Vamos!

Comentários ao texto de um amigo sobre as dificuldades de levar uma vida tranquila nesses anos de perversidades bolsonaristas.

Ler livros inteiros está meio difícil, sim.

Mas estou menos impactado com esses dias de trevas do que alguns.
Tenho 70 anos e minha perplexidade política começou no dia primeiro de abril de 1964, na parte da manhã.

Eu morava em São Gonçalo, Terra de Marlboro, de igrejas neopentecostais e do bolsonarismo, e completaria 12 anos devida dali a dois dias. Minha perplexidade foi ouvir no rádio, que ficava ligado o dia todo, o locutor falar contra a ditadura e, uma hora depois, outro locutor falar a favor da ditadura que começava naquele dia. Sem entender, perguntei à minha mãe o que estava acontecendo.
Ela me respondeu: os militares entraram lá na rádio, prenderam o locutor e colocaram outro no lugar dele.

Mas pode fazer isso, assim? Perguntei.

E ela respondeu: poder, não pode. Mas eles estão armados com tanques e metralhadoras.
Daquele dia em diante foi um caminhão de derrotas políticas e algumas poucas vitórias significativas. A sensação é que estamos nós, da esquerda, sempre tentando subir uma rampa ensaboada ou um morro de barro molhado.
A única vantagem de ter 70 anos é já ter visto de tudo quanto é tipo de mentiras, absurdos e barbaridades.
Cansa, mas desistir não é uma opção. Não podemos deixar o país cair no abismo no dia 30 próximo. Qualquer sinal de desespero seria paralisante. Temos que encontrar um jeito de tentar subir o morro novamente, de preferência com bastões de escalada e em equipe. O voto em Lula no dia 30/10 é o recomeço da caminhada morro acima. Vamos.

Jovem Pan e crimes eleitorais

Resposta a um saudoso da ditadura militar

Vocês apoiam intervenção militar (que, por pura idiotice, chamam de “constitucional”), veneram torturador, veneram quem elogia torturador e passam o pano para notícias falsas contra seus inimigos políticos ou favoráveis ao seu candidato. Ora, a Jovem Pan contratou “jornalistas” militantes que estão a soldo do bolsonarismo e se meteu de cabeça na campanha de Bolsonaro, descaradamente, sem qualquer escrúpulo.
Apesar de ser uma concessão pública e ter responsabilidade social, a Jovem Pan enfiou todos os seus recursos para eleger Bolsonaro e, o que é pior, fabricou e divulgou fake news. Ora, isto é crime eleitoral e abuso de poder econômico. Depois que passar a eleição, não adianta mais fazer nada contra as fake news. O TSE tem sido muito lento em coibir esses abusos. Assim como o Ministério Público do Trabalho, que não tem sido capaz de coibir a prática de constrangimento eleitoral, onde patrões exigem , às vezes de forma sútil, às vezes de forma escancarada, que seus empregados votem conforme suas ordens. O crime compensa.

Milícias digitais e a destruição de um país

A fake news da mamadeira de piroca está para o mundo das mentiras e das crueldades fascistas como o Monza para o mundo dos carros. A invenção da mamadeira em 2018 é um Monza que só existe hoje como curiosidade e peça de colecionadores.

A mamadeira é da época romântica das fake news. O que vem aí, e será sentido principalmente na última semana da campanha, é a fake news de última geração das milícias digitais.

Pelo ritmo, dá para imaginar o cenário com a disseminação de notícias falsas às vésperas da eleição. E as consequências imediatas e as sequelas dos ataques.

Não há autoridade com equipamentos, gente, leis e imposição institucional capazes de contê-los. Já estamos no último estágio da distopia bolsonarista.

É um ambiente sem similar no mundo, pelas particularidades dos personagens e da estratégia usada. É o modelo verde-amarelo pós-Trump, que pode vir a ser exemplo para o mundo

Quando disse que não iria permitir de novo a propagação de fake news, logo depois do julgamento das ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão no TSE, há exatamente um ano, Alexandre de Moraes não imaginava o que o esperava.

A chapa foi absolvida pela Justiça Eleitoral, mas ficou a advertência do ministro: desta vez passou, mas na próxima não haverá perdão. Haverá cadeia, alertou Moraes.

Não há cadeia para tanta gente. Não há como prender. Não há nem verdades suficientes para combater tantas mentiras.

Não há escrúpulos capazes de conter a avalanche de afrontas ao que nos sobra de democracia.

Não há ameaça de Moraes que amedronte milhões mobilizados na disseminação de fake news. Porque o terror não mais é representado apenas pelo núcleo ao redor de Bolsonaro.

A face aparentemente invisível do terror é o contingente que dá lastro para que Bolsonaro se mantenha e se potencialize como ameaça autoritária.

O brasileiro cooptado pelo bolsonarismo é a ameaça. Ele acredita ou finge acreditar em fake news como acredita em Terra plana e como suspeita que o homem não foi à Lua e que as vacinas podem matar.

Dizer que o Brasil está doente é transferir para um coletivo aparentemente impalpável o que está ao nosso lado. Nossas mães, pais, tios, tias, filhos, irmãos, sobrinhos são propagadores e consumidores de fake news.

Fingimos descobrir só agora que os envolvidos com fake news não são “os outros”. A máquina de disseminação é também doméstica e artesanal e ultrapassa em muito a estrutura industrial das milícias.

O massacre final tem pelo menos 10 dias para acontecer. Se as milícias, os empresários que ameaçam empregados e os tios do zap forem derrotados com Bolsonaro, talvez tenhamos alguma punição para os mais fracos.

