Dos embargos de declaração: da Defesa à inovação de Moro, por Leonardo Isaac Yarochewsky

Leonardo Isaac Yarochewsky
Advogado Criminalista – Quinta-feira, 20 de julho de 2017
Dos embargos de declaração: da Defesa à inovação de Moro

“Se a história das penas é uma história dos horrores, a história dos julgamentos é uma história de erros”. –Luigi Ferrajoli

A garantia da jurisdição assevera Aury Lopes Júnior, e, “principalmente, da motivação das decisões judiciais não se contenta com ‘qualquer’ decisão ou com a presença de ‘qualquer’ juiz”.[1] De tal forma que os atos decisórios devem revestir-se de clareza, coerência e lógica.

Dispõe o artigo 382 do Código de Processo Penal:

Art.382. Qualquer das partes poderá, no prazo de 2 (dois) dias, pedir ao juiz que declare a sentença, sempre que nela houver obscuridade,ambigüidade, contradição ou omissão.

Assim sendo, a Defesa do ex-presidente Lula considerando que a sentença do juiz Federal da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR que condenou Luiz Inácio Lula da Silva a pena de 09 (nove) anos e 06 (seis) meses de reclusão e multa, contém contradições, omissões e obscuridades, interpôs dentro do prazo legal embargos de declaração.

Primeiramente, a Defesa salientou que “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (“ex-presidente Lula”) não reconhece a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR, tampouco a necessária imparcialidade deste juízo para a condução e julgamento dos feitos a ele relacionados”.

A Defesa, em apertada síntese, insurgiu contra as seguintes omissões, contradições e obscuridades em relação à decisão condenatória:

Omissão no tocante às afirmações feitas pelo juízo em relação ao ex-presidente Lula e sua Defesa;
Omissão e contradição no tocante à negativa de juntada da íntegra dos procedimentos licitatórios, contratos e anexos discutidos na ação (item 192) e o reconhecimento de vícios e ilegalidades em relação à contratação envolvendo a Petrobras e os Consórcios CONPAR e CONEST/RNEST com base em documentos selecionados pelo Ministério Público Federal na apresentação da denúncia, com manifesto cerceamento de defesa e violação à garantia da paridade de armas;
Omissão, contradição e obscuridade quanto à desqualificação das declarações prestadas por testemunhas que corroboram a tese defensiva, estas de ilibada reputação e que ocuparam – ou ainda ocupam – relevantes cargos na Administração Pública enquanto, convenientemente, se deu desproporcional (e indevido) valor probatório às declarações do corréu Léo Pinheiro, a delatores e candidatos a delatores e, ainda, a reportagens jornalísticas;
Contradição ao desqualificar os diversos instrumentos e as instituições de auditoria, de controle interno e externo, que não detectaram atos de corrupção ligados ao ex-presidente Lula, e reconhecer, ato contínuo, existência de corrupção como “regra do jogo” e relacioná-la ao ex-presidente Lula;
Omissão em relação aos fatos efetivamente relacionados à transferência do empreendimento Mar Cantábrico à OAS Empreendimentos Ltda. pela Bancoop e seus desdobramentos;
Omissão quanto ao exercício das faculdades inerentes à propriedade da unidade 164-A do Condomínio Solaris do Município do Guarujá/SP, pela OAS e pela desconsideração dos fartos elementos de prova que mostram que o ex-presidente Lula jamais teve a propriedade ou a posse do imóvel;
Omissão e contradição quanto à origem dos valores utilizados no custeio do empreendimento e das melhorias na unidade 164-A e, ainda, da importância conferida às palavras isoladas de um corréu após a negativa da prova pericial requerida pela Defesa;
Contradição ao defender sua imparcialidade desrespeitando diversas vezes o ex-presidente Lula e sua Defesa;
Omissão quanto aos evidentes equívocos apresentados na reportagem do “Globo”, apontados nas alegações finais do ex-presidente Lula;
Omissões quanto à pena aplicada.
Embora haja certa divergência doutrinária sobre a natureza jurídica dos embargos de declaração, entre os doutrinadores pátrios prevalece o entendimento de que se trata de recurso. A rigor, observa Aury Lopes Júnior, “os embargos de declaração servem apenas para que o órgão julgador declare, esclareça a decisão, não para que ele volte a decidir, retrate-se ou modifique o decidido (…)”.

Sem adentrar no mérito dos embargos de declaração que tem por escopo, justamente, sanar as ambiguidades, obscuridades, contradições ou omissões da sentença.

