Adam Smith: negociação direta patrão x empregado

No post anterior, compartilhei texto de Marx e Engels. Compartilho novo texto. Este do Adam Smith. Créditos ao final.

Paulo Martins

O produto anual da terra e do trabalho de qualquer nação não pode ser aumentado por qualquer outro meio, que não seja o aumento do número de trabalhadores produtivos ou da força produtiva dos trabalhadores já empregados.

Não foi com o ouro nem com a prata, mas com o trabalho, que toda a riqueza do mundo foi comprada pela primeira vez.

Logo que o capital se acumula nas mãos de certas pessoas, algumas delas o empregam, naturalmente, dando trabalho a pessoas capazes … a fim de ter lucro com a venda do trabalho delas ou com o que o trabalho delas adiciona ao valor das matérias primas. O valor adicionado às matérias primas pelos trabalhadores, portanto, se transforma no lucro do empregador.

O salário comumente pago pelo trabalho depende, sempre, do contrato que é feito entre as duas partes, cujos interesses não são, de modo algum, os mesmos. Os trabalhadores querem ganhar o máximo e os patrões querem pagar o mínimo possível. Aqueles se dispõem a juntar-se, para elevar os salários, e os patrões se dispõem a juntar-se, para diminuir os salários pagos pelo trabalho.

Não é, porém, difícil prever qual das duas partes leva, em todas as ocasiões comuns, vantagem na disputa e obriga a outra a aceitar seus termos. Os patrões, em menor número, podem juntar-se com muito mais facilidade; a lei, por outro lado, autoriza ou, pelo menos, não proíbe estes conluios, ao passo que proíbe os dos trabalhadores. O Parlamento não toma medidas contra o conluio para baixar o preço do trabalho, mas tem muitas medidas contra o conluio para aumentá-lo. Em todas estas disputas, os patrões podem aguentar muito mais tempo. Um proprietário de terras, um fazendeiro, um patrão industrial ou um comerciante, mesmo sem empregar um único operário, poderia, em geral, viver um ano ou dois do capital que já tivesse acumulado. Muitos trabalhadores não conseguiriam subsistir uma semana, poucos poderiam subsistir um mês e talvez nenhum conseguisse ficar um ano sem emprego… Os patrões estão sempre, e em toda parte, numa espécie de conluio tácito, porém constante e uniforme, para não elevar os salários dos trabalhadores … Na verdade, raramente ouvimos falar destas combinações, porque elas são o estado comum e natural das coisas, do qual ninguém ouve falar. Os patrões também fazem, às vezes, combinações particulares para baixar mais ainda os salários pagos pelo trabalho. Estas são sempre feitas sob o maior silêncio  e o maior segredo, até a hora de serem postas em prática, e, quando os trabalhadores cedem, como às vezes ocorre, sem resistência – embora gravemente prejudicados – elas nunca chegam ao conhecimento de outras pessoas. Estas combinações, porém, sofrem, frequentemente, a resistência de uma combinação defensiva e contrária dos trabalhadores … Mas … suas combinações …sempre são muito comentadas … Eles ficam desesperados e agem com a loucura e a extravagância de homens desesperados, que têm de morrer de fome ou assustar os patrões para que estes aceitem imediatamente suas exigências. Os patrões, nestas ocasiões, também reclamam muito do outro lado e nunca deixam de clamar pela ajuda do magistrado civil e de pedir o cumprimento rigoroso das leis aprovadas com tanta severidade contra as combinações de empregados, trabalhadores e tarefeiros. As combinações (dos empregados) …, geralmente, não dão em nada, exceto na punição ou na ruína dos seus mentores.

Smith, A riqueza das nações

Citado por E. K. Hunt – História do  Pensamento Econômico/uma perspectiva crítica

Tradução da segunda edição

Tradução: José Ricardo Bandão Azevedo/Maria José Cyhlar Monteiro

Revisão técnica: André Villela

Editora Elsevier e Campus

 

A urgência da esperança não admite mais ilusões, por Saúl Leblon

Compartilho editorial de Saúl Leblon, do Carta Maior.

Como sempre uma análise lúcida, ampla, da enrascada em que nos metemos aqui no Brasil. Sugiro leitura atenta. Sem um bom diagnóstico ficaremos enredados no caos político, econômico e social atual. Tudo começa por um diagnóstico correto das nossas doenças, que não são exclusividade nossa e vem contaminando toda a humanidade. O texto do Saúl contribui para tão necessário diagnóstico.

