar em R$ 30 bilhões.

d) Fim de toda e qualquer isenção patronal ao INSS (principalmente Igrejas, que não pagam contribuição patronal de seus funcionários e sacerdotes). Em junho deste ano a mesma Câmara dos Deputados que agora exige cortes em direitos sociais, ampliou a isenção tributária a Igrejas, acarretando novo prejuízo ao Tesouro em R$ 300 milhões; no mínimo deveríamos revogar este privilégio injustificável. Estimativa de ganho de receita para a Previdência: entre R$ 500 milhões a R$ 1 bilhão, a depender da extensão da medida.

e) Retomar a CIDE (contribuição sobre domínio econômico) que incide sobre a gasolina, fixando-a em R$ 0,20 por litro de combustívels (estudos do governo chegaram a prever acréscimo de R$ 0,60). Estimativa de arrecadação: R$ 10 bilhões, a ser dividida com Estados e Municípios, de modo que a parte da União seria de R$ 5 bilhões. Em contrapartida isentar alimentos e produtos de higiene da cesta básica e cadeia produtiva de saúde e transporte coletivo de ICMS e IPI. Justificativa: não é moralmente aceitável que o Estado arrecade sobre a alimentação de seu povo e muito menos com tratamento de saúde. Se, de um lado a CIDE na gasolina pode aumentar a inflação, por outro, essas isenções terão forte impacto na redução inflacionária (muito mais que qualquer aumento na taxa de juros). A perda de receita decorrente destas isenções será compensada pela ativação da atividade econômica e ampliação de consumo em outras áreas, bem como na compensação a estados e municípios via participação na CIDE. Além disso, melhorará a relação de custos entre gasolina e etanol e reduzirá custos no transporte coletivo. Também em compensação aos estados, transferir o ITR (Imposto Rural) da União para os Estados;

f) Apoiar lei sobre repatriação de capitais, conforme intenção do governo, ainda não especificada em projeto. Estimativas otimistas falam em recuperação de até R$ 100 bilhões; mais realista prever R$ 10 bilhões em ganho de arrecadação;

g) Fim da Lei Kandir e retorno de cobrança de ICMS nas exportações de commodities. Instituída em 1997, a lei Kandir visava estimular exportações de bens primários via isenção de ICMS. Para compensar a isenção foi criado um Fundo de ressarcimento aos estados. Esta medida e este fundo, além de tere provocado rombo na conta de estados exportadores de commodities (na ordem de R$ 21,5 bilhões, no caso do Pará), também provoca um rombo anual no orçamento da União, na ordem de R$ 5 bilhões/ano. Além de provocar quebra de arrecadação do Estado, a lei também desestimula a industrialização (por mínima que seja, na forma de farelo ou óleo de soja, por exemplo) das matérias primas no Brasil e é um constante desestabilizador na relação entre Estados e União. Como resultado real, produz transferência de recursos do Estado para grandes exportadores — em sua maioria, multinacionais. É chegado o momento de acabar com esta distorção, e o momento é favorável, principalmente em função da expressiva alta do dólar.

Este conjunto de medidas representa um ganho de arrecadação para a União na ordem de R$ 100 bilhões, em valores aproximados. E sem a CPMF! Como efeito, também permite melhora na arrecadação de Estados e Municípios e ativação da economia. Antes que aleguem que R$ 100 bilhões representaria um forte incremento da carga tributária (1,65% do PIB), cabe ressaltar que estas medidas promovem Justiça Tributária, ao arrecadar a partir da Renda e do Patrimônio, evitando que o peso tributário se espraie pela sociedade como um todo. Nos próximos três anos será necessário um período de calibragem nestes impostos e em outros, para evitar o temor de elevação tributária excessiva. Ao mesmo tempo o Congresso deveria aprovar lei estipulando teto de arrecadação em 37% do PIB (atualmente está em 36,5%) a vigorar no quadriênio 2019/22.

Mas ainda cabe avaliar a CPMF. Há prós e contras, em relação a este imposto. O ponto positivo é que a CPMF além de atingir a todos, incluindo sonegadores, ainda permite que os mesmos sejam identificados; o negativo é que se espraia para toda a economia e, ao repassar custos na cadeia produtiva, é um imposto regressivo, com maior impacto sobre os mais pobres. Mas há como eliminar este efeito, prevendo o abatimento da CPMF no Imposto de Renda e/ou reduzindo custos de transações eletrônicas (cartões de crédito e débito) que, no Brasil, são abusivos (entre 3% e 6% por transação, sendo que a CPMF seria de 0,2%). Enfim, a CPMF pode até auxiliar na cobertura de rombos do Estado, mas desde que não venha acompanhada do cinismo de colocar a culpa nos aposentados. Mas como este conjunto de sugestões demonstra, pode ser dispensável.

Corte de despesas sem atingir investimentos e direitos sociais

Porém, de nada adianta elevar a arrecadação se não houver corte em despesas. Não na forma apresentada pelo governo, com cortes em investimentos essenciais (R$ 3,8 bilhões no PAC), no Minha Casa Minha Vida (R$ 4,8 bilhões), na Saúde ( R$ 3,8 bilhões) e na Agricultura (R$ 1,1 bilhão – neste caso, já que o governo considera o recurso dispensável, ele deveria ser realocado para regularização das Terras Indígenas). Mesmo em relação a reajuste de salários de servidores, concursos públicos e abono de ermanência, em que o governo estima uma economia de R$ 9,7 bilhão, talvez fosse mais adequada a previsão de um corte de R$ 4,2 bilhões. Quanto à implementação do teto remuneratório, medida que surpreende por ainda não estar plenamente implantada, sem dúvida, há que instituir já, resultando em economia de R$ 800 milhões. Somados à redução de R$ 2 bilhões no custeio administrativos, haveria uma economia de R$ 7 bilhões – o que é pouco, ante a previsão inicial de R$ 26 bilhões de corte. Portanto, há que cortar mais, só que em outros lugares e com alcance muito mais significativo e sem que represente dano em Investimentos Públicos ou Direitos Sociais:

a) Baixar em três pontos percentuais na taxa de juros paga pelo Estado a seus credores (SELIC), reduzindo-a dos atuais 14,25% para 11,25%). Ainda assim seguiríamos com o maior juro real do mundo, mas em padrão mais civilizado. Economia: R$ 45 bilhões (uma vez e meia a arrecadação prevista para a CPMF). Forma de cálculo: Dívida Bruta próxima a R$ 4 trilhões, sendo pouco menos de 40% em títulos pós-fixados, com incidência da SELIC, resultando em pouco mais de R$ 15 bilhões (R$ 500 milhões por dia, incluindo domingos e feriados!) a cada 1% na taxa de juros. Antes que aleguem que redução na taxa de juros provoca alta na inflação, há que deixar bem claro que esta é a maior mentira que vem sendo contada ao povo brasileiro (tratei sobre este tema em artigo recente);

b) Cumprir a constituição e realizar Auditoria da Dívida Pública;

c) Cortar subsídios estatais: não os sociais, mas os subsídios indecentes do capitalismo de compadrio, para empresas como Friboi, grupo do Eike Batista (R$ 10 bi!) Odebrecht e outras, via BNDES. Estas empresas deveriam receber empréstimo de longo prazo ao custo de inflação mais juros de 0,5%, o que já é bem mais vantajoso em relação à média de juros para pelos brasileiros comuns. Economia ao Estado: R$ 26 bilhões ao ano (de novo, quase uma CPMF);

d) Realizar uma Reforma Ministerial de fato, reduzindo o número de ministérios para 20 a 22. Esta medida é absolutamente necessária, não somente para redução de despesas, como em ganho de eficiência. O que o governo está a propor não passa de mudança cosmética. Junto à redução dos ministérios há que reduzir os cargos de Direção, Gerência, Coordenação e Assessoria dos atuais 22.000 para 18.000, sendo que, destes, 15.000 a serem ocupados exclusivamente por servidores públicos, restando 3.000 para nomeação de profissionais de fora do quadro de carreira. Para efeito de comparação: no Reino Unido, país com PIB pouco superior ao Brasil e um terço da nossa população, os cargos de Livre Nomeação são 300. E mais: Quadro de Requisitos e Qualificação para ocupação de qualquer cargo público, até ministro de Estado. Para comparação: nos EUA há legislação assim, escrevi artigo sobre isso há alguns anos. Redução de Custo: R$ 1 bilhão.

e) Limitar as Emendas Parlamentares Individuais. Há casos em que as Emendas parlamentares individuais podem ter um bom papel, mas na maioria das vezes distorcem e paroquializam as políticas públicas, transformando direitos em dádivas. Em um parlamento a serviço do Bem Comum, o ideal seria que só houvesse emendas coletivas, via Comissões do Orçamento. Porém, dada a correlação de forças no Congresso, será difícil alterar esta situação. Mas, convenhamos, em tempos de crise e cortes orçamentários, reservar R$ 9,5 bi para emendas individuais é um absurdo. Há que fazer um corte de R$ 5 bilhões, no mínimo.

f) Reduzir os custos do Congresso e Judiciário. O custo do Congresso brasileiro é o maior do mundo, só igualável aos EUA, que tem população 50% maior que a nossa. Há alguns anos venho tratando deste tema. Não faz sentido um orçamento de quase R$ 10 bilhões para as atividades da Câmara e Congresso: há que cortar no mínimo R$ 1 bilhão para 2016 e congelar o valor para os anos seguintes, até que alcancemos um custo da atividade parlamentar mais equilibrado com a realidade mundial. E junto com esta redução, cortar em R$ 500 milhões a verba destinada aos partidos políticos, que foi aumentada em mais de 200% neste ano.

Custo do Judiciário: se o tempo é para cortes, tem que ser para todos. Até para que o Judiciário ganhe respeito da população é preciso cortar mordomias e vantagens, como auxílio moradia mesmo quando juízes tem casa na mesma cidade, ou verbas para transporte, livros, educação dos filhos; afinal, juízes e promotores já ganham muito, até em comparação a países da Europa ou EUA. No mínimo, um corte de R$ 1 bilhão.

Corte de Despesas: R$ 86,5 bilhões (sem cortar nenhum direito social ou investimentos)

Como resultado, um Ajuste Fiscal Cidadão permitirá reduzir o Déficit Público dos atuais 8% do PIB para 5,5% (elevação de receitas em R$ 100 bilhões e Corte de Despesas em R$ 86,5 bilhões), permitindo que o país atravesse esta crise com muito menos dano à população. Se continuado nos anos seguintes, poderemos chegar em 2018 com um déficit bastante aceitável (3% ou menos), além de permitir a imediata reativação da economia. Sei que este estudo é apenas um ensaio e os que estão no poder (sejam do governo, sejam da oposição conservadora) darão os ombros a estas ideias, mas fica a sugestão. E o desejo para que, quem sabe um dia, o Estado brasileiro seja administrado com justiça e de acordo com as necessidades do povo brasileiro.

Salvador Allende: 42 anos de um golpe

Em 11 de setembro de 1973 eu cursava a Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense e tomei conhecimento, chocado, do brutal golpe militar que derrubou e assassinou o presidente eleito Salvador Allende. Muitos, artistas, políticos e pessoas comuns, foram presos, torturados e assassinados pela ditadura de Augusto Pinochet.

Lamentavelmente, observo que está sendo feita uma deliberada opção pelo “esquecimento” de fato tão grave para a história da América Latina.

Uns poucos blogs lembraram. Cynara Menezes publicou em seu blog o texto abaixo, de autoria de Darcy Ribeiro. Tomei conhecimento do post no blog do Miro. Considero o texto uma homenagem a Salvador Allende.

A “inviabilização do governo de Salvador Allende começou no mesmo dia de sua eleição e terminou com sua deposição por um golpe militar que, em suposta defesa da democracia, implantou uma ditadura sanguinária.

Na América Latina a história sempre se repete: governos que procuram governar para a maioria desassistida sempre vão ter que enfrentar, mais cedo ou tarde, a oposição dos grupos privilegiados que não aceitam repartir seus privilégios. E, se o resultado das urnas não lhes é favorável, estes grupos derrotados inventam alguma forma de tomar o poder, seja por meio de um golpe militar ou, como nos dias atuais, de um golpe midiático.

Paulo Martins

Salvador Allende e a esquerda desvairada
Por Darcy Ribeiro, Lima, setembro de 1973

Escrevo sobre um estadista. O mais lúcido com quem convivi e o mais combativo. Um estadista que deixa como legado para nossa reflexão a experiência revolucionária mais generosa e avançada do nosso tempo: edificar o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade.

(…)

Conheci Salvador Allende em 1964, quando ele nos foi visitar, a João Goulart e a seus ex-ministros, exilados no Uruguai. Sempre me recordarei das longas conversas que tivemos então. Recordo, sobretudo, o deslumbramento com que ouvi – eu era, então, um provinciano brasileiro, que só depois aprenderia a ser latino-americano – a lucidez e a paixão com que ele analisava e avaliava nosso fracasso.

Através de suas palavras, percebi, pela primeira vez, claramente, as dimensões continentais e mundiais do nosso fracasso e o seu terrível impacto sobre a luta de liberação da América Latina.

(…)

Meu sentimento sempre foi – e o é, desde agora – o de que Allende, no plano ideológico, era um homem só, sem ajuda. Incompreendido. Mesmo os chilenos mais próximos dele se surpreendiam a cada dia com a grandeza do homem que os incitava e comandava. Não lhes era fácil substituir a imagem corrente do senador, tantas vezes candidato à presidência, pela figura do estadista que nele reconheciam agora, surpresos e às vezes duvidosos. Mais difícil ainda, para muitos, era aceitar a sua liderança de estadista, dentro de um processo político, quando o que aspiravam na realidade era um comandante à frente de um grupo de ação direta.

Aquele homem sozinho encabeçava, delineava e dirigia o processo mais generoso e complexo do mundo moderno, elevando o Chile a alturas incomparáveis de criatividade teórica e a impensáveis ousadias de repensar tudo o que as esquerdas tinham como dogmas. Sua tarefa era nada menos que abrir uma rota nova – evolutiva – ao socialismo.

(…)

Para esta gigantesca tarefa político-ideológica, Allende estava só. Para uns, os ortodoxos, a via chilena era uma espécie de armadilha da história que punha em risco conquistas e seguranças duramente conquistadas em décadas de lutas. Apesar disso, foram eles os que melhor compreenderam o processo em sua especificidade e os que mais ajudaram , tanto a realizar suas potencialidades, como a reconhecer suas limitações. Mas isto é dizer muito pouco ainda quando, na realidade, os comunistas chilenos foram o único apoio sólido e seguro com que Allende contou em seus três anos de luta.

Para outros, os desvairados, não existia nenhuma via chilena. Na cegueira de seus olhos cegados por esquemas formalistas e no sectarismo de sua disposição unívoca para um voluntarismo, tão heróico quanto ineficaz, eles só queriam converter o Chile em cuba, concebida como único modelo possível de ação revolucionária. Além de visivelmente inaplicável às circunstâncias chilenas, o modelo que tinham em mente não era mais que uma má leitura teórica da experiência cubana. E, como tal, inaplicável em qualquer parte, porque si via nela a ação armada, fechando os olhos à complexa conjuntura política dentro da qual a ação guerrilheira teve ali, e só ali, lugar e eficácia.