Se vencerem, nem uma dúzia de Alexandres de Moraes será capaz de pegá-los. Nunca mais.

O Brasil é refém de quase metade da população que produz, distribuiu e acolhe fake news ou está apta a acolher. Bolsonaro é o laranja de toda essa gente.

Os olhos dos pobres



Por Leo Moraes

Tem um poema maravilhoso de Baudelaire chamado “Os Olhos dos Pobres”. Nele o poeta descreve um dia passado com uma mulher maravilhosa, com um nível de afinidade e cumplicidade tal que fazia com que ele, cético, chegasse a acreditar na possibilidade de ter encontrado sua alma gêmea. Chega a noite, e a moça sugere que eles se sentem em um café num dos recém inaugurados bulevares de Paris (O poema data da época do Plano Haussmann, reforma que deu a Paris a forma que tem hoje). O local resplandecia em seu charme sofisticado e semi-acabado. O poeta descreve o entulho ainda na rua, o cheiro de tinta fresca, os frequentadores chiques com sua criadagem, a exuberância gastronômica. Eis que chega um homem com duas crianças, uma ainda de colo. Sujos e maltrapilhos, olhando contemplativamente para o maravilhoso café. E Baudelaire lê, pelos olhares, a visão de cada um deles em suas idades. Ele se sente enternecido pelos olhares, e ao mesmo tempo um pouco envergonhado da fartura de sua mesa, e busca os belos olhos de sua amada, e acredita ler neles o mesmo sentimento que o inundava. Ela então diz “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”. E, como um frágil cristal, a imagem que ele tinha dela se estilhaça, e o possível amor se torna desprezo.
Peço perdão a Baudelaire por resumir nas minhas palavras o que ele próprio descreve tão melhor em sua obra. Mas eu acho o sentimento expresso ali muito adequado ao momento atual, e não sei quantos de vocês terão a paciência de buscar o original (o que recomendo!). Muitas coisas podem ser tiradas da cena descrita no poema. A injustiça da desigualdade, o reconhecimento de uma posição de privilégio, a importância da empatia. Mas pra mim a maior lição ali contida é:
Existem defeitos que são imperdoáveis.
Em várias ocasiões em que fui conversar com alguma pessoa próxima que vota nesse cara, as pessoas tentam levar a discussão para o lado de corrupção, ou de economia, ou da importância de tirar o PT, ou sei lá. O problema é que pra mim a opção passa por um lugar muito mais profundo, de humanidade, e moral básica. É simples: eu não voto em quem idolatra torturador. Eu não voto em quem fala que o erro da ditadura foi ter matado pouco. Eu não voto em quem diz que preferia ver o filho morto do que sendo gay. Eu não voto em quem diz abertamente que é contra a democracia. E mais uma lista de aberrações que esse cara disse, que são tantas que não dá nem pra listar.
Perto disso tudo, discussões sobre estado mínimo, direita e esquerda, reforma da previdência, educação, segurança, ou outras pautas, que tanto precisamos discutir como país, ficam insignificantes. É como se na eleição do condomínio um dos candidatos a síndico te desse um soco na cara, um chute no saco, matasse seu cachorro, e depois viesse querer discutir de que cor tem que pintar o portão, e pedir seu voto. Não dá.
O que ele fez foi roubar de nós a oportunidade de discutir que rumo queremos para o país. Não dá pra debater propostas, com um projeto como esse perigando ganhar. Então não se trata de um discussão meramente política, é uma questão de valores humanistas. Mesmo se eu achasse as propostas desse Jair sensacionais, eu ainda assim votaria contra ele. “Mas e o PT?” Foda-se! Qualquer um! Se fosse qualquer um dos candidatos, de todas as eleições desde 89, contra ele eu votaria. E olha que essa lista tem Maluf, Collor, etc.
Olha, eu também não gosto dessa polarização, externei minha opinião no primeiro turno, votei em outro candidato, acho que esse segundo turno prolongou por 4 anos essa inhaca que estamos passando. Tenho muitas críticas pesadas ao PT, quem me conhece sabe. Mas não há dúvida sobre qual o voto errado aqui. O mundo está vendo, todos os jornais importantes, de direita e esquerda, de todos os países, estão alertando. Até Madonna e Roger Waters sabem. Tem focinho de fascismo, rabo de fascismo, orelha de fascismo. O que é?
Tenho pessoas amigas que já estão sentindo na pele os efeitos dessa escalada na intolerância, e olha que ele nem ganhou ainda. Então o que eu estou fazendo é um apelo. Pensem bem, vejam de novo os vídeos com as falas abomináveis desse candidato. Não o que ele diz hoje, atenuado pelos marqueteiros, mas o que ele faz e diz há décadas. Por favor repensem, não entreguem o país para esse monstro sob o argumento de “pelo menos tiramos o PT”. Como Baudelaire tão bem nos mostra, alguns defeitos são sim imperdoáveis.

Moro e Dallagnol: política e podridão

Por Antônio Sérgio Valente

Os lavajatistas questionaram as palestras do Lula, não teriam existido, seriam mera lavagem de dinheiro.

Lula provou uma por uma, com folders, videos, contratantes, notas fiscais. Tudo certinho.
Calaram a boca.

Vasculharam o apartamento do Lula, o outro apartamento que Lula alugava, diziam que era dele mas travestido de locação, outra lavagem de dinheiro.
Provou-se que era de fato locação, que os aluguéis eram pagos regularmente por Lula. Ainda sobre os endereços de Lula: nada de irregular encontraram nos forros de gesso, nos colchões, nos computadores, nos armários, e olhem que examinaram com lupa de Sherlock Holmes e ultrassom até o tablete do netinho Arthur (na minha opinião este foi o CRIME mais grave e desumano cometido pela LJ), que ficaria muito abatido com aquela violência judiciária, ao cabo inútil : não acharam um centavo sequer irregular em nome de Lula, de seus familiares e amigos, no Brasil ou no exterior, em conta PJ nativa ou offshore. Nada vezes nada. Zero.
Calaram a boca.