O autor entende que há  “alternativa ao caos” e apresenta uma proposta. É bem-vinda. Serve para começo de discussão entre alternativas que devem ser postas pela sociedade, em substituição à ordem neoliberal que está sendo implantada, embora sem canhão, à força, mediante golpes e conluios.

Paulo Martins – dialogosessenciais.com

A urgência da esperança não admite mais ilusões, por Saúl Leblon – do  site cartamaior.com.br

Em menos de 24 horas, entre a noite de terça-feira (11/07) e a tarde desta quarta-feira, 12/07, o golpe jogou a cartada com a qual pretende virar uma página dupla da história brasileira.

Encerrar a era Vargas e o ciclo Lula.

Estripou os direitos trabalhistas conquistados e defendidos ao longo de 74 anos, desde a criação da CLT, por Getúlio, em 1943; ato contínuo, condenou ao cárcere, por uma década, o maior líder popular brasileiro, Lula, de 71 anos, presidente duas vezes, favorito inconteste nas sondagens eleitorais para 2018.

Quis o destino que o conjunto acontecesse na mesma data em que, há 55 anos, Jango criava o 13º salário para os trabalhadores brasileiros, recebido com manchetes aterrorizantes pela mídia que dois anos depois festejaria o golpe de 1964.

A apoteose das últimas horas de certa forma esgota o repertório da ‘progressão’ golpista em 2017.

O da resistência democrática, ao contrário, pode enrijecer.

Longe de ser o fim, a tentativa conservadora de inocular prostração na sociedade, poderá inaugurar uma escalada de mobilizações e impor maior clareza programática no projeto de futuro capaz de unir a frente popular e arrebatar o país.

A prefiguração do futuro preconizado pelo golpismo é medonha.

Com certa soberba histórica nem se disfarça a pindaíba social reservada à nação brasileira.

A sofreguidão reflete de certa forma o escaldado retrospecto das oito vezes em que essa ofensiva foi interrompida, em meio século de luta de classes.

Em 1954, pelo levante popular após o suicídio de Vargas; em 1961, na campanha da legalidade pela posse de Jango; em 1984, na luta pelas Diretas Já! — derrotada, mas que levou à conquista superior da Carta Cidadã, de 1988 e, finalmente, nas quatro vitórias presidenciais sucessivas de Lula e Dilma em 2002, 2006, 2010 e 2014.

Era demais o risco de um novo revés em 2018.

Derrubar Dilma para inviabilizar Lula fazia parte do ciclo político da tolerância conservadora em nossa história. Erros na condução da crise econômica serviram apenas de lubrificante: a engrenagem já fora acionada quando as urnas de 26 de outubro de 2014 refugaram, pela quarta vez sucessiva, o projeto antissocial e antinacional ora imposto à nação.

A ofensiva revanchista culminada nas últimas horas calcifica as representações dos trabalhadores (sindicais e partidárias), sangra sua estrutura financeira, ataca sua credibilidade e busca encarcerar sua principal voz.

Se o nome disso não é golpe será preciso inventar um outro para defini-lo.

A existência altiva de uma organização de trabalhadores constitui um freio inestimável às arremetidas da barbárie capitalista em qualquer época, em qualquer sociedade.

Dispensar à destruição do PT e de Lula uma centralidade equivalente a atribuída pelos mercados à revogação do direitos sociais e trabalhistas explicita a funcionalidade de Moro.

O seletivo afinco do juiz da praça de Curitiba em atender à demanda política número um do conservadorismo — calar a única voz ouvida por aqueles aos quais a Globo gostaria de falar sozinha– é um requisito para viabilizar a restauração do trabalho avulso diante da coesão patronal.

Descortina-se –mesmo aos olhos antes distraídos—a natureza do futuro que se reserva à sociedade brasileira: uma nação feita de gente barata, um país entregue ao abismo da desigualdade abissal, sem laços compartilhados no trabalho, na velhice e no ganha pão.

Esse Brasil mexicanizado, de vidas ordinárias, entregues ao arbítrio do mercado e das gangues, mimetiza, num país de carências bíblicas, as incertezas e vicissitudes do voo turbulento do capitalismo global, em um estágio de mutação desordenada.

O discernimento do futuro inscrito na apoteose golpista pode gerar no eleitor de 2018 o efeito que se quer prevenir com a eliminação de Lula da urna. É ostensivo o anseio conservador pela condenação ‘célere’ do candidato que lidera as sondagens, como pede o editorial da Folha no dia seguinte à sentença de Moro.

A tentativa da destruição gêmea de Lula e dos direitos sociais e trabalhistas desnuda perigosamente a virulência dos marcos do projeto conservador para o país.