(…)

Os socialistas, membros de um partido eleitoreiro, viviam do antigo, renovado e crescente prestígio popular de Allende: mas, vazios de uma ideologia própria, passaram a funcionar como uma caixa de ressonância dos desvairados, criando com o seu radicalismo verbal a sua inflexibilidade tática os maiores obstáculos à política do governo. De fato, a maioria de suas facções atuou mais contra Allende – através de denúncias despropositadas, de exigências infantis e de propostas provocativas – que contra o inimigo, jamais reconhecendo o caráter gradualista do processo chileno ou ajustando-se a seus requisitos específicos. Entregues a disputas estéreis com os comunistas, o socialistas punham nelas mais energias do que na luta concreta contra o inimigo comum.

(…)

O que vi foram muitos dos “melhores teóricos” – porque haviam lido e escrito mais esta tolice exegética que se autodenomina marxismo de vanguarda – vagando pelo Chile como se estivessem na lua, incapazes de perceber e de entender o processo revolucionário que tinham diante deles, porque para seus olhos cegos tratava-se de um mero “reformismo”.

(…)

Desde o primeiro momento, Allende percebeu com toda lucidez que eram falsos ou que não se aplicavam à via chilena alguns dos célebres dogmas das esquerdas desvairadas. Entre eles o de que se avança para o socialismo exclusivamente pela luta armada; o de que o socialismo se constrói sobre o caos econômico; e o de que é necessário derrubar primeiro toda a legalidade “burguesa” para abrir caminho para o socialismo.

O primeiro destes dogmas pressupunha a convicção de que entre o status quo e o socialismo estaria uma vitória militar sobre as forças armadas. Allende sabia que não podia enfrentá-las diretamente, e as via com maior objetividade. Primeiro, como uma burocracia tão disciplinada e hierarquizada que poderia, talvez, ser submetida aos poderes institucionais se se mantivesse a ordem constitucional. Segundo, como uma instituição eminentemente política, com tendências fascistas – por lealdades classistas, por sua constituição gerontocrática e seu doutrinamento anti-revolucionário – mas suscetível de ser ganha ou anulada politicamente pela ação disciplinada do povo organizado dentro de um movimento ao socialismo em democracia, pluralismo e liberdade.

(…)

Entretanto, para prosseguir neste controle institucional das forças armadas, seria necessário preencher um requisito indispensável: o de que Allende tivesse, efetivamente, o comando unificado sobre as esquerdas militantes e as pusesse em ação dentro do processo de transição pacífica ao socialismo. Isso ele jamais conseguiu. Os atos desesperados da esquerda desvairada, somados à inércia e à demagogia dos confusos líderes socialistas, contribuíram para minar estas condições, facilitando assim a conspiração de uma direita unida, francamente entregue à contra-revolução, e para isso apoiada internacionalmente através de toda ordem de sabotagens econômicas e financeiras, articuladas e desencadeadas com rigor científico para inviabilizar seu governo.

Nestas condições, as lideranças democratas-cristãs, aliadas à extrema direita, fizeram do Parlamento um órgão de provocação, chantagem e bloqueio ao poder executivo; ao mesmo tempo em que as altas hierarquias do poder judiciário questionavam a legalidade dos atos do governo. Simultaneamente seus aparelhos ideológicos levavam as camadas médias ao desespero, pelo terror de perder, não o que tinham –que era bem pouco– mas suas esperanças de enriquecimento e prestígio que, segundo se dizia, em um regime socialista lhes seriam completamente negadas.

(…)

Há muito o que aprender desta experiência única de repensar com originalidade os princípios da política econômica para conduzir um processo de transição ao socialismo, dentro da institucionalidade vigente. Entre suas vitórias estão: a de haver acabado com o desemprego; a elevação substancial do padrão de vida das camadas mais pobres; o aumento ponderável da produtividade industrial; a ativação da Reforma Agrária; a imposição do controle estatal sobre os bancos privados e o comércio exterior; a socialização das empresas-chave e, sobretudo, a recuperação para os chilenos das riquezas nacionais, começando pelo cobre, sujeito desde sempre às mãos estrangeiras.

Em três anos, Allende conseguiu mais por esta via, do que qualquer revolução socialista em igual período. Por isto é que, mesmo sendo governo, ganhou eleições, o que jamais havia ocorrido no Chile. Mas também levou ao desespero os privilegiados, desafiando-os a promover a contra-revolução como único modo de garantir a sua sobrevivência como classe hegemônica. Para isso, eles atuaram principalmente sobre os militares e sobre as classes médias cuja alianças lhes garantiria a vitória.

(…)

Este artigo é uma incitação para que meditemos sobre esta lição com o devido respeito por sua grandeza e com a coragem necessária à autocrítica. Todos nós, as esquerdas da América Latina e do mundo, fomos derrotados no Chile. Cada um de nós tem, consequentemente, a sua autocrítica a fazer, tanto pelo que fizemos de danoso ao processo chileno, como pelo que deixamos de fazer em seu apoio. Acusar apenas ao inimigo que nos venceu pela enumeração minuciosa de seus atos, apenas reitera a convicção generalizada sobre sua eficiência. Nossa tarefa é vencê-lo.

O que não pode ser posto em dúvida é que Allende explorou até os últimos limites as possibilidades que a história abriu aos chilenos de edificar o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade. E que a Unidade Popular teve possibilidades de vitória com respeito às quais a direita chilena e o imperialismo jamais duvidaram. Sua lição é ter nos indicado um caminho duro e difícil. Um caminho que exigirá, amanheça, dos que o retomarem, a mesma lucidez, inteireza, retitude e coragem com que Allende marchou para ele até a morte, com o propósito de, sobre sua derrota, abrir uma via vitoriosa ao socialismo. A via evolutiva, participatória, pluralista, parlamentar e democrática, apesar de tão dificultosa é a mais praticável em muitas conjunturas no mundo de hoje.

Com Che Guevara a história nos deu o herói-mártir do voluntarismo revolucionário que dignificou a imagem desgastada das lideranças da velha esquerda ortodoxa. Com Allende, a história nos dá o estadista combatente que chega à morte lutando, em seu esforço por abrir aos homens uma nova porta para o futuro, um acesso ao socialismo libertário que pode e que deve ser.

Ele será o inspirador dos que terão futuramente que lutar pelo socialismo, sob oposição parlamentar e debaixo do risco de um golpe militar. Oxalá, onde e quando isso ocorra, exista uma esquerda por fim politicamente madura e dessacralizada de dogmatismos, tão combativa quanto lúcida e sobretudo capacitada para ver objetivamente a situação em que atua e para aceitar e enfrentar as tarefas que a história lhe proponha.

Bancos: a apropriação da riqueza social

Livro de Ellen Brown revela como bancos organizam, dia a dia, apropriação da riqueza social. Sua alternativa: reinventar um sistema bancário público

Resenha de Ladislau Dowbor

Publicado em outrapalavras.com
Resenha de:
The Public Bank Solution: from Austerity to Prosperity
Por Ellen Brown
Third Millenium Press, Baton Rouge, 2013, 471p.
Disponível (em inglês) na Amazon ou (diversos capítulos) no site da autora

Ellen Brown vai direto ao ponto: “Os bancos são de propriedade e controle privados, com o mandato de servir aos interesses limitados dos seus acionistas; e esses interesses e o interesse público frequentemente entram em conflito. O que é bom para Wall Street não é necessariamente bom para a economia…O edifício bancário privado constitui uma máquina massiva cujo objetivo principal é o de se manter a si mesmo. O que está sendo preservado é uma forma extrativa de atividade bancária que está se provando ser insustentável, e que atingiu os seus limites matemáticos. Um parasita que devora a sua fonte de alimentação e que perecerá junto com a sua fonte de alimentação”.(419) Quando vemos no Brasil o Banco Itaú aumentando em 22% nos últimos 12 meses os seus lucros já fenomenais, numa economia parada, temos de prestar atenção. Este enriquecimento vem de onde?

O caos planetário gerado pelos sistemas financeiros privados, tal como existem desde a desregulação a partir dos anos 1980, só não vê quem não quer. E também – isto é crucial – quem não tem acesso a informações sobre como funcionam, e isto significa a imensa maioria da população. Professores, advogados, engenheiros, políticos dos mais variados tipos, com algumas honrosas exceções, simplesmente não entendem. Na realidade, não há tanto mistério nisto, pois apesar do dinheiro sob suas diversas formas ser na era moderna o principal vetor de organização da sociedade, por alguma razão os seus mecanismos não figuram em nenhum currículo escolar. Mesmo nos cursos superiores, simplesmente não figura, a não ser em economia, e ainda assim na versão assexuada, ou seja, aquela que não implica entender quem efetivamente se apropria do dinheiro e de que maneira, pois isso já seria política.

Depois de ter deixado a sua forma material – ouro ou outra expressão que tem valor em si – e depois de ter abandonado até o papel-moeda que hoje tem importância marginal, o dinheiro passou a ser apenas uma notação magnética, imaterial, com imensa volatilidade, podendo ser criada e transferida na velocidade da luz. Os mecanismos deste universo planetário são dominados por grandes corporações, em particular os 28 bancos “sistemicamente significativos”, onde trabalham especialistas que estes sim entendem tudo deste novo universo, onde o enriquecimento não se atinge produzindo riquezas, como no bom velho capitalismo, mas gerando sinais magnéticos que dão aos seus detentores direitos sobre o produto dos outros.

Joseph Stiglitz chamou justamente a atenção para a importância desta “assimetria de informação”. Um número crescente de instituições hoje trabalham para cobrir o fosso, como o Tax Justice Network, o Global Financial Integrity e muitas outras, além de pesquisadores como o hoje indispensável Thomas Piketty. O sucesso deste último, aliás, não se deve a qualquer genialidade particular, mas ao fato de ter explicitado como o sistema funciona. E quem leu, passa a entender, e esta coincidência entre a explicação e o universo que vemos é que gera o sucesso. Passamos a entender. Isto é boa ciência.

Piketty explica uma dimensão global: quando os ricos, em vez de investir, passam a fazer aplicações financeiras, ganhando dinheiro com dinheiro e não com a produção de sapatos, e quando esta forma de ganhar dinheiro permite inclusive se apropriar do lucro de quem produz, o sistema se desequilibra. É a tal da financeirização. A importância de entender os mecanismos não se deve a um preciosismo intelectual, mas ao fato de que deveremos cedo ou tarde por ordem no sistema. Hoje 85 famílias detêm (essencialmente sob forma de sinais magnéticos que são “direitos”) mais riqueza do que a metade mais pobre da humanidade, 3,5 bilhões de pessoas que labutam seriamente. Não é mais possível não ver o elefante no meio da sala.

O aporte de Ellen Brown é diferente do de Thomas Piketty: ela destrincha o funcionamento concreto dos bancos, de como se organiza no dia a dia esta apropriação de riqueza por quem não produz. A orientação dela é clara: o setor público tem de recuperar o controle da emissão desses “direitos”, e assegurar que o financiamento sirva a financiar o desenvolvimento. Subversivo? O artigo 192 da nossa constituição determina que o sistema financeiro nacional seja “estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade”, fixando ainda um limite às taxas de juros reais, sendo que “a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei irá determinar.” A lei, evidentemente, não determinou nada, pois as eleições são financiadas livremente pelas corporações, segundo lei de 1997, aliás rigorosamente inconstitucional.

Nesta era de caos financeiro, o livro de Ellen é muito bem-vindo. A primeira parte é um resgate do processo histórico, de Wall Street a Beijing, o que ajuda a entender como se articulam as instituições criadas e os grandes grupos de interesses. Os inúmeros exemplos tanto das iniciativas de regulação como da organização diferenciada segundo os países – a Alemanha com os seus sparkassen, a Polônia com as suas cooperativas de crédito, a China com os seus sistemas descentralizados de gestão financeira, o próprio papel da nossa Caixa Econômica Federal e muito outros – ajudam a entender que este universo pode sim ser resgatado aplicando soluções de comprovada eficiência. O estudo fecha com propostas de uma nova teoria monetária, o que ajuda muito.

Uma belíssima leitura, tapando um imenso buraco negro de informação não só na academia como na população instruída em geral. Um amplo glossário dos termos técnicos ajuda muito. Não é um livro para economistas, e sim para qualquer pessoa com boa formação que queira entender para onde vamos.

O novo normal e o cemitério das nações

Por Saul Leblon, no site Carta Maior:

(também publicado pelo Miro, em seu blog).

A ideia de que o Brasil não tem mais jeito é poderosa, conta com avalistas de peso.
Interesses antipopulares, em qualquer época, acalentam esse horizonte sem ponto de fuga, onde se possa acuar qualquer iniciativa que desafie a lógica conservadora.

Essa por exemplo: dar a Moro o que é de Moro; e devolver à sociedade brasileira a prerrogativa de organizar o seu desenvolvimento, recapacitar suas empreiteiras, resgatar projetos estratégicos, descongestionar o futuro, o investimento, o emprego e a renda.

‘Não, não, não , isso não pode, é pênalti’, apita o bandeirinha José Serra.

Do camarote cativo que lhe concede o jornalismo isento, o tucano crocita como se fora ave de outra cepa.

Não há esperança, insiste, os dedos longos estendidos como bisturis a lancetar o futuro.

‘No governo Jango, o Brasil ao menos estava dividido’, recorda, testemunha ocular daquele golpe.

‘Hoje a rejeição é total’, constata agora do outro lado da mesa, onde passou a ocupar o papel de embaixador da Chevron nesse tratado de Viena em gestação, no qual preconiza transformar poços do pré-sal em reparações de guerra servidas aos mercados.

Quando? Assim que a saturação do ‘consenso’ virar outra coisa.

Talvez aquela que os editoriais de março de 1964 exprimiam em garrafais exclamativas, do tipo ’Basta!’; ‘Fora!’

Serra viveu aquilo; ele sabe que consensos são construções transitórias.

Não raro postiças.

Caso da rendição incondicional que se exige hoje da sociedade, em agendas que magnificam os desafios da nação para desmantelá-la.

Os imperativos de ontem, assim como os ajustes e hoje, viram fumaça porém quando o futuro ganha a largueza de uma outra lógica, que redefine a correlação de forças e a alocação dos recursos, pavimenta pactos e linhas de passagem para destravar o desenvolvimento.

O economicismo veta (‘não, não há saída antes de piorar’).

Mas o economicismo é a soberba da razão e não o motor da história.

Política é economia concentrada.

Os exclamativos alardeados em 1964 demonizavam os conflitos do desenvolvimento como ameaças à democracia.

Dados coletados pelo Ibope então mas não divulgados (e hoje armazenados na Unicamp), mostravam uma realidade distinta da ira consensual sentenciada pelas aves de agouro da época.

Nos dias 20 e 30 de março de 1964, quando a democracia já era tangida ao matadouro pelos seus paladinos, pesquisadores constatavam nas ruas que 59% dos brasileiros apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente João Goulart para enfrentar a crise.