Disseram que o sítio da família Bittar havia anos, grandes amigos de Lula de outros carnavais — alegravam-se juntos em fins de semana ali, fizeram a cortesia de permitir ao hóspede ilustre e sua família o uso de uma suíte num anexo que acomodava também os seguranças que a União oferece a ex-presidentes —, disseram que o sítio era do Lula, outra lavagem de dinheiro camuflada.
Pois bem: provou-se fartamente, por documentos e testemunhas, que o imóvel era de fato da família Bittar e os Lula da Silva eram hóspedes e ilustravam com sua presença o imóvel dos anfitriões amigos.
Calaram a boca, não sem antes acusar e difamar.

Então inventaram a delação de um triplex por diretor preso de uma construtora, louco para se livrar do cárcere: o triplex seria do Lula, propina por vantagem indeterminada, e não estava no nome dele porque se tratava de lavagem de dinheiro. Ou seja, fizeram da falta de prova uma prova de crime qualificado, para arrepio do mundo jurídico.
Provou-se documentalmente que o triplex jamais foi de Lula, que apenas lhe fora oferecido em troca de outro apartamento que a esposa de Lula tinha no empreendimento original vendido na planta pela Bancoop; depois da quebra desta, o projeto inteiro foi alterado e assumido pela OAS. Lula não aceitou a permuta quando de sua única visita ao empreendimento inacabado, alegando problemas nas articulações da esposa, muitas escadas no triplex, planta com distribuição inadequada para as necessidades de um ex-presidente (sem condições de alojar seguranças). O tal diretor preso da OAS insistiu na tentativa de venda, colocaria elevador interno, Lula previu que continuaria inadequado, ainda assim o diretor sabia que não seria fácil vender um apartamento como aquele, faria a alteração que tinha em mente, sem compromisso, a esposa e o filho de Lula decidissem se interessaria para alguém da família. Novamente, em segunda vistoria por Marisa e Fábio, adequações internas em curso adiantado, não houve interesse, a torre do elevador apequenou ainda mais uma sala num piso e uma saleta no de cima. Enfim, ponto final na tentativa frustrada de negócio. Fim, recusa dos “potenciais compradores”, dos “clientes em potencial”, não palavras da arquiteta e do empreiteiro contratados pela própria OAS, que no mesmo dia interromperam as alterações internas.
Tudo isso consta nos autos, há inclusive videos dos depoimentos.
MESMO assim, por falta de melhor acusação, condenaram LULA injustamente, na base do “cai na área que eu apito pênalti”, e assim o mantiveram encarcerado por 580 dias, em prisão CRIMINOSA, portanto, até que os recursos ao STF ANULASSEM a condenação por lawfare explícito, público e notório.
Teriam de calar as bocas podres de calúnia, injúria, difamação, violência processual, lawfare, perseguição ideológica, apreensão indevida de um tablete de uma criança…
Os lavajateiros ainda não pagaram por seus crimes, sequer foram acusados formalmente e julgados como o seriam em qualquer país minimamente civilizado. Continuam por aí, agora mostrando que de fato sempre tiveram lado, sempre enfiaram sua ideologia de direita nos processos que envolviam Lula.

O pior é que ainda hoje as penas dos travesseiros espalhadas aos quatro ventos por esses criminosos operadores do Direito continuam voando por aí, em mentes e línguas de hombridade duvidosa ou apenas midiotizadas.

Essa é uma breve amostra do mal que se fez.
Mas houve muito mais: falaram numa suposta “maior fazenda do Brasil” que pertenceria a um filho do Lula. Mentira descarada: nem fazenda, nem maior, nem coisa nenhuma, pura invenção.

Foi assim que se construiu a narrativa PANfleteira de midiotizadores, muitos dos quais — eles sim!!! — se locupletam com anúncios e até com concessões de rádio e TV. Rataiada que aprecia um bom queijo massa… grátis… claro.

Podridão.

Oxalá venha a mudança e as coisas sejam recolocadas em seus lugares. O mal já foi feito e estamos pagando por ele.

E ponho aqui o ponto final, com escusas ao leitor pelo bifão. É que continuo vendo as tais penas das calúnias voando por aí e isso me incomoda.

Observação: eu escolhi o título do artigo

É inútil argumentar com psicóticos

Não tente argumentar com bolsominions, eles funcionam como os psicóticos

por Vera Lúcia do Amaral

Um dos sintomas mais caros da psicopatologia, quando se estuda as psicoses, é o delírio. Esse é o sintoma mais importante dessas enfermidades mentais.

Popularmente, quando dizemos que uma pessoa “está delirando”, geralmente nos referimos àquelas pessoas que estão falando coisas sem sentido ou absurdas.

O delírio é um pouco isso mesmo, mas é mais que isso. O delírio define a psicose porque é a interpretação que o psicótico faz sobre o seu entorno. No entanto, essa interpretação não condiz em nada com a realidade do mundo onde ele vive. Ou seja, o delirante fala de fato coisas absurdas ou “loucas”, acha que o mundo o persegue ou acha que uma pessoa específica é a causa de todos os problemas do mundo.

Quem já conviveu com psicótico sabe que não adianta argumentar e contrariar o que ele está dizendo. Uma das características fundamentais do delírio é a sua irredutibilidade à argumentação lógica. O pensamento delirante é forte, é definitivo, é irremovível. E é assim porque o delirante construiu o seu mundo dentro dessa realidade paralela. Esse é o seu mundo, os outros é que estão interpretando tudo errado.