Verifica-se que o juiz Federal da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR ao invés de se debruçar sobre as omissões, contradições e obscuridades trazidas pela Defesa do ex-presidente Lula, além de novamente atacar a Defesa, serviu-se da oportunidade para em mais uma “pirotecnia intelectual” – expressão utilizada pelo jornalista Reinaldo Azevedo para criticar a sentença condenatória do juiz Moro – criar fatos com intuito meramente midiático.

Em mais uma decisão arbitrária e despropositada, ao comparar a situação do ex-presidente Lula ao ex-deputado Federal Eduardo Cunha – atualmente preso – o juiz de piso foi muito além da imaginação. Quando afirmou que “ele [Eduardo Cunha] também afirmava, como álibi, que não era o titular das contas no exterior que haviam recebido depósitos de vantagem indevida”, Moro conseguiu o que ambicionava: levar à ilação as primeiras páginas dos principais jornais do país.

Ressalta-se, que não há em relação ao ex-presidente Lula qualquer discussão sobre a titularidade de conta no exterior. A vida de Luiz Inácio Lula da Silva e de seus familiares foi devassada e nada, absolutamente nada, foi encontrado que ligue o ex-presidente com contas em países estrangeiros ou a propriedade do famigerado triplex do Guarujá.

Na decisão em que rejeita os embargos, o juiz Federal Sérgio Moro declara que: “Este juízo jamais afirmou na sentença ou em lugar algum que os valores obtidos pela construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-presidente (…)” Disse, ainda, o prolator da sentença que “não havia essa correlação”.

Ora, com essa decisão, o que já havia sido demonstrado e alegado pela laboriosa defesa ficou ainda mais evidenciado: o juiz Federal da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR não é competente para julgamento do referido processo.

Não se pode olvidar que todos, absolutamente todos os fatos imputados ao ex-presidente Lula teriam ocorridos no Estado de São Paulo. Qual razão, então, indaga a Defesa, em suas alegação finais, “está a explicar o motivo de todos esses fatos serem investigados e julgados em Curitiba, no Estado do Paraná? Megalomania jurisdicional? ‘Pantagruelismo’ judicante?”

Certo é que, sendo “a Petrobras sociedade de economia mista, conforme artigo 61 da lei instituidora vigente – Lei nº 9478/97 –, e possuindo personalidade jurídica de direito privado, não compete à Justiça Federal julgar os supostos crimes praticados em seu detrimento”.

É lamentável que julgamentos odiosos, por juízes incompetentes e parciais, com inversão do ônus da prova, com violação do contraditório e da ampla defesa e com desprezo a presunção de inocência, ainda, insistem em prevalecer em detrimento do Estado Democrático de Direito.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Doutor em Ciências Penais (UFMG).

[1] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

Análise da sentença de condenação de Lula: livro está sendo organizado (das redes: 18/07/2017)

A sentença dada pelo juiz Sérgio Moro ao ex-Presidente Lula está sendo analisada por mais de 120 professores de direito, advogados, criminalistas e processualistas, brasileiros e estrangeiros, desde que foi publicada na semana passada.

Até o final desta semana, esses estudiosos vão entregar artigos cujo objetivo é analisar a sentença e suas circunstâncias.

Todos os trabalhos farão parte de um livro que está sendo organizado por Juarez Tavares, Carol Proner, João Ricardo Dornelles, Gisele Ribocon e por mim.

Trabalhos espetaculares, pois tive a oportunidade de ler alguns que já foram entregues.

Nenhum centímetro dessa sentença absurda ficará de fora da análise. Aguardem a primeira quinzena de agosto.

Por Gisele Cittadino

Entre fatos e convicções: análise da sentença do juiz Sérgio Moro que condena o ex-presidente Lula, por Alexandre Costa

 

Compartilho análise da sentença do juiz Moro que condena o ex-presidente Lula, escrita por Alexandre Costa, doutor em Direito e professor adjunto da Faculdade de Direito da UNB. Publicado no Facebook, este artigo recebeu comentários de boa qualidade, contra e a favor.

O autor faz uma análise quase que exclusivamente técnica, fixando-se na sentença do juiz Moro, deixando de analisar todas as evidências de seletividade e manipulação que ficaram claras desde o início do processo. Ele parece não acreditar na má-fé do  juiz Moro.