Uma parte delas seria oficializada na famosa sexta-feira, 13 de março.

Em comício na Central do Brasil, ‘Jango’ assinaria então vários decretos que expropriavam terras às margens das rodovias para a reforma agrária, nacionalizavam refinarias, sinalizavam a reforma urbana, fiscal e educacional.

Tudo o que era demonizado pelo jogral golpista como se fora a voz da sociedade era apoiado pela parcela majoritária da população.

Estamos falando de 1964 ou de 2015?

Dos dois.

Um aparato midiático interliga os calendários com a mesma determinação de ocultar elementos da encruzilhada econômica, exacerbar adversidades, manipular o debate e interditar as reformas requeridas nas transições de ciclo de desenvolvimento.

Foi assim que se modelou a opinião pública para o golpe em 64, mesmo contra o discernimento majoritário da população sobre as ‘reformas de base’.

O martelete da corrupção e do comunismo imobilizou esse discernimento.

Em grande medida foi assim também que se logrou convencer o governo reeleito em 2014 de que nada mais restava do que renunciar ao seu programa para adotar o do adversário.

Caso contrário, um meteoro atingiria o país para desintegrá-lo.

Um pouco como a fatalidade crocitada por Serra, que não informa o que nos reserva o day after de seu vaticínio.

Mas há pistas.

Siga o dinheiro.

Ou as entrevistas do ex-presidente do BC, no governo Fernando Henrique Cardoso, Armínio Fraga

Cogitado para comandar a economia em qualquer governo conservador, sua receita –reiterada no Valor, na semana passada, é tão peremptória quanto os imperativos de 64.

O país precisa de uma faxina econômica – ‘como a que fizemos em 1999’, diz ele.

O que eles fizeram em 1999?

Lançaram as fundações daquilo que debitam agora exclusivamente à lista de pecados de Lula e Dilma.

Valorizaram a moeda artificialmente para criar a pretensa bonança do Real forte, com base em importações baratas.

Essa foi a pré-compra da reeleição.

Perto disso, os R$ 200 mil do deputado Ronivon foi troco de pinga.

A desindustrialização alçou voo aí para não mais aterrissar.

A decolagem abriu um buraco nas contas externas equivalente a 4,3% do PIB no ano seguinte ao da reeleição.

A purga veio na forma de uma maxidesvalorização que se pretendia ‘controlada´ em 8%.

Isso era o que se dizia em 1º de janeiro de 1999.

No dia 29 ela já havia batido em 60% (fatiando assim o poder de compra da famílias assalariadas).

A taxa de juro foi calibrada então para segurar o rebote dos preços desprovidos da âncora dos importados.

Armínio deu ao mercado financeiro local e global uma Selic real (acima da inflação) de 22% . Hoje está perto de 8% e Serra, distraído, diz que isso é uma calamidade.

É mesmo, mas o passado a relativiza.

O salário mínimo (ajustado p/ efeito de comparação aos preços de 2011) despencaria de R$ 414 reais em 1990 para R$ 287 reais após a purga.

Juros em alta, dívida pública em escalada sideral, salários pelo ralo.

Foi isso que ‘fizemos’ em 1999.

O país só escapou do precipício porque havia um vento à favor no mercado mundial.

O dólar forte levaria os EUA às compras; a fome chinesa por commodities ganhava corpo; os saldos comerciais incentivariam a América Latina a importar manufaturados do Brasil.

Esse mundo acabou.

E o que começou será fortemente modelado por aquilo que a China anuncia como sendo o seu ‘novo normal’.

A saber: esgotamento do ciclo puxado por taxas de investimento de 45% do PIB (Brasil, 17,5%) e menor demanda por matérias primas.

Não só.

A transição chinesa vem se fundir à longa convalescença da desordem neoliberal inaugurada em 2008 e sem prazo para acabar.

Os impactos já são palpáveis.

A anemia do comércio mundial emparedou as economias emergentes, tirou o canal de recuperação da Europa e rebateu nas vendas da China.

A resposta de Pequim adicionou lava vulcânica à fervura com uma desvalorização cambial que pode contagiar o mundo.

Só na semana passada, o rublo sofreu uma depreciação de 5,3%; o peso colombiano, de 4,1%, o peso mexicano, 3,2% e a lira turca, quase 3%.

Em contrapartida, o dólar valorizado derrubou as exportações norte-americanas em quase 3% no 1ºsemestre.

E as importações não escaparam de uma retração de 2,2% evidenciando (ademais do fator petróleo) o calcanhar de Aquiles que impede Obama de ser um Roosevelt : a corrosão estrutural do poder de compra das famílias assalariadas e da classe média antes afluente.

O maior mercado capitalista do planeta arfa com os pulmões do consumo comprometidos.

Obama paga a fatura de quatro décadas de ventos neoliberais em que a pujança econômica se dissociou da oferta de empregos de qualidade, realocados com a indústria para o desfrute dos custos asiáticos.

No momento em que o dínamo chinês patina, o mundo percebe as estreitas interações do metabolismo capitalista, agora desprovido de qualquer ponto de apoio dinâmico.

Tudo o que é sólido se desmancha no ar.

Na semana passada, a indústria chinesa crescia ao ritmo mais baixo desde 2009; a dos EUA, no mais baixo dos últimos dois anos.

A correia sino-americana que puxava o mundo travou.

Entre 15% e 20% do faturamento global das múltis dos EUA ocorrem na China (e Japão). Se essa endogamia entra em litígio, o que sobra?

O ‘novo normal’.

A China cresce menos, o comércio global encolhe, os EUA patinam , a Europa desidrata, o mundo emergente regride e a guerra cambial se impõe.

Pergunta aos Armínios e Levys:

–Esse miserável mundo novo recomenda a adoção de uma ajuste baseado em arrocho fiscal, esfarelamento do poder de compra interno, desemprego, juros recessivos e retração do investimento público?

Como ‘fizemos’ em 1999?

E se não der certo agora no mundo contraído de 2015?

Como de fato já não deu o lacto purga de Levy. Esse que acentuou a recessão, elevou a inflação, derrubou a receita fiscal e vitaminou o déficit público que se pretendia reduzir.

Arroche-se ainda mais –‘como fizemos em 1999’, insiste o perseverante Armínio no seu parlatório no Valor.

Até?

Até emergir o milagre da contração expansiva. Essa fé ortodoxa na ressurreição que sanciona catástrofes sociais e humanas em nome de um equilíbrio endógeno que o capitalismo simplesmente não pode satisfazer.

Há oito anos a população grega espera pelo milagre. Seu metabolismo econômico e social em carne viva suporta a salmoura de ajustes sucessivos.

Igual terapêutica prescreve-se agora para uma economia brasileira pecadora, ‘envenenada’ pela criação ‘voluntarista’ –dizem FHC, Armínio, Aécio e assemelhados…– de 20 milhões de empregos em 12 anos, ademais das pressões de um mercado de massa de 100 milhões de pessoas.

Esse Brasil não cabe no orçamento.

É o que sibila o cerco à Constituição de 1988.

O recado que unifica as redações mostra que o tanquinho de areia de Kim Catupiry é coisa séria: despesas obrigatórias consagradas pela Carta Cidadã proclamada pelo digno brasileiro Ulysses Guimarães estão na alça de mira de uma curetagem conservadora

Com que finalidade?

‘Transformar direitos universais em serviços pagos’, adverte a professora Marilena Chauí em suas aulas públicas.

Ou para dizer a mesma coisa em uma chave política: abortar exemplarmente a ousadia de se construir uma democracia social na sétima maior economia do planeta e principal referência da luta pelo desenvolvimento, depois da China.

Passados seis meses da festejada terapia, impôs-se ao governo, felizmente, a constatação de que o aperto no crédito e no investimento –com corte de gastos e elevação de juros, jogou a economia num buraco mais fundo do que já se encontrava.

O fracasso favorece a retificação de curso?

Em parte sim.

Mas o país só se libertará da lógica conservadora, de fato, se as fileiras progressistas conseguirem superar sectarismos e hesitações para promover uma verdadeira repactuação democrática do futuro brasileiro.

Não se trata de um jogo do tipo o vencedor leva tudo.

É uma negociação.

Implica desenhar linhas de passagem ordenadas por metas, concessões, salvaguardas e escalonamentos de perdas e ganhos.

As opções são duas: crise permanente à moda grega; ou o desassombro de politizar as escolhas do desenvolvimento.

A pá de cal jogada por Serra não é uma fatalidade, mas um ingrediente do acirramento da luta de classes.

Na margem do rio em que ele se encontra interessa dizer, à moda Thatcher, ‘there is no alternative’.

Há. Mas precisa ser pavimentada com a construção dos sujeitos dotados de força e consentimento para renegociar alternativas.

Erra o tucano ao não conceder à Presidenta Dilma uma base de apoio histórica.

Ela existe, objetivamente; mas aguarda a agenda que lhe dará a identidade subjetiva que a ação política requer.

O colapso da receita ortodoxa abre a oportunidade para esse resgate.

Precisa ser acionado, porém, antes que o país, seu povo e o desenvolvimento sejam mastigados pelo miserável mundo novo esboçado no novo normal do capitalismo.

Passa da hora de uma agenda que fale ao futuro de toda a sociedade.
Que dê a Moro o que é de Moro.

E à democracia a prerrogativa de contrapor o investimento à ruína.

Devolver à sociedade o comando do seu destino era como Celso Furtado definia a essência do desenvolvimento.

É preciso ir à essência para escapar aos coveiros que recusam ao Brasil outro destino que não o cemitério das nações.

Para ler em 2050, por Boaventura de Sousa Santos

Porque teimamos, depois de tudo?

Porque estamos a reaprender a alimentar-nos da utopia, erva daninha que a época passada mais radicalmente tentou erradicar, recorrendo para isso aos mais potentes e destrutivos herbicidas mentais.

Por Boaventura de Sousa Santos

Publicado em Carta Maior

Para ler em 2050
É estranho que uma época que começou como só tendo futuro tenha terminado como só tendo passado.

“Quando um dia se puder caracterizar a época em que vivemos, o espanto maior será que se viveu tudo sem antes nem depois, substituindo a causalidade pela simultaneidade, a história pela notícia, a memória pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema pela solução.

Assim, as atrocidades puderam ser atribuídas às vítimas, os agressores foram condecorados pela sua coragem na luta contra as agressões, os ladrões foram juízes, os grandes decisores políticos puderam ter uma qualidade moral minúscula quando comparada com a enormidade das consequências das suas decisões.

Foi uma época de excessos vividos como carências; a velocidade foi sempre menor do que devia ser; a destruição foi sempre justificada pela urgência em construir. O ouro foi o fundamento de tudo, mas estava fundado numa nuvem. Todos foram empreendedores até prova em contrário, mas a prova em contrário foi proibida pelas provas a favor. Houve inadaptados, mas a inadaptação mal se distinguia da adaptação, tantos foram os campos de concentração da heterodoxia dispersos pela cidade, pelos bares, pelas discotecas, pela droga, pelo facebook.

A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para a publicitar. O insulto tornou-se o meio mais eficaz de um ignorante ser intelectualmente igual a um sábio.

Desenvolveu-se o modo de as embalagens inventarem os seus próprios produtos e de não haver produtos para além delas. Por isso, as paisagens converteram-se em pacotes turísticos e as fontes e nascentes tomaram a forma de garrafa. Mudaram os nomes às coisas para as coisas se esquecerem do que eram. Assim, desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia. A própria guerra passou a chamar-se paz para poder ser infinita. Também a Guernika passou a ser apenas um quadro de Picasso para não estorvar o futuro do eterno presente. Foi uma época que começou com uma catástrofe mas que em breve conseguiu transformar catástrofes em entretenimento. Quando uma catástrofe a sério sobreveio, parecia apenas uma nova série.

Todas as épocas vivem com tensões, mas esta época passou a funcionar em permanente desequilíbrio, quer ao nível coletivo, quer ao nível individual. As virtudes foram cultivadas como vícios e os vícios como virtudes. O enaltecimento das virtudes ou da qualidade moral de alguém deixou de residir em qualquer critério de mérito próprio para passar a ser o simples reflexo do aviltamento, da degradação ou da negação das qualidades ou virtudes de outrem. Acreditava-se que a escuridão iluminava a luz, e não o contrário.

Operavam três poderes em simultâneo, nenhum deles democrático: capitalismo, colonialismo e patriarcado; servidos por vários sub-poderes, religiosos, mediáticos, geracionais, étnico-culturais, regionais. Curiosamente, não sendo nenhum democrático, eram o sustentáculo da democracia-realmente-existente. Eram tão fortes que era difícil falar de qualquer deles sem incorrer na ira da censura, na diabolização da heterodoxia, na estigmatização da diferença.

O capitalismo, que assentava nas trocas desiguais entre seres humanos supostamente iguais, disfarçava-se tão bem de realidade que o próprio nome caiu em desuso. Os direitos dos trabalhadores eram considerados pouco mais que pretextos para não trabalhar. O colonialismo, que assentava na discriminação contra seres humanos que apenas eram iguais de modo diferente, tinha de ser aceite como algo tão natural como a preferência estética. As supostas vítimas de racismo e de xenofobia eram sempre provocadores antes de serem vítimas. Por sua vez, o patriarcado, que assentava na dominação das mulheres e na estigmatização das orientações não heterossexuais, tinha de ser aceite como algo tão natural como uma preferência moral sufragada por quase todos. Às mulheres, homossexuais e transsexuais haveria que impor limites se elas e eles não soubessem manter-se nos seus limites.

Nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e selectivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade. O primado do direito vivia em ameno convívio com o primado da ilegalidade. Era normal desconstituir as Constituições em nome delas.

O extremismo mais radical foi o imobilismo e a estagnação. A voracidade das imagens e dos sons criava turbilhões estáticos. Viveram obcecados pelo tempo e pela falta de tempo. Foi uma época que conheceu a esperança mas a certa altura achou-a muito exigente e cansativa. Preferiu, em geral, a resignação. Os inconformados com tal desistência tiveram de emigrar. Foram três os destinos que tomaram: iam para fora, onde a remuneração económica da resignação era melhor e por isso se confundia com a esperança; iam para dentro, onde a esperança vivia nas ruas da indignação ou morria na violência doméstica, no crime comum, na raiva silenciada das casas, das salas de espera das urgências hospitalares, das prisões, e dos ansiolíticos e anti-depressivos; o terceiro grupo ficava entre dentro e fora, em espera, onde a esperança e a falta dela alternavam como as luzes nos semáforos. Pareceu estar tudo à beira da explosão, mas nunca explodiu porque foi explodindo, e quem sofria com a explosões ou estava morto, ou era pobre, subdesenvolvido, velho, atrasado, ignorante, preguiçoso, inútil, louco – em qualquer caso, descartável. Era a grande maioria, mas uma insidiosa ilusão de óptica tornava-a invisível. Foi tão grande o medo da esperança que a esperança acabou por ter medo de si própria e entregou os seus adeptos à confusão.