Assim, em psiquiatria aprendemos que não adianta em nada tentar “tirar” dos psicóticos aquelas “ideias malucas”. Aquele é o mundo dele! Ele não pode abrir mão daquelas idéeias sob pena de não saber mais explicar o seu mundo, nada mais fazer sentido na sua realidade.

Bem, talvez aqui vocês já estejam compreendendo onde quero chegar: o pensamento da extrema direita bolsonarista é em tudo semelhante ao pensamento delirante. Através do discurso do seu chefe foi se construindo, desde 2018, uma realidade paralela em que o grande perseguidor é Lula, o PT e os “comunistas”. Essas ideias são de tal modo arraigadas e tão fortemente compartilhadas que são – tal qual o delírio – irremovíveis. Não adianta argumentar, não adianta mostrar a falta de lógica do pensamento deles. Não há diálogo com delirantes.

Se o pensamento delirante de um indivíduo é forte, imagine se, hipoteticamente, ele encontra eco e aceitação em um grupo. Isso não acontecem bem com psicóticos, já que cada um tem seu mundo próprio. O grupo passa a se retro-alimentar do delírio, um do outro, e se cria todo um sistema delirante.

É isso que estamos vivendo com bolsominions que insistem em negar a cagada que fizeram.

Por isso, para sua própria saúde mental, não tente argumentar com um bolsominion. Não vai adiantar de nada.

VERA LÚCIA DO AMARAL é psiquiatra, professora universitária e doutora em educação pela UFRN

Primavera política

Por Elton Luiz Leite de Souza

Segundo a mitologia, Hades é a divindade que habita a região trevosa muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.
Certa vez, porém, Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone… Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais.
Ceres , por sua vez, é filha de Cibele, a divindade da fertilidade. Cibele é o Feminino Ancestral ( os povos originários da América a chamam de Pachamama).
E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a divindade cuja arte é fazer nascer flores: múltiplas e heterogêneas, flores de todas as cores.
Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de arte, de poesia e de criatividade.
Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa, ninguém imaginava que pudesse nascer no taciturno Hades um desejo por cores.
Num ato condenável, Hades raptou então Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.
Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava .
A pedido de Ceres, Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone viveria lá embaixo com Hades : sua ausência entre nós recebeu o nome de inverno.
Até que vem o ansiado tempo em que Perséfone sobe de volta e enche de vida a terra : tudo recomeça , renovado.
Hoje, as sombras não reinam somente lá embaixo, mentalidades sombrias piores nos ameaçam aqui em cima . Apesar disso, nada detém Perséfone , ela já está de nós próxima: nesta semana começa a primavera, tempo em que Perséfone chega para florir de vida a terra.
Que uma primavera política possamos em outubro também criar , vencendo nas urnas as trevas.

“O céu da teoria é cinza;
mas sempre verdejante é a árvore da vida.” (Goethe)

“Eram os passarinhos que colocavam
primaveras nas palavras.” (Manoel de Barros)

Que o Brasil supere, de vez, a passagem pelo inferno

MIA COUTO

Aconteceu a mim o oposto do que sucedeu com Pedro Alvares Cabral: encontrei você, Brasil, pensando que era a minha própria terra. Não tive nem barco, nem mar. Quem viajou foram vozes brasileiras que entraram na minha casa como se não houvesse porta. Essas vozes falavam de uma nação distante que guardava África nas suas raízes e misturava África nas suas sementes.

Na minha varanda, desembarcou o mar de Dorival Caymmi, desembarcaram os versos de João Cabral, de Bandeira, desembarcou a prosa de Drummond, Amado, Machado, Rosa e Graciliano. Havia um idioma que era o de Moçambique, mas que já era um outro. E havia um lugar que me abraçava com os meus próprios braços. Esse parentesco era motivo de orgulho dos moçambicanos que, enchendo o peito, avisavam o mundo: olha que temos um irmão que se chama Brasil!

Em 1975, já Moçambique livre e independente, chegaram dezenas de brasileiros que fugiam do regime militar que se tinha instalado à força em Brasília. Esse país que eu idealizara como um lugar de afeto e harmonia era, desde 1964, governado pelo ódio, pelo medo e pela violência. Os brasileiros que buscavam refúgio político em Moçambique eram pessoas tão generosas, solidárias e afáveis e era difícil aceitar que a maior parte deles tivessem sido perseguidos, presos e torturados.

Finalmente, em 1987, viajei para o Brasil, dois anos depois da democracia ter sido reinstalada. Foi como encontrar finalmente um pretendente com quem, durante anos, namorou por carta. Neste caso, não houve desilusão. Pelo contrário, a paixão pela gente e pela terra brasileira não me deixou ver a ruga e a mácula. Encontrei um Brasil que eu tinha romantizado.

Sob essa capa de doçura e afabilidade havia uma outra dimensão de violência que era filha e neta da brutalidade colonial. Eu tinha visitado você, Brasil, como aqueles sujeitos que clamam serem cegos para raças e, desse modo, não são capazes de ver o racismo.

Essa cegueira seletiva fez com que, décadas depois, me surpreendesse o fato de os brasileiros terem elegido para presidente um homem que declara sentir saudades da ditadura e que celebra como referência moral um torturador no regime militar. Um presidente que substitui o diálogo pela ameaça das armas e que manifesta a maior indiferença perante a morte e o sofrimento dos seus compatriotas. Houve, admito, um Brasil que foi mais sonho do que realidade. Mas este você de hoje é um pesadelo bem real.