A literalidade dos impactos na vida cotidiana, sobretudo dos mais humildes que perdem a proteção da lei e a voz que poderia representa-los pode ser a tocha de uma espiral de conflitos de consequências imprevisíveis.

O golpe de 1964 levou quase cincos anos para encontrar um chão ‘institucional’ baseado no terror, na tortura e na censura.

A manipulação midiática e a farsa de um parlamento contra o povo não serão suficientes para sustentar a reordenação conservadora atual, se for escancarada a sua âncora de des-emancipação social.

A verdade é que o esgotamento da ordem neoliberal no mundo requisita um poder de coordenação econômica e de planejamento democrático inverso ao que se desenha aqui.

Reduzir o país a uma dívida pública paga em dia, a juros suculentos, às custas da agonia falimentar dos serviços públicos, dos direitos, da renda e do emprego só é viável no imaginário de quem já se dissociou até fisicamente do destino da sociedade e da sorte do seu desenvolvimento.

Quem?

A minoria rentista que da escada do avião acena recomendações de uma dantesca ‘purga’ na Constituição de 1988 para equilibrar ‘o fiscal’, às favas o povo, esse estorvo da boa finança (leia nesta pág. http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FBye-bye-Brasil%2F38336).

O jogo, portanto, atingiu o ápice da violência de classe.

Não é temerário prever um aguçamento do conflito social no período que se abre.

Com um agravante.

Inabilitadas pela ruptura da legalidade, as instituições mediadoras, a exemplo de uma parte ostensiva do judiciário –sem falar da mídia e da escória parlamentar de despachantes do mercado– perderam sua credibilidade ao se acumpliciarem na demolição do pacto da sociedade sem consulta-la.

Após quatro derrotas presidenciais sucessivas, sendo a última, de outubro de 2014, com seu quadro mais palatável, as elites decidiram queimar as caravelas e os escrúpulos que supostamente ainda carregariam.

Fizeram-no, como se constata na escalada do cerco ao PT e à Carta de 88 convictas de que só escavando um fosso profundo na ordem constitucional teriam o poder necessário para a demolição requerida.

Aquela capaz de transformar a construção inconclusa de um Brasil para todos, na recondução da ordem e do progresso para os de sempre.

Não deixam dúvida as encomendas e as entregas: o golpe veio apunhalar a democracia para atingir o interesse popular.

Vem aí um vergalhão de privatizações e abastardamento de serviços essenciais.

Reafirma-se a rigidez recorrente da velha fronteira histórica onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado e começam as bases da construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta.

‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo pode conceder sem mergulhar a economia em uma crise fiscal desestabilizadora’, martelam diuturnamente os colunistas do jogral midiático que não cogitam jamais de uma reforma que estenda, por exemplo, a coleta de tributos aos R$ 334 bilhões em lucros e dividendos –isentos de IR—apropriados em 2016 por pessoas físicas das faixas de renda mais altas da sociedade.

Ao contrário.

O que se enxergou do esgotamento de um ciclo de expansão, agravado pela crise econômica global, foi a oportunidade para um acerto de contas capaz de fazer o serviço completo.

Cortar o ‘mal’ pela raiz.

Explica-se assim a sanha do assalto às fontes originárias da universalização de direitos na sociedade, desde a CLT de 1943, à Constituição Cidadã de 1988 e o partido que deles se tornou o principal promotor.

Pode dar errado.

Ter um Estado que trata encargos sociais como estorvo do mercado, por mais que gere uma euforia inicial nos donos do dinheiro, não resolverá as grandes pendências nacionais emolduradas por um pano de fundo desafiador.

O capitalismo revira os nós de suas tripas em uma transição épica de padrão tecnológico.

O salto da industrialização 4.0 baseada na robótica, na integração e digitalização dos processos vai ralear e atomizar o mundo do trabalho e desse modo toda a sociedade.

A indústria continuará vital como núcleo irradiador de produtividade e tecnologia na sociedade. Mas será cada vez menos o núcleo ordenador do emprego e dos direitos.

A dispersão laboral que a esperteza conservadora quer acelerar aqui com a implosão da CLT e o barateamento da previdência aponta para uma fragmentação social de consequências imponderáveis.

Só a ação planejadora da democracia e do Estado pode impedir que isso transborde em anomia conflitiva, violenta e desesperada.

Eis o paradoxo da política de estabilização golpista.

A coesão social hoje passa a depender cada vez mais –e não menos– de políticas públicas amplas, massivas, inclusivas que a sabedoria fiscal dos ‘reformistas’ aqui trata de desossar.

O modelo atual de previdência social de fato se esfumou num horizonte de emprego instável e escassos vínculos trabalhistas.