Com o tempo, o povo transformou-se no maior problema, pelo simples facto de haver gente a mais. A grande questão passou a ser o que fazer de tanta gente que em nada contribuía para o bem estar dos que o mereciam. A racionalidade foi tão levada a sério que se preparou meticulosamente uma solução final para os que menos produziam, por exemplo, os velhos. Para não violar os códigos ambientais, sempre que não foi possível eliminá-los, foram biodegradados. O êxito desta solução fez com que depois fosse aplicada a outras populações descartáveis, tais como os imigrantes, jovens das periferias, toxicodependentes, etc.

A simultaneidade dos deuses com os humanos foi uma das conquistas mais fáceis da época. Para tal bastou comercializá-los e vendê-los nos três mercados celestiais existentes, o do futuro para além da morte, o da caridade, e o da guerra. Surgiram muitas religiões, cada uma delas parecida com os defeitos atribuídos às religiões rivais, mas todas coincidiam em serem o que mais diziam não ser: mercado de emoções. As religiões eram mercados e os mercados eram religiões.

É estranho que uma época que começou como só tendo futuro (todas as catástrofes e atrocidades anteriores eram a prova da possibilidade de um novo futuro sem catástrofes nem atrocidades) tenha terminado como só tendo passado. Quando começou a ser excessivamente doloroso pensar o futuro, o único tempo disponível era tempo passado. Como nunca nenhum grande acontecimento histórico foi previsto, também esta época terminou de modo que colheu todos de surpresa. Apesar de ser geralmente aceite que o bem comum não podia deixar de assentar no luxuoso bem estar de poucos e no miserável mal-estar das grandes maiorias, havia quem não estivesse de acordo com tal normalidade e se rebelasse.

Os inconformados dividiam-se em três estratégias: tentar melhorar o que havia, tentar romper com o que havia, tentar não depender do que havia. Visto hoje, a tanta distância, era obvio que as três estratégias deviam ser utilizadas articuladamente, ao modo da divisão de tarefas em qualquer trabalho complexo, uma espécie de divisão do trabalho do inconformismo e da rebeldia. Mas, na época, tal não foi possível, porque os rebeldes não viam que, sendo produto da sociedade contra a qual lutavam, teriam de começar por se rebelar contra si próprios, transformando-se eles próprios antes de quererem transformar a sociedade. A sua cegueira fazia-os dividir-se a respeito do que os deveria unir e unir-se a respeito do que os devia dividir. Por isso, aconteceu o que aconteceu. O quão terrível foi está bem inscrito no modo como vamos tentando curar as feridas da carne e do espirito ao mesmo tempo que reinventamos uma e outro.

Porque teimamos, depois de tudo? Porque estamos a reaprender a alimentar-nos da erva daninha que a época passada mais radicalmente tentou erradicar, recorrendo para isso aos mais potentes e destrutivos herbicidas mentais – a utopia.”

A nova marcha dos insensatos e a sua primeira vítima, por Mauro Santayana

Se analisarmos o texto, as preocupações e a densidade e coerência dos argumentos do autor, vamos concluir de imediato que se trata de um Jornalista da escola antiga. Mauro Santayana nasceu em agosto de 1932.

Não pertence à escola de jornalismo que pariu Sardenbergs, Mervais, Augustos, Escosteguis e tantos outros ‘miquinhos amestrados’, bem pagos, que praticam o ‘novo normal” no jornalismo nacional.

Da escola dos grandes jornalistas sobraram poucos. Santayana está neste time: sempre coerente, cidadão e nacionalista.

Discordei de algumas posições suas no passado e não endosso tudo o que ele escreve. Mas defendo necessidade de lermos e ouvirmos os verdadeiros Jornalistas, dignos dessa profissão hoje tão vilipendiada pelos profissionais contratados pelos grandes grupos da mídia-empresa oligopolista.

Leia com atenção, até o fim. Vale a pena. Dê o necessário desconto, aqui e ali, pois se trata de um desabafo de um velho Jornalista apaixonado pelo seu país.

Paulo Martins – dialogosessenciais.com

Por Mauro Santayana

Publicado na Carta Maior

Muitos que vão sair às ruas contra Dilma acreditam piamente que o PT estaria, jogando pela janela, a ‘maravilhosa’ herança de FHC. Conheça os dados.

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Esperam-se, para o próximo dia 16 de agosto — mês do suicídio de Vargas e de tantas desgraças que já se abateram sobre o Brasil — novas manifestações pelo impeachment da Presidente da República, por parte de pessoas que acusam o governo de ser corrupto e comunista e de estar quebrando o país.

Se esses brasileiros, antes de ficar repetindo sempre os mesmos comentários dos portais e redes sociais, procurassem fontes internacionais em que o mercado financeiro normalmente confia para tomar suas decisões, como o FMI – Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, veriam que a história é bem diferente, e que se o PIB e a renda per capita caíram, e a dívida pública líquida praticamente dobrou, foi no governo Fernando Henrique Cardoso.

Segundo o Banco Mundial, o PIB do Brasil, que era de 534 bilhões de dólares, em 1994, caiu para 504 bilhões de dólares, quando Fernando Henrique Cardoso deixou o governo, oito anos depois.

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Para subir, extraordinariamente, destes 504 bilhões de dólares, em 2002, para 2 trilhões, 346 bilhões de dólares, em 2014, último dado oficial levantado pelo Banco Mundial, crescendo mais de 400% em dólares, em apenas 11 anos, depois que o PT chegou ao poder.

E isso, apesar de o senhor Fernando Henrique Cardoso ter vendido mais de 100 bilhões de dólares em empresas brasileiras, muitas delas estratégicas, como a Telebras, a Vale do Rio Doce e parte da Petrobras, com financiamento do BNDES e uso de “moedas podres”, com o pretexto de sanear as finanças e aumentar o crescimento do país.

Com a renda per capita ocorreu a mesma coisa. No lugar de crescer em oito anos, a renda per capita da população brasileira, também segundo o Banco Mundial — caiu de 3.426 dólares, em 1994, no início do governo, para 2.810 dólares, no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, em 2002. E aumentou, também, em mais de 400%, de 2.810 dólares, para 11.208 dólares, também segundo o World Bank, depois que o PT chegou ao poder.

O salário mínimo, que em 1994, no final do governo Itamar Franco, valia 108 dólares, caiu 23%, para 81 dólares, no final do governo FHC e aumentou em três vezes, para mais de 250 dólares, agora.

As reservas monetárias internacionais — o dinheiro que o país possui em moeda forte — que eram de 31,746 bilhões de dólares, no final do governo Itamar Franco, cresceram em apenas algumas centenas de milhões de dólares por ano, para37.832 bilhões de dólares — nos oito anos do governo FHC.

Nessa época, elas eram de fato, negativas, já que o Brasil, para chegar a esse montante, teve que fazer uma dívida de 40 bilhões de dólares com o FMI.

Depois, elas se multiplicaram para 358,816 bilhões de dólares em 2013, e para 370,803 bilhões de dólares, em dados de ontem (Bacen), transformando o Brasil de devedor em credor do FMI, depois do pagamento total da dívida com essa instituição em 2005, e de emprestarmos dinheiro para o Fundo Monetário Internacional, quando do pacote de ajuda à Grécia em 2008.

E, também, no terceiro maior credor individual externo dos EUA, segundo consta, para quem quiser conferir, do próprio site oficial do tesouro norte-americano — (usa treasury).

O IED – Investimento Estrangeiro Direto, que foi de 16,590 bilhões de dólares, em 2002, no último ano do Governo Fernando Henrique Cardoso, também subiu mais de quase 400%, para 80,842 bilhões de dólares, em 2013, depois que o PT chegou ao poder, ainda segundo dados do Banco Mundial: passando de aproximadamente 175 bilhões de dólares nos anos FHC (mais ou menos 100 bilhões em venda de empresas nacionais) para 440 bilhões de dólares entre 2002 e 2014.

A dívida pública líquida (o que o país deve, fora o que tem guardado no banco), que, apesar das privatizações, dobrou no Governo Fernando Henrique, para quase 60%, caiu para 35%, agora, 11 anos depois do PT chegar ao poder.

Quanto à questão fiscal, não custa nada lembrar que a média de déficit público, sem desvalorização cambial, dos anos FHC, foi de 5,53%, e com desvalorização cambial, de 6,59%, bem maior que os 3,13% da média dos anos que se seguiram à sua saída do poder; e que o superavit primário entre 1995 e 2002 foi de 1,5%, muito menor que os 2,98% da média de 2003 e 2013 — segundo Ipeadata e o Banco Central.

E, ao contrário do que muita gente pensa, o Brasil ocupa, hoje, apenas o quinquagésimo lugar do mundo, em dívida pública, em situação muito melhor do que os EUA, o Japão, a Zona do Euro, ou países como a Alemanha, a França, a Grã Bretanha — cujos jornais adoram ficar nos ditando regras e “conselhos” — ou o Canadá (economichelp).

Também ao contrário do que muita gente pensa, a carga tributária no Brasil caiu ligeiramente, segundo Banco Mundial, de 2002, no final do governo FHC, para o último dado disponível, de dez anos depois, e não está entre a primeiras do mundo, assim como a dívida externa, que caiu mais de 10 pontos percentuais nos últimos dez anos, e é a segunda mais baixa, depois da China, entre os países do G20 (quandl).

Não dá, para, em perfeito juízo, acreditar que os advogados, economistas, empresários, jornalistas, empreendedores, funcionários públicos, majoritariamente formados na universidade, que bateram panelas contra Dilma em suas varandas, no início do ano, acreditem mais nos boatos das redes sociais, do que no FMI e no Banco Mundial, organizações que podem ser taxadas de tudo, menos de terem sido “aparelhadas” pelo governo brasileiro e seus seguidores.

Considerando-se estas informações, que estão, há muito tempo, publicamente disponíveis na internet, o grande mistério da economia brasileira, nos últimos 12 anos, é saber em que dados tantos jornalistas, economistas, e “analistas”, ouvidos a todo momento, por jornais, emissoras de rádio e televisão, se basearam, antes e agora, para tirar, como se extrai um coelho da cartola — ou da “cachola” — o absurdo paradigma, que vêm defendendo há anos, de que o Governo Fernando Henrique foi um tremendo sucesso econômico, e de que deixou “de presente” para a administração seguinte, um país econômica e financeiramente bem sucedido.

Nefasto paradigma, este, que abriu caminho, pela repetição, para outra teoria tão frágil quanto mentirosa, na qual acreditam piamente muitos dos cidadãos que vão sair às ruas no próximo dia seis (em verdade, dia dezesseis, correção de dialogosessenciais.com): a de que o PT estaria, agora, jogando pela janela, essa — supostamente maravilhosa – “herança” de Fernando Henrique Cardoso.

O pior cego é o que não quer ver, o pior surdo, o que não quer ouvir.

Está certo que não podemos ficar apenas olhando para o passado, que temos de enfrentar os desafios do presente, fruto de uma crise que é internacional, e que é constantemente alimentada e realimentada por medidas de caráter jurídico que afetam a credibilidade e a estabilidade de empresas e por uma intensa campanha antinacional, que fazem com que estejamos crescendo pouco, neste ano, embora haja diversos países ditos “desenvolvidos” que estejam muito mais endividados e crescendo menos ainda do que nós.

Assim como também é verdade que esse governo não é perfeito, e que se cometeram vários erros na economia, que poderiam ter sido evitados, principalmente nos últimos anos, como desonerações desnecessárias e um tremendo incentivo ao consumo que prejudicou — entre outras razões, também pelo aumento da importação de supérfluos e de viagens ao exterior — a balança comercial.

Mas, pelo amor de Deus, não venham nos impingir nenhuma dessas duas fantasias, que estão empurrando muita gente a sair às ruas para se manifestar: nem Fernando Henrique salvou o Brasil, nem o PT está quebrando um país que em 2002, era a décima-quarta maior economia do mundo, e que hoje já ocupa o sétimo lugar.

Muitos brasileiros também vão sair às ruas, mais esta vez, por acreditar — assim como fazem com relação à afirmação de que o PT quebrou o país — que o governo Dilma é comunista e que ele quer implantar uma ditadura esquerdista no Brasil.

Quais são os pressupostos e características de um país democrático, ao menos do ponto de vista de quem “acredita” e defende o capitalismo?

a) a liberdade de expressão — o que não é verdade para a maioria dos países ocidentais – dominados por grandes grupos de mídia pertencentes a meia dúzia de famílias, mas que, do ponto de vista formal, existe plenamente por aqui;

b) a liberdade de empreender, ou de livre iniciativa, por meio da qual um indivíduo qualquer pode abrir ou encerrar uma empresa de qualquer tipo, quando quiser;

c) a liberdade de investimento, inclusive para capitais estrangeiros;

d) um sistema financeiro particular independente e forte;

e) apoio do governo à atividade comercial e produtiva;

f) a independência dos poderes;

g) um sistema que permita a participação da população no processo político, na expressão da vontade da maioria, por meio de eleições livres e periódicas, para a escolha, a intervalos regulares e definidos, de representantes para o Executivo e o Legislativo, nos municípios, Estados e União.

Todas essas premissas e direitos estão presentes e vigentes no Brasil.

Não é o fato de ter como símbolo uma estrela solitária ou vestir uma roupa vermelha — hábito que deveria ter sido abandonado pelo PT há muito tempo, justamente para não justificar o discurso adversário de que o PT não é um partido “brasileiro” ou “patriótico” — que transformam alguém em comunista — e aí estão botafoguenses e colorados que não me deixam mentir, assim como o Papai Noel, que se saísse inadvertidamente às ruas, no dia 6, (dia 16, correção de dialogosessenciais.com) provavelmente seria espancado brutalmente, depois de ter o conteúdo de seu saco de brinquedos revistado e provavelmente “apreendido” à procura de dinheiro de corrupção.

Da mesma forma que usar uma bandeira do Brasil não transforma, automaticamente, ninguém em patriota, como mostrou a foto do Rocco Ritchie, o filho da Madonna, no Instagram, e os pavilhões nacionais pendurados na entrada do prédio da Bolsa de Nova Iorque, quando da venda de ações de empresas estratégicas brasileiras, na época da privataria.

Qualquer pessoa de bom senso prefere um brasileiro vestido de vermelho — mesmo que seja flamenguista ou sãopaulino, que não são, por acaso, times do meu coração — do que um que vai para a rua, vestido de verde e amarelo, para defender a privatização e a entrega, para os EUA, de empresas como a Petrobras.

O PT é um partido tão comunista, que o lucro dos bancos, que foi de aproximadamente 40 bilhões de dólares no governo Fernando Henrique Cardoso, aumentou para 280 bilhões de dólares nos oito anos do governo Lula.

É claro que isso ocorreu também por causa do crescimento da economia, que foi de mais de 400% nos últimos 12 anos, mas só o fato de não aumentar a taxação sobre os ganhos dos mais ricos e dos bancos — que, aliás, teria pouquíssima chance de passar no Congresso Nacional — já mostra como é exagerado o medo que alguns sentem do “marxismo” do Partido dos Trabalhadores.