O meu maior desejo é que os brasileiros superem de vez e para sempre esta sua passagem pelo inferno. O Brasil que ganhou o respeito do mundo não pode ser representado senão por alguém que celebra a vida e que defende o tesouro maior da nação brasileira: a infinita diversidade do seu passado e pluralidade do seu futuro.

Não é apenas um desejo pessoal. E uma certeza: você vai se levantar, vai sacudir a poeira e vai dar a volta por cima.

A ÉTICA NEOPENTECOSTAL E O ESPÍRITO DO NEOLIBERALISMO

Por Fábio Metzger
Interessante como vejo tantos neopentecostais usando a religião sem qualquer base racional ou filosófica mais consistente.
A facilidade com que evocam o demônio à fé dos outros, colocando a imagem do “demo” como o mal absoluto é a perfeita construção do maniqueísmo mais irracional que há. Como se a própria criação do diabo não fosse a de um anjo rebelde, criado por Deus, justamente para que os humanos pudessem conviver com uma porção de si mais contestadora.
De repente, nada mais faz parte da iniciativa da pessoa, é Deus que fez, Deus que agiu assim, assado, etc. É uma espécie de magia desse ente absoluto perfeito, inatingível, que tudo pode, mas que ninguém vê.
Católicos e protestantes tradicionais tinham uma base teológica para sustentar a sua visão de Deus. Assim como Kardec e seus discípulos. Igualmente o judaísmo ou o Islã.
Os praticantes das religiões orientais, indígenas, de matrizes africanas e hinduístas desenvolveram todo um aparato lógico e sincrético para explicar os fenômenos da natureza e a harmonia dela com o ser humano.
Já os praticantes do neopentecostalismo são reféns das lideranças pessoais de seus pastores, que simplesmente “reescrevem” a história, dando a si mesmo titulações como “bispos”, “apóstolos”, “ministros”, etc., e permitem a si mesmos reinventar todo tipo de tradição religiosa conforme a sua conveniência e a demanda mercadológica.
O praticante da religião neopentecostal é, muitas vezes, um ingênuo, outras tantas, um cúmplice, e em outros momentos, realmente tão responsável quanto o seu principal mentor.
Há os que estão no vazio espiritual. Mas também existem os que sabem muito bem o que fazem, ao pactuarem com essas lideranças.
Acabar com neopentecostalismo? Claro que não. Esta é uma religião que é o espelho dos tempos atuais. É o retrato da crise do Iluminismo. Foi na transição entre o Renascimento e o Iluminismo que nasceu o Protestantismo.
Não coincidentemente, quando o Liberalismo e o Capitalismo se desenvolveram enquanto teoria filosófica e prática econômica.
Foi na transição da manufatura e do comércio se tornando atividades cada vez mais importantes, perante a agricultura de subsistência. A sociedade da Terra estava, aos poucos, sendo substituída pela sociedade do Trabalho.
E é justamente na crise do Iluminismo, que o Neopentecostalismo ganha corpo. Não coincidentemente, quando o Neoliberalismo e o Anarcocapitalismo se articulam enquanto teoria filosófica e prática econômica.
Justamente hoje, em que o mundo vive a realidade virtual, em que a manufatura e a agricultura foram totalmente financeirizadas, assim como todo e qualquer setor das sociedades mundiais, que estão informatizadas e interconectadas.
A sociedade do Trabalho vai sendo desmontada, e sendo substituída pela sociedade do Lucro.
O neopentecostalismo é, antes de tudo, uma religião da crise. Uma manifestação organizada do desespero.
Um formato socializado de indivíduos esvaziados e atomizados, enfileirados com bíblias em suas mãos, diante de lideranças carismáticas, mais preocupadas com a prática de desenvolver correntes de negócios do que propriamente desenvolver uma ética cristã.
No antigo protestantismo, era possível desenvolver-se muitos negócios entre fiéis. No entanto, a socialização primeira dizia respeito à ideia de solidariedade coletiva.
Qualquer negócio posterior seria uma consequência não forçada de muito tempo depois, justamente porque a ética do trabalho era o elemento comum dos fieis presentes.
Hoje em dia, diante do tempo acelerado que se vive, parece mais presente a ideia da ética do lucro, e esta interferindo no desejo de realizar uma leitura particular desta ou daquela linha religiosa. E o neopentecostalismo ocupa um espaço maior neste contexto.” Por Fabio Metzger

“Velhez”