Mas a miopia ideológica do conservadorismo extrai daí a oportunidade de apagar o incêndio social com o maçarico da exclusão .

A alternativa ao caos existe.

A seguridade social do futuro terá que ser financiada com um imposto geral, progressivo, cobrado de toda a sociedade. O contrário é o apartheid da velhice –e não apenas dos pobres, mas também da classe média– em privação, abandono, desespero familiar e depósitos de barbárie.

O mesmo vale para os demais bens e serviços.

No dizer do professor Luiz Gonzaga Belluzzo (que recomenda o filme de Roberto Andó, ‘As confissões’, de onde deriva a enunciação de um personagem para adaptá-la à hora do Brasil) –‘Se queremos reaver a esperança, não podemos mais oferecer ilusões’.

A esperança capaz de levantar a rua e redimir os laços sociais em nosso tempo não nascerá da nostalgia de um padrão de desenvolvimento irrecuperável.

Nem do seu ‘ajuste’ pelas mãos dos alfaiates das crises humanitárias.

A reforma estabilizadora e crível virá de políticas públicas que inovem diante das incertezas sociais e laborais, e respondam com justiça tributária ao desamparo que estilhaça e subordina a sociedade à ganância financeira.

Não por acaso, o que mais se evidencia nessa ciclópica transição emendada à crise de 2008, é a falta que faz agora tudo o que foi subtraído do Estado e da democracia no ciclo neoliberal anterior à explosão das subprimes – regulações, direitos, soberania, garantias trabalhistas, tributação da riqueza –que cedeu lugar ao endividamento paralisante do Estado, salários dignos, indução pública do investimento, amparo social enfim, laços de pertencimento e solidariedade fiscal e humana.

A virulência anacrônica do golpe brasileiro quer nivelar o país nesses quesitos, implodindo estruturas que o ciclo de governos progressistas preservou e ampliou.

Sua vitória pode estar fadada a ornamentar o cemitério da estagnação e o inferno da desigualdade.

A volta da fome ao país, denunciada agora à ONU, é um sinal da combustão social que arde com rapidez assombrosa. O quadro falimentar do estado no Rio de Janeiro velado por uma procissão de corpos que cresce à razão de um assassinato a cada duas horas é outro grito de alarme.

A conclusão explode aos olhos de quem não foi contaminado pela cegueira tóxica do jornalismo isento.

Falta investimento público, falta demanda, faltam oportunidades, inclusão e sentido de esperança no capitalismo do século XXI.

Esse corner humano e macroeconômico que o golpe mimetiza para barrar reformas e retificações de privilégios –requeridas pelo esgotamento do ciclo anterior de expansão– é justamente o desafio ao qual o projeto progressista terá que responder com o desassombro histórico.

A resposta conservadora é a ‘noite de São Bartolomeu’ em marcha que instaura a paz salazarista dos cemitérios.

Graças ao monopólio midiático, interditou-se o debate das alternativas à delicada transição de ciclo econômico (local e global) para a qual não existe saída fora da repactuação da sociedade em torno de políticas que fortaleçam, não esmaeçam, as dimensões compartilhadas do presente, do futuro e do passado da cidadania.

A manipulação midiática logrou assim avalizar ‘soluções’ que na verdade radicalizam a contraposição de interesses unilaterais, privilegiam os mercados e não os cidadãos, impõem uma regressão civilizacional inconciliável com a manutenção do Estado democrático e, por fim, corroem aquilo que tão arduamente se reconquistou, a autoestima brasileira.

Sobra o quê?

Uma ruptura mais profunda do que a mera destituição de um Presidente da República.

De diferentes ângulos da economia e da sociedade já emergem avisos de saturação estrutural.

Em 1964, a transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar abriu uma válvula de mobilidade momentânea –às custas de uma urbanização de periferias conflagradas– para as contradições violentas de uma sociedade que já não cabia no seu modelo anterior.

Mesmo com essa válvula de escape, a repressão do regime foi brutal. Hoje não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer a panela de pressão da nova encruzilhada do desenvolvimento turbinada pela finança e a tecnologia poupadora de empregos e direitos.

As legiões que não couberem aí serão escorraçadas, como estão sendo, pela explosiva segregação que se anuncia, atiradas a uma periferia constitucional e, assim, coagidas a reagir de forma explosiva ou perecer.

Erra esfericamente quem imagina que esse estirão pode ser mitigado com a maciça entrega do que sobrou do patrimônio público depois do governo do PSDB.

Privatizações não agregam força produtiva nem vagas; apenas concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o já enfraquecido poder indutor do investimento público, reduzem o fôlego do Estado com remessas descasadas de receitas exportadoras.