O PT é um partido tão comunista, que grandes bancos privados deram mais dinheiro para a campanha de Dilma e do PT do que para os seus adversários nas eleições de 2014.

Será que os maiores bancos do país teriam feito isso, se dessem ouvidos aos radicais que povoam a internet, que juram, de pés juntos, que Dilma era assaltante de banco na década de 1970, ou se desconfiassem que ela é uma perigosa terrorista, que está em vias de dar um golpe comunista no Brasil?

O PT é um partido tão comunista que nenhum governo apoiou, como ele, o capitalismo e a livre iniciativa em nosso país.

Foi o governo do PT que criou o Construcard, que já emprestou mais de 20 bilhões de reais em financiamento, para compra de material de construção, beneficiando milhares de famílias e trabalhadores como pedreiros, pintores, construtores; que criou o Cartão BNDES, que atende, com juros subsidiados, milhares de pequenas e médias empresas e quase um milhão de empreendedores; que aumentou, por mais de quatro, a disponibilidade de financiamento para crédito imobiliário — no governo FHC foram financiados 1,5 milhão de unidades, nos do PT mais de 7 milhões — e o crédito para o agronegócio (no último Plano Safra de Fernando Henrique, em 2002, foram aplicados 21 bilhões de reais, em 2014/2015, 180 bilhões de reais, 700% a mais) e a agricultura familiar (só o governo Dilma financiou mais de 50 bilhões de reais contra 12 bilhões dos oito anos de FHC).

Aumentando a relação crédito-PIB, que era de 23%, em dezembro de 2002, para 55%, em dezembro de 2014, gerando renda e empregos e fazendo o dinheiro circular.

As pessoas reclamam, na internet, porque o governo federal financiou, por meio do BNDES, empresas brasileiras como a Braskem, a Vale e a JBS.

Mas, estranhamente, não fazem a mesma coisa para protestar pelo fato do governo do PT, altamente “comunista”, ter emprestado — equivocadamente a nosso ver — bilhões de reais para multinacionais estrangeiras, como a Fiat e a Telefónica (Vivo), ao mesmo tempo em que centenas de milhões de euros, seguem para a Europa, como andorinhas, todos os anos, em remessa de lucro, para nunca mais voltar.

A questão militar

Outro mito sobre o suposto comunismo do PT, é que Dilma e Lula, por revanchismo, sejam contra as Forças Armadas, quando suas administrações, à frente do país, começaram e estão tocando o maior programa militar e de defesa da história brasileira.

Lula nunca pegou em armas contra a ditadura. No início de sua carreira como líder de sindicato, tinha medo “desse negócio de comunismo” — como já declarou uma vez — surgiu e subiu como uma liderança focada na defesa de empregos, aumentos salariais e melhoria das condições de classe de seus companheiros de trabalho, operários da indústria automobilística de São Paulo, e há quem diga que teria sido indiretamente fortalecido pelo próprio regime militar para impedir o crescimento político dos comunistas em São Paulo.

Dilma, sim, foi militante de esquerda na juventude, embora nunca tenha pego em armas, a ponto de não ter sido acusada disso sequer pela Justiça Militar.

Mas se, por esta razão, ela é comunista, seria possível acusar desse mesmo “crime” também José Serra, Aloísio Nunes Ferreira, e muitos outros que antes eram contra a ditadura e estão, hoje, contra o PT.

Se o PT tivesse alguma coisa contra a Marinha, ele teria financiado, por meio do PROSUB, a construção do estaleiro e da Base de Submarinos de Itaguaí, e investido 7 bilhões de dólares no desenvolvimento conjunto com a França, de vários submersíveis convencionais e do primeiro submarino nuclear brasileiro, cujo projeto se encontra hoje ameaçado, porque suas duas figuras-chave, o Presidente do Grupo Odebrecht, e o Vice-Almirante Othon Pinheiro da Silva, figuras públicas, com endereço conhecido, estão desnecessária e arbitrariamente detidos, no âmbito da “Operação Lava-Jato”?

Teria, da mesma forma, o governo do PT, comprado novas fragatas na Inglaterra, voltado a fabricar navios patrulha em nossos estaleiros, até para exportação para países africanos, investido na remotorização totalmente nacional de mísseis tipo Exocet, na modernização do navio aeródromo (porta-aviões) São Paulo, na compra de um novo navio científico oceanográfico na China, na participação e no comando por marinheiros brasileiros das Forças de Paz da ONU no Líbano ?

Se fosse comunista, o governo do PT estaria, para a Aeronáutica, investindo bilhões de dólares no desenvolvimento conjunto com a Suécia, de mais de 30 novos caças-bombardeio Gripen NG-BR, que serão fabricados dentro do país, com a participação de empresas brasileiras e da SAAB, com licença de exportação para outras nações, depois de uma novela de mais de duas décadas sem avanço nem solução, que começou no governo FHC ?

Se fosse comunista — e contra as forças armadas — teria o governo do PT encomendado à Aeronáutica e à Embraer, com investimento de um bilhão de reais, do governo federal, o projeto do novo avião cargueiro militar multipropósito KC-390, desenvolvido com a cooperação da Argentina, do Chile, de Portugal e da República Tcheca, capaz de carregar até blindados, que já começou a voar neste ano — a maior aeronave já fabricada no Brasil?

Teria comprado, para os Grupos de Artilharia Aérea de Auto-defesa da FAB, novas baterias de mísseis IGLA-S; ou feito um acordo com a África do Sul, para o desenvolvimento conjunto — em um projeto que também participa a Odebrecht — com a DENEL Sul-africana, do novo míssil ar-ar A-Darter, que ocupará os nossos novos caças Gripen NG BR?

Se fosse um governo comunista, o governo do PT teria financiado o desenvolvimento, para o Exército, do novo Sistema Astros 2020, e recuperado financeiramente a AVIBRAS ?

Se fosse um governo comunista, que odiasse o Exército, o governo do PT teria financiado e encomendado a engenheiros dessa força, o desenvolvimento e a fabricação, com uma empresa privada, de 2.050 blindados da nova família de tanques Guarani, que estão sendo construídos na cidade de Sete Lagoas, em Minas Gerais?

Ou o desenvolvimento e a fabricação da nova família de radares SABER, e, pelo IME e a IMBEL, para as três armas, da nova família de Fuzis de Assalto IA-2, com capacidade para disparar 600 tiros por minuto, a primeira totalmente projetada no Brasil?

Ou encomendado e investido na compra de helicópteros russos e na nacionalização de novos helicópteros de guerra da Helibras e mantido nossas tropas — em benefício da experiência e do prestígio de nossas forças armadas — no Haiti e no Líbano?

Em 2012, o novo Comandante do Exército, General Eduardo Villas Bôas, então Comandante Militar da Amazônia, respondeu da seguinte forma a uma pergunta, em entrevista à Folha de São Paulo:

Lucas Reis:

“Em 2005, o então Comandante do Exército, general Albuquerque, disse “o homem tem direito a tomar café, almoçar e jantar, mas isso não está acontecendo (no Exército). A realidade atual mudou?

General Eduardo Villas Bôas:

“Mudou muito. O problema é que o passivo do Exército era muito grande, foram décadas de carência. Desde 2005, estamos recebendo muito material, e agora é que estamos chegando a um nível de normalidade e começamos a ter visibilidade. Não discutimos mais se vai faltar comida, combustível, não temos mais essas preocupações.”

Deve ter sido, também, por isso, que o General Villas Bôas, já desmentiu, como Comandante do Exército, neste ano, qualquer possibilidade de “intervenção militar” no país, como se pode ver aqui (O recado das armas).

A questão externa

A outra razão que contribui para que o governo do PT seja tachado de comunista, e muita gente saia às ruas, no domingo, é a política externa, e a lenda do “bolivarianismo” que teria adotado em suas relações com o continente sul-americano.

Não é possível, em pleno século XXI, que os brasileiros não percebam que, em matéria de política externa e economia, ou o Brasil se alia estrategicamente com os BRICS (Rússia, Índia, China e África do Sul), potências ascendentes como ele; e estende sua influência sobre suas áreas naturais de projeção, a África e a América Latina — incluídos países como Cuba e Venezuela, porque não temos como ficar escolhendo por simpatia ou tipo de regime — ou só nos restará nos inserir, de forma subalterna, no projeto de dominação europeu e anglo-americano?

Ou nos transformarmos, como o México, em uma nação de escravos, como se pode ver aqui (O México e a América do Sul) que monta peças alheias, para mercados alheios, pelo módico preço de 12 reais por dia o salário mínimo?

Jogando, assim, no lixo, nossa condição de quinto maior país do mundo em território e população e sétima maior economia, e nos transformando, definitivamente, em mais uma colônia-capacho dos norte-americanos?

Ou alguém acha que os Estados Unidos e a União Europeia vão abrir, graciosamente, seus territórios e áreas sob seu controle, à nossa influência, política e econômica, quando eles já competem, descaradamente, conosco, nos países que estão em nossas fronteiras?

Do ponto de vista dessa direita maluca, que acusa o governo Dilma de financiar, para uma empresa brasileira, a compra de máquinas, insumos e serviços no Brasil, para fazer um porto em Cuba — a mesma empresa brasileira está fazendo o novo aeroporto de Miami, mas ninguém toca no assunto, como se pode ver aqui (A Odebrecht e o BNDES) — muito mais grave, então, deve ter sido a decisão tomada pelo Regime Militar no Governo do General Ernesto Geisel.

Naquele momento, em 1975, no bojo da política de aproximação com a África inaugurada, no Governo Médici, pelo embaixador Mario Gibson Barbosa, o Brasil dos generais foi a primeira nação do mundo a reconhecer a independência de Angola.

Isso, quando estava no poder a guerrilha esquerdista do MPLA – Movimento Popular para a Libertação de Angola, comandado por Agostinho Neto, e já havia no país observadores militares cubanos, que, com uma tropa de 25.000 homens, lutariam e expulsariam, mais tarde, no final da década de 1980, o exército racista sul-africano, militarmente apoiado por mercenários norte-americanos, do território angolano depois da vitoriosa batalha de Cuito-Cuanavale.

Ao negar-se a meter-se em assuntos de outros países, como Cuba e Venezuela, em áreas como a dos “direitos humanos”, Dilma não faz mais do fez o Regime Militar brasileiro, com uma política externa pautada primeiro, pelo “interesse nacional”, ou do “Brasil Potência”, que estava voltada, como a do governo do PT, prioritariamente para a América do Sul, a África e a aproximação com os países árabes, que foi fundamental para que vencêssemos a crise do petróleo.

Também naquela época, o Brasil recusou-se a assinar qualquer tipo de Tratado de Não Proliferação Nuclear, preservando nosso direito a desenvolver armamento atômico, possibilidade essa que nos foi retirada definitivamente, com a assinatura de um acordo desse tipo no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Se houvesse, hoje, um Golpe Militar no Brasil, a primeira consequência seria um boicote econômico por parte do BRICS e de toda a América Latina, reunida na UNASUL e na CELAC, com a perda da China, nosso maior parceiro comercial, da Rússia, que é um importantíssimo mercado para o agronegócio brasileiro, da Índia, que nos compra até mesmo aviões radares da Embraer, e da Àfrica do Sul, com quem estamos também intimamente ligados na área de defesa.

O mesmo ocorreria com relação à Europa e aos EUA, de quem receberíamos apenas apoio extra-oficial, e isso se houvesse um radical do partido republicano na Casa Branca.

Os neo-anticomunistas brasileiros reclamam todos os dias de Cuba, um país com quem os EUA acabam de reatar relações diplomáticas, visitado por três milhões de turistas ocidentais todos os anos, em que qualquer visitante entra livremente e no qual opositores como Yoani Sanchez atacam, também, livremente, o governo, ganhando dinheiro com isso, sem ser incomodados.

Mas não deixam de comprar, hipocritamente, celulares e gadgets fabricados em Shenzen ou em Xangai, por empresas que contam, entre seus acionistas, com o próprio Partido Comunista.

Serão os “comunistas” chineses — para a neo-extrema-direita nacional — melhores que os “comunistas” cubanos ?

A questão política

A atividade política, no Brasil, sempre funcionou na base do “jeitinho” e da “negociação”.

Mesmo quando interrompido o processo democrático, com a instalação de ditaduras — o que ocorreu algumas vezes em nossa história — a política sempre foi feita por meio da troca de favores entre membros dos Três Poderes, e, principalmente, de membros do Executivo e do Legislativo, já que, sem aprovação — mesmo que aparente — do Congresso, ninguém consegue administrar este país nem mudar a lei a seu favor, como foi feito com a aprovação da reeleição para prefeitos, governadores e Presidentes da República, obtida pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso.

Toda estrutura coletiva, seja ela uma jaula de zoológico, ou o Parlamento da Grã Bretanha, funciona na base da negociação.

Fora disso, só existe o recurso à violência, ou à bala, que coloca qualquer machão, por mais alto, feio e forte seja, na mesma posição de vulnerabilidade de qualquer outro ser humano.

O “toma-lá-dá-cá” nos acompanha há milhares de anos e qualquer um pode perceber isto, se parar para observar um grupo de primatas.

Ai daquele, entre os macacos, que se recusa a catar carrapatos nas costas alheias, a dividir o alimento, ou a participar das tarefas de caça, coleta ou vigilância.

Em seu longo e sábio aprendizado com a natureza, já entenderam eles, uma lição que, parece, há muito, esquecemos: a de que a sobrevivência do grupo depende da colaboração e do comportamento de cada um.

O problema ocorre quando nesse jogo, a cooperação e a solidariedade, são substituídas pelo egoísmo e o interesse de um indivíduo ou de um determinado grupo, e a negociação, dentro das regras usuais, é trocada por pura pilantragem ou o mero uso da ameaça e da pressão.

O corrupto, entre os primatas, é aquele que quer receber mais cafuné do que faz nos outros, o que rouba e esconde comida, quem, ao ver alguma coisa no solo da floresta ou da savana, olha para um lado e para o outro, e ao ter certeza de que não está sendo observado, engole, quase engasgando, o que foi encontrado.

O fascista é aquele que faz a mesma coisa, mas que se apropria do que pertence aos outros, pela imposição extremada do medo e da violência mais injusta.

Se não há futuro para os egoístas nos grupos de primatas, também não o há para os fascistas.

Uns e outros terminam sendo derrotados e expulsos, de bandos de chimpanzés, babuínos e gorilas, ou da sociedade humana, a dos “macacos nus”, quando contra eles se une a maioria.

Já que a negociação é inerente à natureza humana, e que ela é sempre melhor do que a força, o que é preciso fazer para diminuir a corrupção, que não acabará nem com golpe nem por decreto?

Mudar o que for possível, para que, no processo de negociação, haja maior transparência, menos espaço para corruptos e corruptores, e um pouco mais de interesse pelo bem comum do que pelo de grupos e corporações, como ocorre hoje no Congresso.