Por Elton Luiz Leite de Souza

Caetano, Gil, Chico…chegaram aos 80 anos. Esse acontecimento me lembrou uma história envolvendo o poeta Manoel de Barros.
Quando fez 80 anos, Manoel de Barros recebeu pedido de um editor para que escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e, sobretudo, da velhice. Com sua avançada idade, o editor supunha que o poeta teria muito a dizer sobre si e aconselhar aos outros, principalmente aos jovens.
Passado algum tempo, o poeta enviou ao editor o primeiro livro: Memórias da primeira infância. Em todos os sentidos, o livro foi um sucesso. Tempos depois, Manoel enviou novo livro ao editor: Memórias da segunda infância. Como diz Manoel, poesia é saber que “não vem em tomos” . Assim, a segunda infância não era uma sequência da primeira , não era uma infância posterior . A segunda infância era uma segunda ida do poeta à infância sempre primeira.
Manoel reservava ainda fôlego para uma nova ida à infância, e assim enviou ao editor um terceiro livro: Memórias da terceira infância.
O tempo passou, o poeta nada mais enviou ao editor, que tomou coragem e indagou: “Poeta, suas três memórias da infância são extraordinárias, porém onde estão as memórias da vida adulta e, sobretudo, da velhice?”
Manoel respondeu : “Só tive infância”. E completou: “Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos”.
Essa infância, enquanto antídoto à “velhez”, não é uma determinada idade. Pois ela também é a infância da linguagem, o seu fazer-se novidade para dizer o que ainda não foi dito: “As crianças sabem dizer palavras que ainda não têm idioma”.
“Velhez” também é quando os dias vividos se tornam um peso curvando as costas, não importando a idade que se tenha. “Velhez” é a vida prostrada, de joelhos, sem forças para caminhar e avançar. Às vezes, é a própria sociedade que sofre de “velhez” : quando seu futuro , ainda nem chegado, já parece extinto…
“A única coisa que carrego é meu chapéu: moro debaixo dele”, explica-se o andarilho-poeta. “Chapéu” é como Manoel nomeia as ideias que protegem os pensamentos que dão caminho às pernas : “O poeta-andarilho abastece de pernas as distâncias”. Sobre o chapéu do poeta um casal de pardais fez ninho: há nele ovos sendo chocados, assim como , dentro do poeta, auroras .
Manoel , Chico, Caetano, Gil…nos ensinam que a velhice nada tem a ver com a velhez. E que criatividade e potência de vida não dependem da idade, desde que se descubra o que na criatividade há de absoluto. “Ab-soluto”: “o que não é soluto, o que não se dissolve”.
Fascismo , ignorância e idiotia são reatividades da velhez que a tudo quer dissolver com seu negacionismo. Mas arte, criatividade, educação….são potências críticas e criativas que tornam a vida absoluta nas ideias que aprendemos e ensinamos, nos versos que lemos ou escrevemos, enfim, nas canções que, juntos ou sozinhos, cantamos.

Método

MÉTODO

O assassinato de Genivaldo não foi erro; foi método. Nazista.

Por Marcos Nogueira, colunista da Folha de São Paulo.

Erro é queimar o feijão; câmara de gás é método nazista Ouvidos pela Folha, especialistas em segurança pública apontaram "uma série de erros" na abordagem da Polícia Rodoviária Federal ao motociclista Genivaldo de Jesus Santos. Parado por pilotar sem capacete numa estrada de Sergipe, Genivaldo foi fechado no porta-malas da viatura com uma bomba de gás lacrimogêneo. Morreu. Do alto da minha falta de especialização, afirmo sem med. de errar que os especialistas estão errados. Erro é esquecer a panela no fogo e deixar o feijão queimar. Erro é quebrar o espaguete ao meio antes de jogar na água. Erro é cozinhar o macarrão até ficar mole. Erro é jogar queijo ralado em massas com frutos do mar. Erro é remover a gordura da picanha para fazer churrasco. Erro é quando você pede a carne malpassada e a recebe estorricada. Erro é comer sushi com garfo e faca. É harmonizar temaki de salmão com malbec argentino. Erro é fazer supermercado com fome e comprar mais comida do que precisa com o dinheiro que não tem. Erro é fazer compras distraído e levar para casa café sem cafeína, leite sem lactose, cerveja sem álcool e atum vegano. Erro é chamar o drinque margarita de "marguerita". É aquecer a pizza marguerita no micro-ondas. Erro é pedir bife no restaurante de peixe e lasanha na churrascaria. Erro é comprar hambúrguer de picanha achando que tem picanha. Erro é acreditar que qualquer gororoba fica boa com azeite trufado ou requeijão. Erro é colocar sal no café e adoçante na batata frita. O que a PRF fez com Edivaldo é homicídio qualificado. É tortura que resultou em morte. É execução. É dolo, não é imperícia. Um dos especialistas afirma que "a abordagem foi atabalhoada". Fui até checar o significado do adjetivo: "atabalhoado" quer dizer apressado, confuso, sem cuidado. Não sei se o especialista viu o mesmo vídeo que eu vi. Nas imagens que eu vi, os policiais agem sem pressa, com calma e método, enquanto as pernas de Genivaldo se debatem para fora da viatura. A violência policial tem muito método. O método nazista de exterminar indivíduos indesejados na câmara de gás. O método ensinado em cursinhos para concurseiros da PRF –ontem emergiu o vídeo de um professor que, às gargalhadas, ensina a "acalmar" com spray de pimenta pessoas trancadas no carro da patrulha. Como mostra reportagem da BBC Brasil, publicada também na Folha, a PRF eliminou uma disciplina sobre direitos humanos do currículo do treinamento dos agentes. Está tudo ajeitado para ser assim mesmo. A morte de Genivaldo é resultado de uma série de erros –erros nossos, não dos carrascos rodoviários. Foi um erro enorme ter permitido o empoderamento do guardinha da esquina, do fiscal de fiofó alheio e da viúva da ditadura. Foi um erro gigantesco tocar a vida normalmente enquanto as milícias armadas, fardadas ou não, só faziam crescer. Foi um erro inadmissível entregar o país a uma corja de desqualificados que celebram a morte. Não podemos nos dar ao luxo de seguir errando assim.