Nós, que acompanhamos todas as notícias sobre o assunto nos últimos 3 anos,  tendo em vista os fatos, as ações e omissões deste que deveria agir como magistrado e atuou como linha auxiliar da acusação, não conseguimos acreditar em boa-fé, nem dos membros da força-tarefa, nem do juiz Moro, mesmo com muita boa vontade e tentativa de ter uma visão equilibrada sobre esse assunto.

De qualquer forma, o autor da análise tenta fazer entregar uma análise equilibrada e isenta de pré-julgamentos. Vale a pena ler com atenção

Paulo Martins

 

Entre fatos e convicções: análise da sentença do juiz Sérgio Moro que condena o ex-presidente Lula

Por Alexandre Araújo Costa (*)

Li vários comentários que criticavam a decisão de Sérgio Moro que condenou o ex-presidente Lula por causa de seu resultado e de suas consequências. Porém, li poucas análises que avaliaram a consistência dos argumentos, inclusive porque as mais de 200 páginas do documento dificultam a elaboração de análises mais completas, que exigem um bom tempo de leitura e reflexão.

Considerando que minhas atividades de docência fatalmente me exigirão o desenvolvimento de uma opinião mais elaborada sobre esse tema, decidi ler a sentença e escrever um pouco sobre ela.

Assim, em vez de começar dizendo que eu não li a sentença, mas discordo dela mesmo assim, começarei de outro modo: eu li a sentença e a condenação me pareceu absurda.

Cabe ressaltar que achei bem feita a descrição dos fatos, a explanação dos argumentos e a construção das narrativas. Existe uma clareza na exposição que tem muito mérito, especialmente porque se torna evidente que Sérgio Moro quis tornar a sentença compreensível para cidadãos comuns que se dessem ao trabalho de ler a decisão.

Também cabe ressaltar que a decisão esclarece muito bem que os argumentos utilizados pela defesa foram muito frágeis, provavelmente porque a narrativa verdadeira provavelmente seria muito indigesta para as pretensões políticas do ex-presidente.

Apesar disso, creio que as conclusões que Sérgio Moro infere não estão devidamente baseadas nos fatos que ele narra e nas provas que ele explicita.

As provas indicam que Lula obteve benefícios da OAS que ele não quer admitir isso? Sim.

A OAS fez uma reforma em benefício dele? Fez.

Esse tipo de recebimento causa danos à sua imagem? Causa.

Ele mentiu negando tudo isso? Sim.

É lícito que réus mintam em seu próprio benefício? Sim, mas essa mentira pode ter impactos políticos relevantes.

Mas a pergunta central é: há comprovação de recebimento de benefício em função do cargo de Presidente da República? E penso que aqui a resposta é negativa.

Há comprovação de fatos que podem ter sido corrupção. Verdade. Há comprovação de que Lula recebeu da OAS uma série de benefícios em 2014.

Existem indícios que esses benefícios seriam pagos com verba decorrente da corrupção da Petrobrás? Nesse sentido, existe um indício: a afirmação de Léo Pinheiro de que ele acertou com Vaccari Neto em maio de 2014 que a OAS doaria o imóvel para Lula e debitaria isso da conta de corrupção (item 529).

Se as palavras de Léo Pinheiro forem verdadeiras, não haveria indícios de que Lula recebeu benefícios da OAS em função do seu cargo, mas que a OAS serviu como intermediária para pagamentos do PT a Lula, redistribuindo para ele parte do que o PT recebeu de forma ilícita da OAS. Não há, porém, provas dessa operação, para além das palavras de Léo Pinheiro, que são insuficientes para justificar uma condenação por corrupção.

Além disso, o que Léo Pinheiro afirma expressamente é que, em maio de 2014, ele acertou com Vaccari que certos custos que a OAS teve deveriam ser cobertos com o dinheiro que seria pago pela OAS para o PT em função de contratos da Petrobras. Isso quer dizer que primeiro a OAS pagou as obras e somente depois ajustou com Vaccari a compensação, o que quer dizer que talvez não fosse esse o ajuste final do acordo e o custo das reformas ficasse por conta da OAS, não da conta de corrupção do PT.

Tudo isso pode indicar que Lula foi beneficiado por dinheiro originado de corrupção, mas isso não indica que ele praticou atos de corrupção.

Não há mais indício de corrupção nesses fatos do que há no pagamento pela OAS do depósito do acervo presidencial. E, nesse caso, Moro absolveu Lula, por considerar que não havia indícios de que o pagamento foi feito com dinheiro ligado à corrupção.