O caminho para isso não é o impeachment, nem golpe, mas uma Reforma Política, que mude as coisas de fato e o faça permanentemente, e não apenas até as próximas eleições, quando, certamente, partidos e candidatos procurarão empresas para financiar suas campanhas, se elas estiverem dispostas ainda a financiá-los, como se pode ver aqui (A memória, os elefantes e o financiamento empresarial de campanha) — e espertalhões da índole de um Paulo Roberto Costa, de um Pedro Barusco, de um Alberto Youssef, voltarão a meter a mão em fortunas, não para fazer “política” mas em benefício próprio, e as mandarão para bancos como o HSBC e paraísos fiscais como os citados no livro “A Privataria Tucana”.

O que é preciso saber, é se essa Reforma Política será efetivamente feita, já que é fundamental e inadiável, ou se a Nação continuará suspensa, com toda a sua atenção atrelada a um processo criminal, que tem beneficiado principalmente bandidos identificados até agora, que, em sua maioria, devido a distorcidas “delações”, que não se sustentam, na maioria dos casos, em mais provas que a sua palavra, sairão dessa impunes, para gastar o dinheiro, que, quase certamente, colocaram fora do alcance da lei, da compra de bens e de contas bancárias.

Pessoas falam e agem, e sairão no dia seis (dezesseis) de agosto às ruas também por causa disso, como se o Brasil tivesse sido descoberto ontem e o caso de corrupção da Petrobras, não fosse mais um de uma longa série de escândalos, a maioria deles sequer investigados antes de 2002.

Se a intenção é passar o país a limpo e punir de forma exemplar toda essa bandalheira, era preciso obedecer à fila e à ordem de chegada, e ao menos reabrir, mesmo que fosse simultaneamente, mas com a mesma atenção e “empenho”, casos como o do Banestado — que envolveu cerca de 60 bilhões — do Mensalão Mineiro, o do Trensalão de São Paulo, para que estes, que nunca mereceram o mesmo tratamento da nossa justiça nem da sociedade, fossem investigados e punidos, em nome da verdade e da isonomia, na grande faxina “moral” que se pretende estar fazendo agora.

Ora, em um país livre e democrático — no qual, estranhamente, o governo está sendo acusado de promover uma ditadura — qualquer um tem o direito de ir às ruas para protestar contra o que quiser, mesmo que o esteja fazendo por falta de informação, por estar sendo descaradamente enganado e manipulado, ou por pensar e agir mais com o ódio e com o fígado do que com a cabeça e a razão.

Esse tipo de circunstância facilita, infelizmente, a possibilidade de ocorrência dos mais variados — e perigosos — incidentes, e o seu aproveitamento por quem gostaria, dentro e fora do país, de ver o circo pegar fogo.

Para os que estão indo às ruas por achar que vivem sob uma ditadura comunista, é sempre bom lembrar que em nome do anticomunismo, se instalaram — de Hitler a Pinochet — alguns dos mais terríveis e brutais regimes da História.

E que nos discursos e livros do líder nazista podem ser encontradas, sobre o comunismo as mesmas teses, e as mesmas acusações falsas e esfarrapadas que se encontram hoje disseminadas na internet brasileira, e que seus seguidores também pregavam matar a pau judeus, socialistas e comunistas, como fazem muitos fascistas hoje na internet, com relação aos petistas.

A questão não é a de defender ou não o comunismo — que, aliás, como “bicho-papão” institucional, só sobrevive, hoje, em estado “puro”, na Coréia do Norte — mas evitar que, em nome da crescente e absurda paranoia anticomunista, se destrua, em nosso país, a democracia.

Esperemos que os protestos do dia 16 de agosto transcorram pacificamente — considerando-se a forma como estão sendo convocados e os apelos ao uso da violência que já estão sendo feitos por alguns grupos nas redes sociais — e que não sejam utilizados por inimigos internos e externos, por meio de algum “incidente”, para antagonizar e dividir ainda mais os brasileiros, e nem tragam como consequência, no limite, a morte de ninguém, além da Verdade — que já se transformou, há muito tempo, na primeira e mais emblemática vítima desse tipo de manifestação.

Há muitos anos, deixamos de nos filiar a organizações políticas, até por termos consciência de que não há melhor partido que o da Pátria, o da Democracia e o da Liberdade.

O rápido fortalecimento da radicalização direitista no Brasil — apesar dos alertas que tem sido feitos, nos últimos três ou quatro anos, por muitos observadores — só beneficia a um grupo: à própria extrema direita, cada vez mais descontrolada, odienta e divorciada da realidade.

Na longa travessia, pelo tempo e pelo mundo, que nos coube fazer nas últimas décadas, entre tudo o que aprendemos nas mais variadas circunstâncias políticas e históricas, aqui e fora do país, está uma lição que reverbera, de Weimar a Auschwitz, profunda como um corte:

Com a extrema-direita não se brinca, não se alivia, não se tergiversa, não se compactua.

Quem não perceber isso — e esse erro — por omissão ou interesse — tem sido cometido tanto por gente do governo quanto da oposição — ou está sendo ingênuo está sendo fraco, ou irresponsável, ou mal intencionado.

 Mauro Santayana é um jornalista autodidata brasileiro. Prêmio Esso de Reportagem de 1971, fundou, na década do 1950, O Diário do Rio Doce, e trabalhou, no Brasil e no exterior, para jornais e publicações como Diário de Minas, Binômio, Última Hora, Manchete, Folha de S. Paulo, Correio Brasiliense, Gazeta Mercantil e Jornal do Brasil onde mantêm uma coluna de comentários políticos.Cobriu, como correspondente, a invasão da Checoslováquia, em 1968, pelas forças do Pacto de Varsóvia, a Guerra Civil irlandesa e a Guerra do Saara Ocidental, e entrevistou homens e mulheres que marcaram a história do Século XX, como Willy Brandt, Garrincha, Dolores Ibarruri, Jorge Luis Borges, Lula e Juan Domingo Perón. Amigo e colaborador de Tancredo Neves, contribuiu para a articulação da sua eleição para a Presidência da República, que permitiu o redemocratização do Brasil. Foi secretário-executivo da Comissão de Estudos Constitucionais e Adido Cultural do Brasil em Roma.

Da arte de contar mentiras dizendo apenas a verdade.

Leia com atenção. A tática da mídia-empresa, que defende interesses próprios e tenta passar a ideia de que defende interesses nacionais, é subliminar. A Folha de São Paulo, O Valor Econômico, ainda tentam disfarçar um pouco. O Grupo Globo, que controla a mídia no Rio de Janeiro, nem procura disfarçar. Adota uma linha editorial cínica, para usarmos uma palavra elogiosa.

Oficina de Concertos Gerais e Poesia

Nas manchetes abaixo temos notícias boas e ruins. Mas, diferente do que está escrito, “o mal é bom e o bem cruel”.

empregos

A primeira página da Folha de São Paulo de sábado, 24/01/2015, destaca duas manchetes.

Com destaque maior, a má notícia:

”Geração de empregos em 2014 foi a pior dos anos PT – com demissões da indústria e na construção, mercado de trabalho tem pior ano de geração de emprego desde 2002”.

Com um destaque menor a manchete que traz, pelo menos, uma boa notícia:

”SP tem recorde de roubos e a menor taxa de homicídios – roubos no Estado de SP subiram 21% em relação a 2013, no maior aumento anual já registrado, taxa de assassinatos por 100 mil habitantes cai para 10,06, no melhor resultado desde 2001, quando era 33,3”.

A manipulação da informação não está apenas em que a má notícia sobre a geração…

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Juros altos e o aumento da desigualdade

Como na lenda do Minotauro, juros são tributo imposto à sociedade brasileira pelos mais ricos. Como eles paralisam país e o tornam mais desigual. Por que é possível vencê-los

Por Célio Turino

Há décadas o povo brasileiro é submetido ao intrincado percurso dos juros altos. Como se nós estivéssemos em um labirinto e dele não mais pudéssemos sair, desorientados, fomos levados a crer que a única alternativa para combater a inflação seria o pagamento de elevadas (estratosféricas!) taxas de juro público (SELIC). Esta crença tornou-se uma religião, um dogma indiscutível, do qual ninguém pode divergir. Diariamente somos massacrados por análises econômicas, seja por meios de comunicação, estudos acadêmicos (os que ganham destaque, é claro), relatórios de consultorias, análises de mercado. Enfim, todos os agentes do terrível monstro que habita o labirinto em que nos jogaram. Quando alguém ousa desafiá-lo ou pensar diferente, logo é triturado por um cruel minotauro, ou então defenestrado e relegado ao esquecimento. A força deste dogma é tanta que pensamos que o que estamos pensando é verdade. E assim, nos rendemos ao deus mercado, de modo que o Brasil é o país que mais paga juros reais no mundo e isto há décadas!

Em Creta, o povo era obrigado a entregar suas virgens para serem comidas pelo minotauro; no Brasil, entregamos nossas vidas e futuro. Segundo dados do Banco Central, no início do Plano Real a dívida interna brasileira era de R$ 153 bilhões (valores atualizados), o que equivalia a 30% do PIB; em 2015 a dívida é de aproximadamente R$ 4 trilhões (isso mesmo), ou 63% do PIB. No mesmo período pagamos, em valores atualizados pelo INPC, um total de R$ 2,9 trilhões! Mas se a dívida pública brasileira era de R$ 153 bilhões e no período de 20 anos pagamos (repetindo) R$ 2,9 trilhões (exatamente e não incluindo 2015, quando pagaremos mais R$ 300 bilhões), como explicar que estamos devendo R$ 4 trilhões?

No artigo anterior, preferi usar dados da dívida líquida (R$ 2,4 trilhões) para demonstrar, a partir dos argumentos do governo, que o aumento da SELIC, praticado pelo Banco Central (13,25%), não só neutralizará os efeitos do ajuste fiscal, como vai piorar a relação dívida/PIB ao final de 2015. Mas, agora precisamos analisar a dívida pública tal qual ela é, por isso os dados de dívida bruta. Este é mais um exemplo da enganação e desorientação que tem sido praticada pelo labirinto dos juros altos. A diferença entre dívida líquida e bruta está no cálculo entre o que o país deve e o que tem a receber. Por exemplo, o país possui US$ 372 bilhões em reservas internacionais, quase tudo em títulos do tesouro dos Estados Unidos; mas o governo dos EUA paga juro de 1% ao ano, o mesmo acontece com créditos do BNDES, com juros entre 5 e 6%, mas cujo dinheiro é captado pelo governo a juro de 13,25%. Seria a mesma coisa que a pessoa pagar juro de cheque especial para aplicar o dinheiro na caderneta de poupança. A conta não fecha, pois pagamos juros de 13,25% para receber 1%, no máximo 6%, por isso o indicador correto para apurar o endividamento de um país tem que ser sobre a dívida bruta e não líquida.

Outro dogma que, nestas dimensões e extensão de tempo só é praticado no Brasil, é de que somente com juros altos poderemos conter a inflação. O juro alto pode ser utilizado em determinadas ocasiões e por tempo limitado, mas ele só detém a inflação quando há excesso de demanda. Inflação é o aumento continuado e generalizado de preços dos bens e serviços e acontece por quatro causas:

Demanda – quando as pessoas querem comprar mais produtos, em velocidade superior àquela em que são produzidos;
Custos – quando aumentam os custos de produção, seja por escassez ou variação de preços de mercado (a variação no preço da energia elétrica, como está acontecendo agora, por exemplo);
Inercial – resultante da sensação de que é necessário aumentar os preços porque os preços irão aumentar, gerando uma “bola de neve” e indexações de custos;
Estrutural – falta de eficiência na Infraestrutura;

Para continuar a leitura, acesse o artigo:

Contra a oligarquia financeira, sejamos Teseu e Ariadne, em

outraspalavras.net

 

A dívida pública é uma piada – Thomas Piketty

“A dívida pública é uma piada! A verdadeira dívida é a dívida do capital natural”.

02 de junho de 2015 / Entrevista com Thomas Piketty

  • Entrevista por Hervé Kempf para o site Reporterre. Ao tempo que o desemprego atingiu um recorde mostrando a ineficácia da política neoliberal, o economista Thomas Piketty recorda que a desigualdade está no centro do mal-estar atual. Ele atacou os crescimentistas (croissancistes) (1). E apela a uma revisão do pensamento econômico para levar em consideração “o capital natural”.

Reporterre: Que ideia principal inspirou seu livro Capital do século XXI?

Thomas PikettyMeu trabalho desconstrói a visão ideológica de que o crescimento traria o declinio espontâneo da desigualdade. O ponto de partida desta pesquisa é ter estendido em uma escala sem precedentes a coleta de dados históricos dos rendimentos e dos patrimônios. No século XIX, os economistas colocavam muito mais ênfase na distribuição de renda do que tem sido o caso a partir do meio do século XX. Mas, no século XIX, havia muito poucos dados. E até recentemente, este trabalho não tinha sido realizado de forma sistemática, como fizemos, em várias dezenas de países em mais de um século. Isso muda muito a perspectiva.

Na década de 1950 e 1960, dominou uma visão muito otimista, expressa em especial pelo economista Kuznets, que uma redução espontânea da desigualdade estava ocorrendo em estágios avançados do desenvolvimento industrial. Kuznets tinha, de fato, encontrado em 1950, uma redução em comparação com 1910.

Esta foi, de fato, relacionada com a Primeira Guerra Mundial e a crise da década de 1930. Kuznets estava ciente. Mas na atmosfera da Guerra Fria, havia a necessidade de encontrar conclusões otimistas para explicar – especialmente para os países em desenvolvimento: “Não se tornem comunistas! O crescimento e a redução de desigualdade andam de mãos dadas, é só esperar”.

Mas, nos Estados Unidos e nos países desenvolvidos, as desigualdades relativas aos níves de renda estão agora muito elevadas, equivalentes às que Kuznets havia medido em 1910. O meu trabalho decompôs estas evoluções, tomando como tema central o fato de que não há nenhuma lei econômica inexorável que conduza quer à redução das desigualdades, ou ao seu declínio. Há um século, os países europeus eram mais igualitários do que os Estados Unidos. Hoje é o oposto. Não há determinismo econômico.
Reporterre: Você mostra a importância da classe média. É ela que permite a aceitação do aumento na desigualdade?

Thomas Piketty – O desenvolvimento desta “classe média patrimonial” é sem dúvida a maior transformação em um século. Os 50% mais pobres da população nunca tiveram patrimônio e não têm quase nada hoje. Os 10% mais ricos que, há um século, tinham tudo, 90% ou mais dos ativos, possuem hoje apenas 60% na Europa e 70% nos EUA. Este continua a ser um nível muito alto. A diferença é que agora você tem 40% da população que observaram sua situação se transformar no século: este grupo central possuia nos anos 1970 mais de 30% do patrimônio total. Mas isso tende a se reduzir e que estão mais próximos de 25% hoje. Ao tempo que os 10% mais ricos continuam a ver o aumento de sua riqueza.

Reporterre: O fato de que este bloco central vê a sua situação piorar, isto explica o aumento nas tensões sociais?