Radicalizam , enfim, o que o país mais precisa superar.

A reedição de um novo ‘1964’ exigiria, desse modo, uma octanagem fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do poder de coerção necessário à devolução da pasta de dente social a um tubo que na verdade nem existe mais.

Não há uma terceira escolha.

É voltar às urnas na esteira de forte mobilização da sociedade; ou entregar a nação a uma ‘longa noite de exceção’ de desdobramentos incontroláveis.

Essa é a disjuntiva.

Moro se empanturrou da ração midiática na qual foi cevado nos últimos anos.

A sentença com a qual pretende ‘limpar esse terreno’, interditando o nome de quem pode barrar a imissão de posse violenta, não vai mudar, nem resolver a encruzilhada estrutural da qual Curitiba é um simples adereço de mão do conservadorismo.

A opção à deriva imponderável cabe à resistência democrática progressista –se cumprir certos requisitos.

Ela terá que ser construída nas ruas, a partir de um desassombrado aggiornamento de sua visão de futuro.

A esperança capaz de levantar as ruas –repita-se—não admite mais ilusões.

A repactuação do desenvolvimento brasileiro só deixará de ser uma miragem flácida se calcada em amplas políticas de infraestrutura e inclusão social –inclusive dos filhos de uma parte expressiva da classe média que terão que se inserir em sistemas públicos de educação, saúde e lazer.

O novo é o que é público e comum. Assim como as escalas se ampliam na economia das grandes corporações, elas terão que ser magnificadas também na esfera dos acessos e direitos consagrando o bem comum.

Moro não calará Lula, assim como não silenciaram Mandela, se ele se tornar desde já o porta-voz desse arrebatador projeto de futuro compartilhado.

Aquele que repactua a nação consigo mesmo e com o século XXI através de políticas públicas e tributárias que viabilizem o que a elite brasileira – e sua escória parlamentar—se empenha em sonegar: o direito de a maioria sair da soleira do lado de fora do país e da civilização para desfrutar da principal riqueza do nosso tempo: direitos, oportunidades, serviços e espaços públicos dignos para todos.

A Sombra das Reformas Trabalhistas, por André Bojikian Calixtre

Compartilho artigo de André Bojikian Calixtre.

Os argumentos técnicos estão listado e discutidos no texto. No Brasil, infelizmente, não há debate, há rolo compressor. Daqui a 10 anos estaremos discutindo como curar a metástase social causada pela reforma trabalhista em vias de ser aprovada no Senado.

E vamos nos tornando um país cada vez mais desigual, cada vez mais violento, cada vez mais atrasado e inviável. E sempre dobrando a aposta em políticas neoliberais que “colocam nos trilhos” a nossa economia e nos prendem como passageiros involuntários nos trens fantasmas destinados ao abismo.

Paulo Martins

A Sombra das Reformas Trabalhistas

O mercado de trabalho brasileiro representa o principal motor das mudanças sociais. Por sua imensa capacidade redistributiva, pela conexão entre Salário Mínimo e as rendas gerais do trabalho e pela melhoria da estrutura ocupacional com a redução de 10 p.p. na taxa de Informalidade, a incorporação de milhões de brasileiro ao mundo do trabalho respondeu por 70% do crescimento da Renda Domiciliar Per Capita e quase meta da redução do Índice de GINI no período recente. Os anos 2003-2014 foram especiais nesse sentido, em que o motor redistributivo do mercado de trabalho recuperou perdas históricas na proporção de salários sobre o PIB, variável chave para compreendermos o conflito distributivo entre capital e trabalho, a chamada distribuição funcional da renda, que saltou de 39,29% do PIB em 2004 para 45,53% em 2014. Esse movimento de uma década é apenas comparável a outro período curto, entre o 2º governo Getúlio (1951) e o Golpe de 1964: todos os outros períodos são de manutenção ou piora da distribuição da renda em favor do trabalho.

O grande mérito dessa capacidade redistributiva é o sistema regulatório do mercado de trabalho brasileiro, que foi capaz de soldar a dinâmica de todos os salários ao comportamento do Salário Mínimo, seja do setor informal ou do setor formal, especialmente no período em que a dinâmica deste mercado heterogêneo é ascendente (mais empregos com redução da informalidade e aumento da participação do salários sobre o PIB). Mesmo sustentando altos graus de informalidade, o que definitivamente é uma deficiência ainda não superada pelo sistema, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), arregimentada em 1943, trouxe como vetor inestimável a capacidade de a sociedade avançar na apropriação de recursos pela classe trabalhadora, mesmo diante da absurda heterogeneidade produtiva e regional do subdesenvolvimento brasileiro. As raras décadas em que esse mecanismo foi utilizado, o resultado é o mesmo: ficou a memória popular de um período de grandes avanços sociais, que, no entanto, desembocaram em violentos desfechos.