Percebe-se, portanto, que o critério de condenação utilizado por Moro não é aquele definido pela lei (o recebimento de benefício em função do cargo), mas um critério bastante diverso (o recebimento de benefícios oriundos de dinheiro ligado à corrupção).

Por mais que seja imoral o recebimento desse tipo de benefício, ele não configura crime de corrupção, como reconheceu o próprio juiz Sérgio Moro ao analisar o pagamento da OAS pelo depósito do acervo.

E em 2009, quando Lula era presidente, existe algum indício de recebimento ilícito de benefícios? A única coisa que existe é uma afirmação de Léo Pinheiro no sentido de que João Vaccari Neto e Paulo Okamoto lhe disseram que em 2009 “O apartamento triplex, essa unidade é uma unidade específica, você não faça nenhuma comercialização sobre ela, pertence à família do presidente, a unidade tipo você pode vender porque eles não vão ficar com essa unidade, a unidade seria o triplex” (item 525). Esse “pertence”, no meio da frase, é a palavra central do processo, pois foi com base nisso que Sérgio Moro concluiu que a propriedade “de fato” do apartamento era de Lula. Todavia, esse pertence parece ter sido usado de forma demasiadamente ambígua, pois a narrativa toda não indica claramente que deveria haver uma transferência gratuita do apartamento ao ex-presidente. Tanto que, na continuidade do depoimento, Léo Pinheiro afirmou que conversou com Vaccari e Okamoto depois da reportagem da Globo sobre o triplex e que lhe foi dito: “ […]a orientação que foi me passada naquela época foi de que ‘Toque o assunto do mesmo jeito que você vinha conduzindo, o apartamento não pode ser comercializado, o apartamento continua em nome da OAS e depois a gente vê como é que nós vamos fazer para fazer a transferência ou o que for’, e assim foi feito. Isso, voltamos a tratar do assunto em 2013, se não me falha a memória.” (item 525) Essa conversa torna evidente que não havia clareza alguma no que deveria ser feito com o imóvel, exceto que ele não deveria ser comercializado. Todavia, não havia clareza sobre pagamentos, sobre compensações, sobre propriedade, sobre quem pagaria. O que Léo Pinheiro diz é que lhe foi pedido para não vender o apartamento e ele o fez, mas não existe em nenhum dos diálogos contidos na sentença uma indicação clara de que ele deveria ter transferido o apartamento gratuitamente para Lula.

A OAS beneficiou Lula ao manter esse apartamento fora do comércio? Sim.

Fez isso intencionalmente? Fez, e há indícios fortes nesse sentido, já que o comportamento com relação a esse imóvel foi muito particular durante todo o período. Todavia, não há nesses fatos nenhum indício claro de que a OAS estaria repassando a Lula em 2009 qualquer benefício em função do cargo que ele exercia, exceto a reserva do apartamento, que é um benefício deveras pequeno para justificar uma condenação penal por corrupção.

E os benefícios posteriores, especialmente os de 2014, não são em momento algum ligados diretamente ao exercício do cargo de presidente. Inobstante, Moro evidentemente faz a leitura de que os benefícios da OAS a Lula no caso do triplex ocorreram em função de seu cargo de presidente. Todavia, o próprio Moro foi levado a considerar que os benefícios da OAS ao presidente com relação à manutenção de seu acervo (que têm vulto maior do que as reformas do triplex) não podem ser consideradas corrupção porque a OAS tinha interesse em manter a proximidade com Lula por ser ele um ex-presidente. Benefício pago a ex-presidente, em função de sua influência política, pode ser de uma imoralidade atroz. Pode ser uma situação política desgastante para os envolvidos. Mas não é crime de corrupção. E foi somente esse tipo de benefício que está devidamente comprovado nos autos.

Os benefícios da OAS para Lula podem ser o pagamento de ajustes feitos durante o exercício do cargo? Podem. Mas, de fato, os benefícios efetivamente parecem muito pequenos para justificar essa interpretação, pois eles são muito compatíveis com presentes da OAS para conquistar a boa vontade do ex-presidente.