Como fabricar idiotas úteis

Do filósofo alemão Günther Anders, 1956.
′′Para sufocar antecipadamente qualquer revolta, não deve ser feito de forma violenta. Métodos arcaicos como os de Hitler estão claramente ultrapassados. Basta criar um condicionamento coletivo tão poderoso que a própria ideia de revolta já nem virá à mente dos homens. O ideal seria formatar os indivíduos desde o nascimento limitando suas habilidades biológicas inatas…
Em seguida, o acondicionamento continuará reduzindo drasticamente o nível e a qualidade da educação, reduzindo-a para uma forma de inserção profissional. Um indivíduo inculto tem apenas um horizonte de pensamento limitado e quanto mais seu pensamento está limitado a preocupações materiais, medíocres, menos ele pode se revoltar. É necessário que o acesso ao conhecimento se torne cada vez mais difícil e elitista… que o fosso se cave entre o povo e a ciência, que a informação dirigida ao público em geral seja anestesiada de conteúdo subversivo.
Especialmente sem filosofia. Mais uma vez, há que usar persuasão e não violência direta: transmitir-se-á maciçamente, através da televisão, entretenimento imbecil, bajulando sempre o emocional, o instintivo. Vamos ocupar as mentes com o que é fútil e lúdico. É bom com conversa fiada e música incessante, evitar que a mente se interrogue, pense, reflita.
Vamos colocar a sexualidade na primeira fila dos interesses humanos. Como anestesia social, não há nada melhor. Geralmente, vamos banir a seriedade da existência, virar escárnio tudo o que tem um valor elevado, manter uma constante apologia à leveza; de modo que a euforia da publicidade, do consumo se tornem o padrão da felicidade humana e o modelo da liberdade.
Assim, o condicionamento produzirá tal integração, que o único medo (que será necessário manter) será o de ser excluído do sistema e, portanto, de não poder mais acessar as condições materiais necessárias para a felicidade. O homem em massa, assim produzido, deve ser tratado como o que é: um produto, um bezerro, e deve ser vigiado como deve ser um rebanho. Tudo o que permite adormecer sua lucidez, sua mente crítica é socialmente boa, o que arriscaria despertá-la deve ser combatido, ridicularizado, sufocado…
Qualquer doutrina que ponha em causa o sistema deve ser designada como subversiva e terrorista e, em seguida, aqueles que a apoiam devem ser tratados como tal.′′

  • Günther Anders, “A obsolescência do homem′′, 1956

Oito afirmações marxistas que podem te surpreender 

Estátuas de Marx em Trier, Alemanha. | Foto por Hannelore Foerster/Getty Images

POR 

MITCHELL ABOULAFIA

TRADUÇÃO
RAPHA KLASS

Compartilhado de jacobin.com.br

Críticos de Marx não costumam entender o grande pensador socialista. Estamos aqui para acertar as contas.

Há muitas formas de se interpretar Marx, várias delas legítimas. Porém, outras buscam reduzi-lo, invocando uma retórica anticomunista. Zombam dele como se fosse um determinista econômico estéril ou detonam suas análises e previsões como se horripilantemente errôneas.

Marx nem sempre esteve certo (e quem está?). Entretanto, ele esteve certo ou afirmou coisas defensáveis com mais frequência do que a maioria das pessoas percebe. Vale a pena prestar mais atenção. 

Portanto, com o objetivo de refutar algumas das representações mais superficiais do grande pensador socialista, aqui estão oito afirmações que deveriam estar inclusas em qualquer interpretação respeitável de Marx ou do Marxismo.


1.

Marx não dispensava simplesmente o capitalismo, estava impressionado por ele. Ele argumentou que é o sistema mais produtivo que o mundo jamais viu.

“A burguesia, em seu reino de apenas cem anos, criou forças produtivas mais massivas e mais colossais do que todas as gerações passadas juntas. Sujeição das forças da Natureza ao homem e ao maquinário; aplicação de química à indústria e à agricultura; navegação à vapor; ferrovias; telégrafos elétricos; desobstrução de continentes inteiros para o cultivo; canalização de rios; populações inteiras invocadas do chão – que século anterior tinha sequer um pressentimento de que tais forças produtivas dormiam sobre o colo do trabalho social?”

2.

Marx previu com precisão que o capitalismo criaria o que hoje se entende por globalização. Ele viu o capitalismo criando um mercado global onde as nações se tornariam cada vez mais interdependentes. 

“A burguesia, através da sua exploração do mercado global, deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para o imenso desgosto dos Reacionários, ela tirou de debaixo dos pés da indústria o solo nacional em que ela se encontrava. Todas as velhas indústrias nacionais foram destruídas ou estão sendo destruídas diariamente…

No lugar do antigo isolamento local e nacional e da autossuficiência, temos relações em todas as direções, interdependência universal das nações.”

3.

Ao contrário das sociedades passadas, que tinham a tendência de conservar tradições e seus modos de vida, o capitalismo prospera com a invenção de modos de produção novos e alternativos que afetam o nosso viver. As tecnologias mudam nossas vidas a uma velocidade ainda maior. Produtos velhos devem abrir caminho para produtos novos (e para aqueles que os produzem). 

Apesar dos capitalistas retratarem isso como se fosse puramente bom, pode ser algo profundamente inquietante, mesmo que certas mudanças sejam positivas. Pode levar as pessoas a sentirem que seus valores e modos de vida não têm mais lugar no mundo – que estão vivendo como madeira morta. Além disso, o emprego de novas tecnologias e métodos de produção na busca de lucro para poucos pode levar a consequências imprevistas. (Em nosso tempo, sem dúvida Marx indicaria a mudança climática como consequência do capitalismo desenfreado.)

“A burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção e, assim, as relações de produção, e com elas todas as relações da sociedade…Revolução constante da produção, perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, incerteza e agitação sem fim distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas e ultracongeladas, com o seu leque de antigos e veneráveis preconceitos e opiniões, são varridas; todas as novas formadas tornam-se antiquadas antes de poderem ossificar. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é finalmente obrigado a encarar com sentidos sóbrios suas reais condições de vida e suas relações com sua espécie.”

4.