No centro dessas rupturas em favor da recuperação da desigualdade funcional da renda, a principal vítima tem sido o mercado de trabalho, objetivamente a CLT. A Reforma Trabalhista do regime militar foi o carro chefe do Golpe de 1964, que eliminou o benefício da estabilidade do emprego, substituindo pelas regras vigentes que todos conhecemos, inclusive com a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Defendida à época como uma necessidade “modernizadora”, a reforma da Ditadura Militar permitiu vinte anos de congelamento real do Salário Mínimo e estabilizou o conflito distributivo em favor do capital. O objetivo da antiga Reforma Trabalhista foi atingido: neutralizou a apropriação relativa da renda nacional pela classe trabalhadora, mesmo diante de altíssimas taxas de crescimento e baixo desemprego. Mesmo assim, a sensação do trabalhador à época era de conforto: a desigualdade crescia, mas todos experimentavam melhorias significativas de suas condições de vida. A Reforma Trabalhista do período militar não resolveu desigualdades profundas no mercado de trabalho brasileiro, reduziu sensivelmente os ganhos da classe trabalhadora em relação aos ganhos do capital com o crescimento econômico; mas, ao fim de tudo, não conseguiu reverter em absoluto a capacidade redistributiva do mercado de trabalho, permanecendo-a em estado latente entre as décadas da redemocratização e do Plano Real; e renascendo com surpreendente força transformadora no período 2003-2014.

Mais uma vez, o curto ciclo de redistribuição de renda encerrou-se com a violência de um golpe de estado, agora mais acanhado, parlamentar, porém com os mesmos objetivos vingativos: recolocar o mundo do trabalho sob as rédeas do capital. Nesse sentido, a neo-Reforma Trabalhista opera suas sinapses para induzir ao trabalhador brasileiro a falsa vocação para a modernidade, quando faz o inverso de retroceder ainda mais a regulação trabalhista para níveis bárbaros.

A grande mentira da nova Reforma Trabalhista é o discurso de superação da chamada “hipossuficiência” do trabalhador, ou seja, do princípio mestre que organiza o Direito do Trabalho onde a relação trabalhista, seja qual ela for, estaria primordialmente marcada pela assimetria entre as partes do contrato, pois o vendedor de trabalho não possui as mesmas condições de negociação que o comprador de trabalho: o primeiro oferece serviços em troca da real e concreta subsistência, enquanto o segundo apenas o faz em troca de lucro. A hipossuficiência define uma série de salvaguardas à relação do trabalho, protegendo a parte essencialmente mais fraca.
Dizem os defensores da Reforma Trabalhista que a hipossuficiência é um conceito ultrapassado à forma como o capitalismo se organiza contemporaneamente. Ao negar a necessidade de respeito à hipossuficiência, desenrola-se todas as propostas contidas na permissão do negociado sobre o legislado em todos os acordos coletivos – ressalvadas algumas garantias elementares como 13º, licença-maternidade mínima e outras – e na reintrodução de formas contratuais flexíveis, como a ampliação do conceito de trabalho parcial para o regime de 30 horas com permissão de 2 horas extras, aproximando-se muito do contrato normal de trabalho de 44 horas; e com a criação da figura do Trabalho Intermitente, a ser pago por hora, sem critério mínimo que permita o planejamento do trabalhador entre o tempo livre e o tempo de trabalho.

O engodo do discurso é que a hipossuficiência está reafirmada negativamente no próprio texto da Reforma, ao restringir as novas “liberdades” somente às negociações coletivas, salvo em se tratar de trabalhador de nível superior com salário maior que duas vezes o teto do RGPS, conforme o texto. Ora, se isso não é prova confessa da hipossuficiência do trabalhador, mostra ainda uma face perversa da afirmação legal das desigualdades no mercado de trabalhos, restringindo liberdades aos trabalhadores e liberando privilégios à restringida Classe Média escolarizada.

Todas as novas formas de contratação introduzidas pelo texto visam ao Setor Formal do mercado de trabalho, e não à redução da informalidade, como querem seus propagandistas. O trabalho Intermitente e a ampliação do conceito de contrato de trabalho parcial são endereçados ao setor de serviços formalizado cujos “custos” de trabalho acompanharam elasticamente o processo de recomposição do Salário Mínimo. A jogada é pagar o Mínimo como uma razão das horas trabalhadas, não mais pelo seu valor cheio, o que vai responder por uma explosão de trabalhadores formais com renda mensal inferior ao Salário Mínimo.