Ademais, se a situação houvesse se consolidado, com uma utilização do apartamento de forma dissimulada, talvez se consumasse um crime de lavagem de dinheiro, mas não de corrupção. Ocorre, todavia, que Lula está correto ao afirmar que a transmissão do bem (de fato ou de direito), nunca se operou. Não parece verdade que ele era apenas um potencial comprador, mas parece razoável que ele tenha desistido do negócio quando percebeu o tamanho do problema que poderia vir a ter com ele. Assim, a dissimulação da propriedade não chegaria a se consumar. De toda forma, em vez de caracterizar o ato de Lula como uma recepção de benefícios pagos com dinheiro de corrupção, Sérgio Moro procura estabelecer uma narrativa muito diferente: a de que Lula recebeu benefícios em função de ter nomeado certos diretores para a Petrobras. A tentativa de estabelecer essa narrativa gerou vários problemas para a argumentação da sentença. Seria razoável indicar a existência de corrupção (por receber valores indevidos, independentemente da fonte) se a OAS tivesse feito as reformas em 2009 e Lula tivesse ocupado o apartamento. Mas isso não ocorreu e Moro faz toda uma ginástica para afirmar que se tratou de “um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente” (item 878). Ele precisava retroagir o fato para outubro de 2009 para caracterizar que Lula recebeu o benefício em razão do cargo ocupado. Como a retroação para 2009 ficou frágil, a argumentação foi complementada no item 881: “881. Não importa que o acerto de corrupção tenha se ultimado somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da República.” Aqui novamente há um grande salto entre os fatos e a interpretação. Moro considera claro que se trata de recebimento decorrente da corrupção na Petrobras, mas não há nada nesse sentido. Ele retoma a ideia de que o dinheiro seria debitado da conta da corrupção, mas o único indício nesse sentido é uma afirmação tangencial de Léo Pinheiro. De todas as explicações possíveis, ele escolhe aquela que convém a suas convicções. São convicções compatíveis com os fatos, há de se reconhecer. Mas há muitas interpretações possíveis do fato que permitem outras narrativas, mais sólidas inclusive do que a de Moro. É muito razoável descrever todos os fatos como favores prestados pela OAS a uma pessoa que, a despeito de ter saído do cargo, era provavelmente o político mais influente da República.

Essa escolha interpretativa fica ainda mais frágil quando se verifica que Lula foi absolvido no caso do depósito do acervo presidencial porque Leo Pinheiro “negou, em Juízo, que os pagamentos pelo Grupo OAS da armazenagem do acervo presidencial estivessem envolvidos em algum acerto de corrupção” (item 934). E continua afirmando que “as declarações do acusado, de que não vislumbrou ilicitude ou que não houve débito da conta geral de propinas, afastam o crime de corrupção” (item 935). Torna-se evidente, portanto, que Lula foi condenado no caso do triplex porque Léo Pinheiro afirmou ter ajustado com Vaccari Neto que benefícios da OAS seriam pagos a partir da “conta geral de propinas” (item 529) e que foi absolvido na mesma sentença porque o mesmo Léo Pinheiro disse que a intenção da OAS nesse caso não tinha a ver com o cargo (item 935).

Parece-me absurdo esse modo de lidar com as provas e construir narrativas descoladas dos fatos. Não creio o juiz atuou com má-fé, mas parece-me clara a operação de um viés de confirmação a partir do qual ele enxergou “provas” em todos os indícios que eram simplesmente “compatíveis” com sua narrativa pessoal sobre o evento.

Ao desconsiderar as narrativas alternativas, que ele levou em conta na avaliação do caso do depósito, as conclusões da sentença se tornaram arbitrárias. Assim, resta claro que a condenação por corrupção se deveu menos aos fatos do que às convicções de Moro. E a condenação por lavagem de dinheiro é ainda mais frágil. Moro afirma que a “atribuição a ele de um imóvel, sem o pagamento do preço correspondente e com fraudes documentais nos documentos de aquisição, configuram condutas de ocultação e dissimulação aptas a caracterizar crimes de lavagem de dinheiro” (item 893).

Por considerar que houve corrupção (e, portanto, infração penal), Moro considera que se tratou de ocultação patrimonial a atribuição do imóvel (que não ocorreu de forma definitiva) e as fraudes documentais (com documentos pré-datados), voltada a dissimular os bens decorrentes da infração penal. Todavia, uma vez que se entenda que não há provas de corrupção, essa acusação se esvai. Além disso, a justificativa de que é possível cumular os crimes neste caso é muito frágil. Uma coisa é receber dinheiro como corrupção e “lavá-lo” por operações autônomas de dissimulação e ocultação. Coisa diversa é quando o próprio benefício recebido é justamente a disponibilidade do bem. O diagnóstico de Moro é de que “através de condutas de dissimulação e ocultação, a real titularidade do imóvel foi mantida oculta até pelo menos o final de 2014 ou mais propriamente até a presente data” (item 899).