Thomas Piketty – Sim. Pode haver um questionamento geral do nosso pacto social, enquanto muitos membros da classe média patrimonial tem a sensação de perda, os mais ricos conseguem tirar proveito dos mecanismos de solidariedade. O risco é que grupos se voltem cada vez para soluções mais egoístas, deixando de ser possível cobrar dos mais ricos. Um dos desenvolvimentos mais preocupantes é a necessidade das sociedades modernas de dar sentido às desigualdades como uma maneira de tentar

Reporterre: …legitimar

Thomas Piketty –… justificar a herança ou a captura de rendas, ou o poder, simplesmente. Quando os dirigentes de empresas recebem dez milhões de euros por ano, eles a justificam em nome da produtividade. Os vencedores explicam aos perdedores que tudo isso é do interesse público. Exceto que é difícil encontrar qualquer evidência de que faz sentido pagar aos dirigentes de empresas 10 milhões de euros em vez de um milhão.

Hoje, o discurso de estigmatização dos perdedores do sistema é muito mais violento que era há um século. Pelo menos, antes, ninguém teve o mau gosto de explicar que as domésticas ou os pobres eram pobres por causa de sua falta de mérito ou virtude. Eles eram pobres porque era assim.

Reporterre: Foi a ordem social. 

  Thomas Piketty – A ordem social que se justifica pela necessidade de ter uma classe que pudesse se concentrar em outra coisa que não a sobrevivência, e se envolver em atividades artísticas ou militar ou outras. Eu não estou dizendo que esta justificação era boa, mas colocar a pressão psicológica sobre os perdedores.

Reporterre: Estes perdedores, essa classe média central, pode dobrar-se à  lógica da extrema direita?

Thomas Piketty – Claro. Este é o risco principal e teme-se o regresso à Europa do egoísmo nacional. Quando não podemos resolver os problemas sociais de forma adequada, é tentador colocar a culpa em outro lugar: os trabalhadores imigrantes de outros países, os gregos preguiçosos, etc. Reporterre: Um aspecto importante de seu trabalho diz respeito ao “crescimento” da economia. Você lembrou que as elevadas taxas de crescimento de cerca de 5% ao ano são historicamente excepcionais.

Thomas PikettyNós devemos nos acostumar a um crescimento estrutural lento. Mesmo manter 1 ou 2% ao ano implica inventar fontes de energia que, por enquanto, não existem.

Reporterre: Sem energia abundante, não há possibilidade de crescimento de 1 ou 2%?

Thomas Piketty – Haverá um momento em que não será mais possível. Desde a Revolução Industrial, 1700-2015, o crescimento global foi de 1,6% por ano, metade dos quais para o crescimento da população (0,8%) e metade (0,8%) para PIB (produto interno bruto) per capita. Isto pode parecer ridiculamente baixo para aqueles que pensam que não pode ser felizes sem um retorno ao boom no crescimento pós segunda guerra (2) de 5% ao ano. Mas o crescimento de 1,6% ao ano durante esses três séculos multiplicou dez vezes a população e o nível de vida médio, porque quando é cumulativo, é realmente um crescimento enorme. E a população mundial aumentou de 600 milhões em 1.700 para 7 bilhões hoje.

Poderíamos ser mais do que 70 bilhões em três séculos? Não é certo que isto seja desejável ou possível. Quanto ao padrão de vida, um aumento de dez vezes é uma abstração.

A revolução industrial no século XIX aumentou a taxa de crescimento que foi muito próximo a 0% nas sociedades agrárias pré-industriais para 1 ou 2% ao ano. Isto é extremamente rápido. E só em fases de reconstrução acelerada após guerras ou recuperação acelerada de um país em relação a outros que foram a 5% ao ano ou mais.

Reporterre: Os políticos responsáveis, a maioria de seus colegas economistas, os jornalistas econômicos, todos ainda na esperança de um crescimento de 2 ou 3% ao ano, alguns até mesmo sonham com 6 ou 7% da China.

Thomas PikettyO discurso de dizer que sem o retorno a 4 ou 5% de crescimento ao ano, não há felicidade possível é um absurdo, dada a história de crescimento.

Reporterre: No entanto, você usou o termo “forte crescimento” em um artigo assinado com economistas alemães e ingleses.

Thomas Piketty – Para mim, 1 ou 2%, é um crescimento alto! Sobre uma geração, é um muito, muito forte crescimento!

Em 30 anos, o crescimento de 1% ou 1,5% ao ano significa um aumento de um terço ou metade da atividade econômica a cada geração. Este é um ritmo de renovação da sociedade extremamente rápido. De modo que todo mundo tem um lugar em uma sociedade que se renova a este ritmo, precisamos de um sistema de educação, de qualificação, acesso ao mercado de trabalho altamente desenvolvidos. Não tem nada a ver com uma sociedade pré-industrial ou, de uma geração para a próxima, a sociedade se reproduz de forma quase idêntica.

Mas por outro lado, a idéia de que não é possível o crescimento também parece perigoso. É um processo que, reproduzido ao longo de gerações, é muito assustador, não haverá mais a humanidade.

Esta capacidade de crescimento demográgico reduzido a zero ou a níveis negativos restaura a importância da riqueza acumulada. Isso nos remete a uma sociedade de herdeiros que a França experimentou agudamente no século XIX devido à estagnação da população.

Reporterre: Será que faz sentido continuar a falar sobre o crescimento do PIB quando a economia tem um enorme impacto sobre o meio ambiente?

Thomas PikettyCompatibilizar melhor o capital natural é uma questão central. A degradação do capital natural é um risco muito mais grave do que qualquer outra coisa. Esta é a verdadeira dívida. A “dívida pública”, com a qual enchem nossos ouvidos, é uma piada! É um puro jogo contábil: uma parte da população paga impostos para se pagar juros a uma outra parte da população. Mas isso não é dívida com o planeta Marte!

As dívidas públicas, no passado, já tínhamos em 200% do PIB em 1945 e a inflação  as varreu. Estas foram, também, o que permitiu à França e à Alemanha investirem, nos anos 50-60, no financiamento de infraestrutura e do sistema educacional. Se tivéssemos de pagar essas dívidas com os superávits primários – como hoje demandamos que a Grécia faça – ainda estaria por fazer.

Assim, a dívida pública é um falso problema, porque os patrimônios financeiros, imobiliários e comerciais pertencentes às famílias cresceram muito mais fortemente do que tem aumentado a dívida pública. Este aumento de mercado é muito mais importante do que a dívida pública, que pode ser eliminada com uma canetada.

No entanto, um aumento de 2 ° C da temperatura do planeta em 50 anos não é mais um jogo contábil! E nós não temos nada em mãos para resolver o problema do custo imposto ao capital natural.

Reporterre: Um PIB que não integra o capital natural, isso faz sentido?

Thomas Piketty – O PIB não faz sentido. Eu sempre uso o conceito de Receita Nacional para mudar do PIB à renda nacional, você deve subtrair a depreciação do capital. Se um desastre destruiu o seu país, e todo o país está ocupado na reparação do que foi destruído, você pode acabar com um PIB extraordinariamente alto, enquanto a renda nacional é muito baixa.

Leve em conta o que foi destruído, reconheça o capital natural. Contabilizar o que foi produzido sem deduzir o que foi destruído é estúpido.

Reporterre: Por que não há mais trabalho nas Contas Nacionais para desenvolver esta contabilidade do capital natural?

Thomas Piketty – Tentamos expandir a base de dados do capital mundial do carbono, com o pessoal do IDDRI (Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais), entre outros. Mas você está certo, por enquanto, não é estudado. Nossas categorias de análise permanecem profundamente marcadas pelo boom pós-guerra e pelo ideal do crescimento infinito.

Reporterre: O capital é muito poderoso, ele detem um grande poder político, ele tem os meios de comunicação. Não estamos em uma situação sem saída?

Thomas Piketty – Tendências passadas sugerem que as coisas podem mudar mais rápido do que imaginamos. A história das desigualdades, dos rendimentos, do patrimônio, do imposto, é cheia de surpresas. O que emerge de tudo isso é perfeitamente aberto e há sempre vários futuros possíveis. Depois, há diferentes maneiras para chegar, mais ou menos rápido, mais ou menos justo, mais ou menos caro.

Tradução: Paulo Martins

Notas do tradutor:

  1. Crescimentistas/desenvolvimentistas = croissancistes.
  2. Trente glorieuses – gloriosos Anos Trinta – período de alto crescimento econômico de 1945 a 1975

Maioridade penal: é necessário discutir

Janio: Propostas sobre maioridade penal dividem-se entre péssimas e menos ruins

Por Janio de Freitas

Escolas da prisão

Na Folha

Enfim, algum debate.

É muito expressivo da índole deste país generoso, sensível, emotivo, que na ocasião de decisões sobre o sistema eleitoral, a reeleição, o dinheiro do poder econômico nas eleições, o que suscite o debate seja a idade em que menores carentes, se criminosos, devam ser punidos judicialmente.

Por qualquer ângulo de abordagem, o assunto é complicadíssimo. O Brasil não demonstra capacidade, e duvido que tenha ao menos vontade real, para algo mais do que retirar meninos das vias do crime e entregá-los ao ambiente recluso em que preservam ou agravam sua perdição. Para trazê-la de volta à liberdade.

Mas o clamor do medo que provocam, mesmo onde é mais incitado pelo sensacionalismo do que fundado, merece a defesa e a tranquilidade reclamadas. Nas propostas já apresentadas com tal finalidade, a meu ver só se consegue distinguir as péssimas das menos ruins. Todas muito parecidas na sua superficialidade, todas simplórias diante de um problema complexo. A de Aécio Neves, que se limita a triplicar a pena do aliciador de menores para o crime, destina-se até a outro problema. Ou supõe que adolescentes da marginalidade não ajam por si mesmos.

Prender mais cedo ou mais tarde, por menos ou por mais tempo, nada melhorou até agora e nada vai melhorar. É mera antecipação ou protelação. Reduz-se a idade para o recolhimento ou se espera mais pelo retorno às ruas do recolhido — mais ressentido, mais experiente, e com menos possibilidades, porque já adulto, de encontrar um encaminhamento diferente para a vida.

Não confio nas “soluções” apresentadas e, como sempre, não tenho uma proposta formulada. Mas tenho uma convicção. Em qualquer idade penal e com qualquer tempo de recolhimento, haverá apenas castigo inútil, senão agravador, caso não haja ligação rígida e persistente do recolhimento com o ensino. Inclusive como condição, segundo os resultados, para a volta à liberdade.

A Constituição responsabiliza o Estado pelo ensino. Logo, responsabiliza-o também por sua falta. É o caso de cobrar dos governos federal, estadual e municipal que se coordenem para proporcionar o ensino que devem aos menores delinquentes recolhidos. É preciso começar pelo Estado, não porque tenha polícia, esta obsessão brasileira contra e a favor, mas por ter meios e obrigação de proporcionar aos meninos e adolescentes desviados pelo crime a oportunidade de sair da punição diferentes, como seres, do que entraram.

O recolhimento hoje, e como será com as propostas que só se ocupam de idade e prisão, é escola de crime. Para ser a favor da sociedade como todo, o recolhimento precisa ser escola para a vida livre.

The Mind Managers – manipuladores da informação

Em 1979 eu li um livro que aborda um tema muito atual no Brasil. O título deste livro, escrito em 1973, por Herbert I. Schiller, é The Mind Managers. O livro analisa os meios pelos quais a informação é controlada e manipulada nos Estados Unidos. Publico, em seguida, resumo dos principais pontos publicado em 9 de maio de 2013 , por Ronald R. Rodgers, no blog mmc6660.wordpress.com, da turma de MMC6660 – Mass Communication & Society, da Faculdade de Jornalismo, da Universidade da Flórida.

Há no texto um link para a entrevista do autor Dr. Schiller concedida em 1997 a Ronald Rodgers.

Segundo Schiller, os profissionais da comunicação dos Estados Unidos estruturam o conteúdo com base em cinco mitos:

1 – O mito do individualismo e da escolha pessoal

2- O mito da neutralidade 

3- O  mito da natureza humana imutável

4- O mito da inexistência de conflito social (luta de classes)

5- O mito do pluralismo da midia

Para formatar as consciências são usadas duas técnicas:

1- fragmentação (ou focalização) como forma de comunicação

2- imediatismo da informação

Nestes tempos de manipulação midiática sem pudor, o livro está muito atual e sua releitura faz-se necessária, nos Estados Unidos e aqui.

Excerpts from The Mind Managers by Herbert I. Schiller
Posted on May 9, 2013 by Ronald R. Rodgers

“In their passion to dominate, to mold others to their patterns and their way of life, the invaders desire to know how those they have invaded apprehend reality – but only so they can dominate the latter more effectively.” – Paulo Freire, Pedagogy of the Oppressed, 1971

Mind managers

Excerpts from The Mind Managers by Herbert I. Schiller – a book that analyzes the ways in which information is controlled and manipulated in the United States.

1997 Interview with Dr. Schiller: http://www.youtube.com/watch?v=G7vpqXGW9sE

Five Myths That Structure Content.

1. The Myth of Individualism and Personal Choice

Manipulation’s  greatest triumph, most observable in the United States, is to have taken advantage of the special historical circumstances of Western development to perpetrate as truth a definition of freedom cast in individualistic term.

This enables the concept to serve a double function. It protects the ownership of productive private property while simultaneously offering itself as the guardian of the individual’s well-being, suggesting, if not insisting, that the latter is unattainable without the existence of the former.

  1. Upon this central construct an entire scaffolding of manipulation is erected.
    […]

There is evidence enough to argue that the sovereign individual’s rights are a myth, and that society and the individual are inseparable.

 2. The Myth of Neutrality

For manipulation to be most effective, evidence of its presence should be nonexistent.
When the manipulated believe things are the way they are naturally and inevitably, manipulation is successful.
In short, manipulation requires a false reality that is a continuous denial of its existence.
It is essential, therefore, that people who are being manipulated believe in the neutrality of their key social institutions.
They must believe that government, the media, education, and science are
beyond the clash of conflicting social interests.