Empresas poderosas, concentrações de riqueza e novos métodos de produção tornam cada vez mais difícil que profissionais independentes e comerciantes de classe média consigam manter seu status. Eles acabam ficando com o conjunto de habilidades errado ou trabalhando para as empresas que acabaram com os seus tipos de negócio. Em outras palavras, Marx antecipou a Walmartificaçãodas sociedades capitalistas.

“Os estratos mais baixos da classe média – os pequenos comerciantes, lojistas e comerciantes aposentados em geral, os artesãos e camponeses – afundam-se gradualmente no proletariado, em parte porque seu capital diminuto é insuficiente para a escala na qual a Indústria Moderna progride, e são inundados na competição com os grandes capitalistas, e em parte porque sua habilidade especializada é inutilizada por novos meios de produção.”

5.

Marx não defendia a abolição de todas as propriedades. Ele não queria que a grande maioria das pessoas tivesse menos bens materiais. Ele não era um utopista anti-materialista. O que ele se opunha era à propriedade privada – as vastas quantidades de riqueza concentrada pertencentes aos capitalistas, à burguesia. Inclusive, no final da passagem abaixo, ele e Engels ironicamente acusam o capitalismo de privar as pessoas de sua “propriedade auto-conquistada”.

“A característica distintiva do comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa.  Mas a propriedade privada burguesa moderna é a expressão final e mais completa do sistema de produção e apropriação de produtos, que é baseado em antagonismos de classe, na exploração dos muitos pelos poucos. 

Nesse sentido, a teoria dos comunistas pode ser resumida numa única frase: Abolição da propriedade privada. 

Nós comunistas temos sido acusados de desejar abolir o direito de adquirir pessoalmente a propriedade como fruto do trabalho de um homem, cuja propriedade é supostamente a base de toda a liberdade pessoal, atividade e independência.

Propriedade duramente conquistada, adquirida por si, auto-conquistada! Você quer dizer a propriedade do pequeno artesão e do pequeno camponês, uma forma de propriedade que precedeu a forma burguesa? Não há necessidade de abolir isso; o desenvolvimento da indústria já o destruiu em grande parte e segue o destruindo diariamente.”

6.

Marx achava que os seres humanos têm uma inclinação natural a se sentirem conectados aos objetos que eles criaram. Ele chamava isso de “objetificação” do trabalho, com o que ele queria dizer que colocamos algo de nós mesmos em nosso trabalho. Quando um indivíduo não consegue se conectar com a própria criação, quando se sente “externo” a ela, isso resulta em alienação. É como se você esculpisse uma estátua e alguém a tirasse de você, e você nunca mais tivesse permissão para vê-la ou tocá-la novamente. Marx argumentou que os trabalhadores estavam em uma posição parecida nas fábricas capitalistas do século XIX.

“O que, então, constitui a alienação do trabalho?

Primeiro, o fato de que o trabalho é externo ao trabalhador, ou seja, não pertence à sua natureza intrínseca; que em sua obra, portanto, ele não afirma a si mesmo, mas nega a si mesmo; não se sente contente, mas infeliz; não desenvolve livremente sua energia física e mental mas mortifica seu corpo e arruína sua mente. O trabalhador, portanto, apenas se sente ele mesmo fora de seu trabalho, e em seu trabalho se sente fora de si mesmo. Ele se sente em casa quando não está trabalhando e, quando está trabalhando, não se sente em casa. Seu trabalho, portanto, não é voluntário, mas coagido; é trabalho forçado.”

7.

Marx queria que nos libertássemos da tirania da divisão do trabalho e das longas jornadas de trabalho, que impedem os indivíduos de desenvolver diferentes tipos de capacidades e talentos. Nos tornamos servos de um único tipo de atividade e outras de nossas dimensões são subdesenvolvidas. 

“Pois assim que a distribuição do trabalho ocorre, cada homem tem uma esfera de atividade particular e exclusiva, que é imposta a ele e da qual ele não pode escapar. Ele é um caçador, um pescador, um pastor ou um crítico, e deve permanecer assim se não quiser perder seus meios de subsistência; enquanto na sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera de atividade exclusiva, mas cada uma pode se realizar em qualquer ramo que desejar, a sociedade regula a produção geral e, assim, possibilita que eu faça uma coisa hoje e outra amanhã – caçar pela manhã , pescar à tarde, criar gado à noite, escrever críticas após o jantar, como eu tiver em mente, sem nunca me tornar um caçador, um pescador, um pastor ou um crítico.”

8.

Marx não era um determinista econômico bruto. A forma com que as pessoas pensam e agem importa. Em uma carta escrita por Engels, ele enfatizou a importância da economia, mas tentou deixar claro que ele e Marx foram mal interpretados (por culpa deles mesmos, parcialmente).

“Marx e eu somos ​​parcialmente culpados pelo fato de que as pessoas mais jovens às vezes colocam mais ênfase no lado econômico do que é devido a ele. Tivemos que enfatizar o ponto principal em relação aos nossos adversários, que o negavam, e nem sempre tivemos tempo, local ou oportunidade de dar a atenção devida aos outros elementos envolvidos na interação. Mas quando se tratava de apresentar uma seção da história, ou seja, fazer uma aplicação prática, era uma questão diferente e não havia permissão para erros. Infelizmente, porém, acontece com muita frequência que as pessoas pensam que entenderam completamente uma nova teoria e podem aplicá-la sem mais delongas a partir do momento em que assimilaram seus aspectos principais, e mesmo estes nem sempre corretamente. E não posso isentar muitos dos “marxistas” mais recentes dessa censura, pois as besteiras mais surpreendentes também foram produzidas neste último trimestre…”

Sobre os autores

MITCHELL ABOULAFIA 

é professor de filosofia na Manhattan College