A sombra das Reformas Trabalhistas está pairando sobre o Senado. Cada passo em sua direção é um reencontro do Brasil com sua ditadura profunda, com a permanência da escravidão e com o gozo relinchante da desigualdade escondido no semblante sério dos economistas da modernização.

O desmanche do direito e da justiça do trabalho

Compartilho artigo publicado em dmtemdebate.com.br.

14/07/2016em: Opinião
Valdete Souto Severo
Em curso que estou acompanhando na Itália, tenho escutado, aula após aula, o relato de um processo de desmanche do Direito do Trabalho italiano, que é a culminância de um caminho que vem sendo trilhado já há algum tempo. Enquanto isso, na França fervilham atividades de protesto contra uma reforma que se encaminha no mesmo sentido e que o governo aprovou contra a maioria do parlamento.

Na verdade, a Assembleia Nacional Francesa teve de aceitar a reforma do Código do Trabalho porque o governo, não dispondo de apoio da própria maioria parlamentar que o sustenta (Partido Socialista), invocou o art. 49.3 da Constituição, impondo a sua adoção. Esse dispositivo permite, em casos excepcionais, que o Presidente, após consulta ao Conselho de Ministros, imponha ao parlamento as medidas que entende necessárias à consecução da sua política de governo. O parlamento tem a possibilidade de opor uma moção de censura ao governo, por essa imposição, mas precisa fazê-lo dentro de 48 horas após sua apresentação. Como não obtiveram o número mínimo de votos necessários (58) para isso, não houve moção de censura.

O interessante é que, em notícia veiculada esta semana em jornal francês, lê-se a afirmação de que “o FMI considera insuficiente o pacote de medidas da reforma francesa do direito do trabalho” e ainda considera o mercado laboral francês “pouco adaptável à evolução da economia global”. Ou seja, não é suficiente acabar com a reintegração, o que a Itália já fez, nem precarizar o trabalho ou majorar a jornada. O que seria suficiente então? Talvez, acabar com o Direito do Trabalho.

Voltando à realidade brasileira, temos um pacote extenso de medidas legislativas que promovem um desmanche tão grande quanto aquele proposto na França e já levado a efeito na Itália. Mas aqui estamos resistindo. Desde 2004 o projeto de lei acerca da terceirização tem sido insistentemente levado à discussão no Congresso e, se até agora não foi aprovado, é porque existe uma resistência ativa importante.

Se fizermos um quadro comparativo aproximado das principais alterações havidas (ou pretendidas) aqui, na Itália e na França, veremos que constituem variações de um mesmo tema, por vezes com similitudes que impressionam. O trabalho intermitente, a criação de novas formas de contrato por prazo, a majoração da jornada (inclusive com redução de salário), a terceirização, a desconstrução das normas de proteção contra a despedida e o privilégio das normas coletivas em detrimento da lei (mesmo quando suprimem direitos) são as principais questões enfrentadas nessas três realidades tão diversas.

As normas processuais não escapam. A Itália está ultimando uma reforma muito parecida, em sua coluna vertebral, com o NCPC: incentivo à mediação e à conciliação, previsibilidade nas decisões, necessidade de reduzir o tempo e o número de processos em tramitação e o incentivo à completa informatização dos procedimentos. Tudo na linha das recomendações do Documento 319 do Banco Mundial. O problema é que na Itália, ao contrário do Brasil, as reformas atingem em cheio o processo do trabalho, que nada mais é do que um capítulo do Código de Processo Civil italiano. Aqui, ainda podemos resistir à aplicação das normas do CPC ao processo do trabalho.

Enquanto na Itália o desmanche quase completo do Direito do Trabalho já é realidade e na França está em vias de tornar-se, no Brasil ainda temos a chance de desviar o curso e preservar alguns institutos importantes para a regulação minimamente decente da exploração do trabalho pelo capital.

Esse panorama permite que lancemos duas conclusões parciais, sujeitas à análise mais profunda. A primeira hipótese é de que estamos enfrentando uma crise de instituições em que o próprio modelo de Estado tripartite revela traços de esgotamento. O exemplo do Poder Judiciário no Brasil é eloquente, pois cria suas próprias leis (as súmulas vinculantes) e o faz com autorização dos demais poderes, que não apenas permitiram a criação dessas súmulas com superpoderes, através da EC 45, como ainda, recentemente, concederam praticamente a mesma força a todas as decisões proferidas pelos órgãos de cúpula, através da redação de artigos como o 332 e o 927 do CPC. E, ao mesmo tempo em que a magistratura das altas cortes ganham um poder de tamanha dimensão, os juízes de primeiro e segundo graus veem esvaziadas suas atribuições e decididamente comprometida a sua independência. A perda da independência judicial implica o comprometimento da própria possibilidade de exercício da democracia.