[…]

3. The Myth of Unchanging Humane Nature

Human expectations can be the lubricant of social change.
When human expectations are low, passivity prevails.
There can, of course, be various kinds of images in anyone’s mind concerning political, social, economic, and personal realities
The common denominator of all such imagery, however, is the view people have of human nature. What human nature is seen to be ultimately affects the way human beings behave, not because they must act as they do but because they believe they are expected to act that way.
[…]

It is to prevent social action (and it is immaterial whether the intent is articulated or not) that so much publicity and attention are devoted to every pessimistic appraisal of human potential.
If we are doomed forever by our inheritance, there is not much to be done about it.
But there is a good reason and a good market for undervaluing human capability. An entrenched social system depends on keeping the popular and, especially, the ‘enlightened’ mind unsure and doubtful about its human prospects.
Among the mind manipulators, human nature doesn’t change and neither does the world.
[…]

4. The Myth of the Absence of Social Conflict

Concentrating on the blemishes of revolutionary societies is but one side – the international side – of mind management’s undertakings to veil from the public the realities of domination and exploitation.
Consciousness controllers, in their presentation of the domestic scene, deny absolutely the presence of social conflict. On the face of it, this seems an impossible task. After all, violence is ‘as American as apple pie.’ Not only in fact but in fantasy: in films, on TV, and over the radio, the daily quota of violent scenarios offered the public is staggering. How is this carnival of conflict reconcilable with the media managers’ intent to present an image of social harmony?
The contradiction is easily resolved. As presented by the national message-making apparatus, conflict is almost always an individual matter, in its manifestations and in its origin.
The social roots of conflict just do not exist for the cultural-information managers. True, there are ‘good guys’ and ‘bad guys’, but, except for such ritualized situations as westerns, which are recognized as scenarios of the past, role identification is divorced from significant social categories.
[…]

Elite control requires omission or distortion of social reality.
[…]

5. The Myth of Media Pluralism

Personal choice exercised in an environment of cultural-informational diversity is the image, circulated worldwide, of the condition of life in America.
This view is also internalized in the belief structure of a large majority of Americans, which makes them particularly susceptible to thoroughgoing manipulation.
It is, therefore, one of the central myths upon which mind management flourishes.
Choice and diversity, though separate concepts, are in fact inseparable; choice is unattainable in any real sense without diversity. If real options are nonexistent, choosing is either meaningless or manipulative. It is manipulative when accompanied by the illusion that choice is meaningful.
[…]

———-

Two Techniques That Shape Consciousness

  1. Fragmentation as a Form of Communication

Myths are used to dominate people.
When they are inserted unobtrusively into popular consciousness, as they are by the cultural-informational apparatus, their strength is great because most individuals remain unaware that they have been manipulated.
The process of control is made still more effective by the special form in which the myth is transmitted. The technique of transmission can in itself add an extra dimension to the manipulative process.
What we find, in fact, is that the form of the communication, as developed in market economies, and in the United States in particular, is an actual embodiment of consciousness control. This is most readily observed in the technique of information dissemination, used pervasively in America, which we shall term fragmentation.
[…]

Fragmentation, or focalization, is the dominant – indeed, the exclusive – format for information and news distribution in North America. Radio and television news is characterized by the machine-gun-like recitation of numerous unrelated items.
Newspapers are multipaged assemblages of materials set down almost randomly, or in keeping with arcane rules of journalism. Magazines deliberately break up articles, running the bulk of the text in the back of the issue, so that readers must turn several pages of advertising copy to continue reading.
[…]

One of the methods of science that is validly transferable to human affairs is the ecological imperative of recognizing inter-relatedness. When the totality of a social issue is deliberately evaded, and random bits pertaining to it are offered as ‘information’, the results are guaranteed: at best, incomprehension; ignorance, apathy, and indifference for the most part.

  1. Immediacy of Information

Closely associated with fragmentation and, in fact, a necessary element in its operation, is “immediacy.”
This here-and-now quality helps increase the manipulatory power of the informational system.
That the information is evanescent, with hardly any enduring structure, also
undermines understanding.
Still, instantaneousness – the reporting of events as soon after their occurrence as possible – is one of the most revered principles of American journalism.
Those social systems that do not provide instantaneous information are regarded either as hopelessly backward and inefficient or – a much more serious charge – as socially delinquent.
[…]

The technology that permits and facilitates immediacy of information is not at issue. It exists and could, under different conditions, be useful.
What is of concern is the present social system’s utilization of the techniques of rapid communications delivery to blur or eradicate meaning while claiming that such speed enables understanding and enlightenment.
[…]

It is easy to imagine electronic formats that would use instantaneousness as a supplement to the construction of meaningful contexts.
It is not so easy to believe that immediacy, as a manipulative device, will be abandoned while it serves mind managers by effectively preventing popular comprehension and understanding.
Passivity: The Ultimate Objective of Mind Management

The content and form of American communications – the myths and means of transmitting them – are devoted to manipulation.
When successfully employed, as they invariably are, the result is individual passivity, a state of inertia that precludes action.
This, indeed, is the condition for which the media and the system-at-large energetically strive, because passivity assures the maintenance of the status quo.
Passivity feeds upon itself, destroying the capacity for social action that might change the conditions that presently limit human fulfillment.

Preconceito e desinformação – O ‘clamor’ alimentado pela imprensa

Luciano Martins Costa, publica no Observatório da Imprensa, texto que ilustra muito bem o papel dos meios de comunicação na formação do preconceito e da desinformação. Trata-se de assunto importante, um dos motivos da existência deste blog. Publico abaixo o artigo e as emissoras de rádio e horários de apresentação do programa do Luciano nas estações de rádio no Rio, Brasília, Belo Horizonte e Joinville.

“Muito frequentemente, leitores de jornais questionam este observador sobre as razões pelas quais a mídia tradicional do Brasil perdeu diversidade e adotou nos últimos anos um viés tão radicalmente conservador e tão homogêneo que chega a se caracterizar como um verdadeiro partido político. A resposta nunca é simples, mas a própria imprensa oferece exemplos que ajudam a entender como se deu esse processo de perda de qualidade e degeneração da atividade jornalística.

Por exemplo, sabe-se que a imprensa, como sistema, tem um alinhamento automático com o campo ideológico que se denomina “liberal”, no que se refere às questões da economia, o que corresponde a escolhas que devem ser qualificadas como reacionárias no campo social. Reacionárias porque reagem vigorosamente a qualquer intervenção direta do Estado no sentido de corrigir as perversidades do sistema capitalista para produzir um mínimo de equanimidade nas oportunidades de promoção social dos indivíduos.

Assim, esse conjunto de empresas que catalisa pensadores e ativistas como instrumentos de influência e poder vive essa contradição que, de certa forma, reproduz as discrepâncias do próprio sistema capitalista. Por exemplo, a imprensa precisa se apresentar como uma espécie de farol da modernidade, porque isso justifica sua existência, mas se comporta mais frequentemente como uma lanterna na popa, mais apta a iluminar o passado, reescrevendo a História, do que ajudando a entender o que vem pela frente.

Numa sociedade complexa como a brasileira, onde a dinâmica das relações sociais e de negócios não encontra no campo político uma representação correlata, as escolhas da imprensa acabam por distorcer o equilíbrio entre as opções ideológicas, dando maior peso às alternativas conservadoras.

Isso fica muito claro quando notamos que a mídia tradicional despreza certos protagonistas da cena política, por considerá-los menos qualificados, mas se vale deles como a “mão do gato” para alcançar determinados propósitos.

Na terça-feira (2/6), por exemplo, registre-se como, novamente, os jornais dão grande destaque, sem o devido senso crítico, a iniciativas dos líderes do Congresso Nacional, que estão empenhados em fazer aprovar uma série de propostas que produzem retrocessos em conquistas sociais importantes da democracia brasileira.

Negação do contraditório

Estimulados pela constante exibição nas primeiras páginas dos jornais e pelo tempo que lhes é destinado nos noticiários do rádio e da televisão, o senador Renan Calheiros e o deputado Eduardo Cunha mantêm um aceso conflito com o poder Executivo, dando curso a mudanças em questões há muito acomodadas no quadro legal.

A proposta da redução da maioridade penal entra em pauta nesse contexto de confrontação, e em seguida é colocado na agenda um projeto que altera o equilíbrio dos poderes, transferindo para o Parlamento funções de gestão das empresas estatais.

Nessa linha de iniciativas, aguarda na fila um projeto de lei que pretende transformar em letra morta o sistema de controle da circulação de armas de fogo, restrição que é apontada por especialistas como uma das principais causas da redução de mortes violentas no país nas duas últimas décadas.

Propostas como essas avançam e conquistam a opinião de cidadãos pouco educados politicamente, justamente porque a imprensa não faz o trabalho de elucidar problemas complexos que preocupam a sociedade.

A desinformação, produzida pela prática das aleivosias e da meia-verdade na rotina da mídia, resulta em opiniões radicais sobre questões sociais, como a defesa do encarceramento de adolescentes e o apoio crescente à pena de morte. Por trás de tudo, como justificativa para esses retrocessos, acena-se com o que se denomina de “clamor popular”.

O tal “clamor” nasce quase sempre do mau jornalismo, como no caso de um jovem acusado do assassinato do médico Jaime Gold, no Rio de Janeiro, e que se demonstrou ser inocente.

Em editorial no qual apoia veladamente a proposta de mudança na regra da maioridade penal, o Globo se refere a uma suposta “rigidez paternalista” do Estatuto da Criança e do Adolescente e afirma que há “um compreensível clamor por mudanças, ideologias à parte”. Com esses argumentos, defende a consulta popular porque o assunto seria “de fácil compreensão geral”.

Primeiro, a expressão “ideologias à parte” é uma negação do contraditório, fundamento da sociedade moderna. Segundo, o que o jornal qualifica de “clamor por mudanças” é apenas o resultado da ação cotidiana da própria imprensa em sua pregação reacionária. Terceiro, a “fácil compreensão” é o efeito do noticiário que criminaliza crianças e adolescentes negros e pardos, aos quais é negada qualquer oportunidade de inclusão social”.

Ben Bernanke e o declínio da classe média

Embora pareça uma conversa entre o pessoal do topo da pirâmide social, este artigo é interessante para ilustrar dois fenômenos modernos perversos, que ocorrem nos  países com as economias de mercado mais avançadas: a crescente financeirização da vida, que sufoca os outros setores da economia, e a crescente desigualdade de renda nesses países. Um fenômeno como  consequência natural do outro. Para uma elite tupiniquim que adora copiar modelos e comportamentos, tudo muito bem. Para os demais mortais, tudo muito mal.

Para leitura do texto original em inglês, escrito por Michael Roberts, veja o artigo intitulado “Ben Bernanke and the decline of the middle-class”, publicado neste blog em 30/05/2015.

Tradutor: Paulo Martins – dialogosessenciais.com

“Ben Bernanke e o declínio da classe média

O ex-presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, tornou-se recentemente conselheiro para Citadel, uma empresa de gestão de fundos de hedge e para a PIMCO, o maior fundo de bônus do mundo. Isso fará com que Ben Bernanke um homem muito rico, em vez de apenas rico.

Até agora ele ganhava talvez, apenas, US $ 1 milhão por ano em salário base, acrescido dos rendimentos dos direitos de livros publicados e ainda mais a partir de taxas de palestras. Mas agora ele vai estar na faixa de centenas de milhões.

A porta giratória entre cargos públicos e trabalho para grandes instituições financeiras é a realidade do mundo sob o capitalismo global moderno. Não é de admirar, o Fed, o FMI, o Banco Mundial, o BCE etc, instituições supostamente independentes, operam para garantir o bem-estar das principais empresas financeiras e continuamente a prever o sucesso das economias capitalistas. Na verdade, estritamente falando, o Federal Reserve dos EUA não é independente, uma vez que foi criado e ainda é ‘propriedade’ pelos principais bancos de Wall Street.

Então, juntamente com o dinheiro, os gostos de Ben Bernanke, Hank Paulson, Tim Geithner, Alan Greenspan transitam entre Wall Street e Washington DC perfeitamente porque os coloca no centro da ação: estabelecer a estratégia financeira da maior potência imperial e influenciar o curso dos mercados financeiros mundiais.

Assim, o capital financeiro absorve todas as pessoas brilhantes e inteligentes, não para fazer “serviço público” para a maioria dos norte-americanos ou em outro lugar, mas para cumprir os objetivos do capital, com rica recompensa ao fazê-lo.

Os políticos e os meios de comunicação americanos referem-se continuamente à “classe média” em seus comentários e relatórios quando eles realmente querem dizer o que costumávamos chamar de “classe trabalhadora”. A classe trabalhadora “eram” pessoas que trabalhavam em fábricas, escritórios e lojas e não têm qualificações profissionais para se tornarem advogados, médicos, gerentes e outros executivos – sendo este último o termo original para a classe média. O abandono do termo, “classe trabalhadora”, foi deliberado. Foi para esconder a natureza de classe do capitalismo moderno entre quem detém os meios de produção ou que planeiam a estratégia do capital, como Ben Bernanke, e aqueles que vendem sua força de trabalho para ganhar a vida com nenhum poder sobre o seu próprio destino. Foi também para convencer as pessoas de trabalho que já não havia qualquer desigualdade ou divisão de classe na sociedade moderna. Estamos todos de classe média agora.

Mas essa cortina de fumaça ideológica está começando a trabalhar de forma menos eficaz em mascarar a realidade. Enquanto as elites financeiras nos Estados Unidos e Europa continuam a prosperar neste mundo pós-Grande Recessão, os agregados familiares médios americanos ou europeus estão lutando. Nos últimos 25 anos, o rendimento anual do agregado familiar mediano dos EUA ainda é pouco menos de 52 mil dólares. E desde que a crise financeira atingiu, há seis anos, a “recuperação” econômica ainda precisa se traduzir em rendimentos mais elevados para esta família americana “típica”. Após o ajuste para a inflação, a mediana da renda familiar nos EUA ainda é 8% inferior ao que era antes da recessão, 9% menor do que em seu pico em 1999 e essencialmente inalterada desde o fim da administração Reagan em 1992.

Tome a geração nascida em 1970. Em idade adulta, esses americanos ganhavam mais que seus pais, aqueles que nasceram em 1950. Mas seus ganhos estagnaram nos anos 2000, quando eles estavam em seus 30 anos. Agora com 40 anos, seus ganhos ficaram para trás em comparação aos dos seus pais na mesma fase de suas vidas.

E o foco na renda mediana  não mostra a grande disparidade de rendimentos que produzem esta  mediana. Em 1970, 55% dos rendimentos dos EUA recebido pelos domicílios na faixa de 60% da distribuição de renda. Mais da metade dos domicílios estavam na “camada intermediária” das famílias (aqueles que ganham entre dois terços e duas vezes a renda média). Em 2013, ambos os números haviam caído para cerca de 45%. Em um relatório de 2012, pesquisadores do PEW (nota do tradutor: centro de pesquisa norte-americano) chamavam a  década de 2000 “a década perdida da classe média.”

Sociedade norte-americana, após o curto período de igualdade entre os anos 1950 a 1970, foi polarizando apenas na maneira que Marx havia previsto entre uma elite rica extrema, centrada em torno da propriedade e da gestão de grandes corporações, principalmente em finanças, e no resto de nós.

Em um trabalho inédito recente, Simon Mohun, professor emérito da QMC (nota do tradutor: Queen Mary College, Universidade de Londres), Londres, analisou cuidadosamente os dados de renda pessoal dos EUA sobre uma base de classe (ClassStructure1918to2011wmf (1)). Mohun descobriu que os gestores que têm renda não-trabalho suficiente para que eles não precisem de trabalho não eram mais do que 2% dos assalariados de renda, tendo diminuído de 4% em 1920s. Esta é a classe capitalista-gerencial real. O 1%, ou até mesmo com mais precisão, o topo 0,1% dos domicílios, dão as cartas. A próxima camada, como Ben Bernanke, vivem disso, traçando  planos estratégicos para eles (agora apenas 2% a). A próxima camada trabalho para eles e lhes dá suporte (isto é cerca de 14% – a classe média real e esta faixa tem diminuido). Depois, há o resto de nós”.