É certo que podemos compreender essa crise como algo positivo, por conferir a possibilidade de superação do sistema que hoje adotamos. E também por permitir que reflitamos sobre a função do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, especialmente em nosso país.

Desse modo, chego a segunda hipótese. Parece-me que a resistência que no Brasil conseguimos exercer, e que certamente explica-se por fatores complexos, é de certo modo potencializada pela existência de uma Justiça do Trabalho.

A Justiça do Trabalho é o ambiente em que as normas fundamentais de proteção ao trabalho encontram espaço para serem exigidas, para serem respeitadas. Como bem observou Mozart Victor Russomano, em obra de 1956, a Justiça do Trabalho pressupõe o reconhecimento de que a racionalidade liberal do processo comum não serve de instrumento à realização de um direito que é ditado pela premissa de que a “fome não respeita prazos processuais”.

Note-se que, enquanto o Brasil tem Justiça do Trabalho, na Itália e na França o que temos são apenas varas especializadas dentro de uma mesma estrutura de poder, o que torna bem mais palatável a aproximação das normas de regulação da relação de trabalho com normas de direito civil, que partem de premissa inversa (de igualdade entre os “contratantes”).

É por isso que o corte orçamentário, que não disfarça o objetivo de sucatear e com isso acabar com a Justiça do Trabalho, tem especial gravidade no quadro de flexibilização do Direito do Trabalho e de retrocesso social que enfrentamos e que não é algo que decorre da nossa crise política ou econômica. É um fenômeno do mundo ocidental capitalista.

Suprimir esse espaço – é disso que se trata e é essa a consequência do corte de orçamento chancelado pelo STF – é retirar dos trabalhadores a possibilidade de exercício de sua cidadania, de exigência do respeito às normas constitucionais. Se isso importa para a manutenção da sociedade do capital, importa ainda mais para quem crê nas possibilidades de superação do sistema. Sem a garantia dos direitos sociais, dentre os quais sem dúvida o Direito do Trabalho figura como ator principal, não há como construir alternativas viáveis.

Essas alternativas dependem de pessoas que tenham tempo para ler, discutir, pensar, sonhar e agir para que as mudanças ocorram. É um equívoco pensar que fazer “terra arrasada” seja um caminho interessante para mudanças radicais. Pessoas sem trabalho, sem comida, sem casa, sem tempo e sem esperanças não constroem novos caminhos. Ao contrário, vivem para satisfazer suas necessidades fisiológicas. Reduzidos à condição de coisa durante o trabalho, tornam-se animais em luta pela sobrevivência no que resta de seu tempo de vida.

Hoje existem dois discursos que convivem nos ambientes de interpretação e aplicação do Direito do Trabalho. De um lado o discurso da fundamentalidade dos direitos sociais trabalhistas, que nada mais é do que o resgate da noção de proteção e o reconhecimento de que essa noção remete à preservação da dignidade de quem trabalha, através de garantias que devem ser sempre maiores para o trabalhador.

De outro, o discurso da flexibilização, que também é de certo modo a reedição de discursos antigos, sempre embalados pela mesma toada, de que os direitos trabalhistas atrapalham a economia, e que se reflete nessas alterações antes referidas. Ambos podem e já foram historicamente invocados como resposta possível à crise que hoje enfrentamos.

O que precisamos perceber é que o desmanche dos direitos trabalhistas e da Justiça do Trabalho não serve à estabilização da sociedade dentro dos padrões do capitalismo, nem aos trabalhadores ou aos empregadores que estão interessados em produzir e alavancar a economia brasileira. Também não serve a quem acredita na possibilidade de superação do sistema. A quem serve então? Não é uma resposta difícil. Mais do que respondê-la, porém, é indispensável que, nesse momento de franco retrocesso em relação a algumas conquistas sequer efetivadas (como a garantia contra a despedida arbitrária no Brasil), compreendamos a importância de preservar a Justiça do Trabalho, que precisa ter condições concretas de funcionamento, para continuar contribuindo para a realização do Direito do Trabalho e, com isso, para a criação de condições de mudança de uma realidade que já há algum tempo revela-se insustentável.

Valdete Souto Severo é juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Europeia de Roma – UER (Itália). Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai. Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUCRS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social.