Assim, a narrativa é de que Lula recebeu o bem em outubro de 2009 e que o ocultou até 2014. Porém, essa narrativa não é plenamente adequada às provas, pois não há indicação clara de que ele recebeu o imóvel de forma definitiva e que todos os atos
posteriores foram uma dissimulação do recebimento. Creio que é plenamente razoável a leitura de que o imóvel estava sendo reservado para ele, mas que não havia sido transferido para ele. Talvez seja verdade o que diz Léo Pinheiro, que ele acertou com Vaccari em 2014 que a OAS doaria o imóvel para Lula e debitaria isso da conta de corrupção. Mesmo que isso tenha ocorrido, não seria suficiente para caracterizar crime de corrupção. Ademais, talvez não seja verdadeira essa afirmação, que não é corroborada por outros elementos probatórios. Não são apresentados indícios de que o dinheiro foi debitado da conta de corrupção. Só há indícios de que o bem foi reservado para Lula em 2009 e que sofreu uma série de benefícios a partir de 2010. E há a afirmativa de Léo Pinheiro de que somente em 2014 ficou acertado que o pagamento desses benefícios seria feito por meio de uma compensação com a conta de corrupção do PT. Parece-me evidente que a reserva do apartamento e as obras de melhoria não caracterizam uma “propriedade de fato” e que, mesmo que tenha havido uma disponibilização de bens da OAS para Lula nesse período, não há indicação concreta de que isso ocorreu em função do exercício do cargo de Presidente. Tal como no caso dos depósitos, todos esses favores e presentes poderiam ser caracterizados como estratégias para agradar um ex-presidente que tinha influência muito grande no governo e no PT.

Por tudo isso, não vejo como entender que a base fática apresentada por Sérgio Moro seja uma justificativa razoável para suas conclusões jurídicas e, portanto, que a condenação de Lula não foi baseada nas provas, mas em certas convicções pessoais de Moro que não estão assentadas diretamente nos fatos e que não se adequam às leis penais brasileiras.

Brasília, 14 de julho de 2017

(*) Alexandre Araújo Costa
Cargo: Professor Adjunto
Área: Teoria Geral, Sociologia e Filosofia do Direito
Regime: Dedicação Exclusiva
Atuação: Graduação, Pós-Graduação
E-Mail: alexandre@arcos.org.br
Site: http://www.arcos.org.br/
Currículo: http://lattes.cnpq.br/1540773562032795
Perfil
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Credenciado nos programas de pós-graduação em Ciência Política e em Direito. Doutor em Direito (2008), Mestre em Direito e Estado (1999) e Bacharel em Direito (1996) pela UnB. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Política e Direito.
Formação
Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB, 2008)
Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB, 1999).
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB, 1997)
Temas de Pesquisa
Política e Direito
Ética e Direito
Hermenêutica filosófia e jurídica
Filosofia Política e Jurídica
Linhas de Pesquisa na Pós-Graduação
Linha de Pesquisa Constituição e Democracia
Grupos de Pesquisa
Grupo de Pesquisa em Política e Direito
Publicações Selecionadas
COSTA, Alexandre Araújo ; ARAUJO, E. B. . Legitimidade Política e Compatibilidade Constitucional: A Recepção pelos Juristas das Propostas de Assembleia Constituinte Exclusiva para Alterar o Sistema Político.A&C. Revista de Direito Administrativo & Constitucional (Impresso), v. 60, p. 207-241, 2015.
CARVALHO, Alexandre Douglas Z. de ; Costa, Alexandre Araújo . Derechos > Fundamentales y la Evolución del Control de Constitucionalidad Concentrado > en Brasil. Sortuz: Oñati Journal of Emergent Socio-Legal Studies, v. 7, p. 112-138, 2015.
COSTA, Alexandre A. Teologia Moral para Ouriços: a teoria da justiça de Ronald Dworkin. Revista Direito.UnB, v. 1, p. 199-219, 2014.
COSTA, A. A. . Judiciário e Interpretação: Entre Política e Direito. Pensar (UNIFOR), v. 18.1, p. 09-46, 2013.
COSTA, Alexandre A. . O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria & Sociedade (UFMG), v. 19, p. 198-227, 2011.
COSTA, Alexandre A. ; CARVALHO, Alexandre Douglas Z. de . Resenha crítica do livro ‘A ideia de Justiça’ de Amartya Sen. Revista Brasileira de Ciência Política (Impresso), v. 8, p. 305-316, 2012.
COSTA, A. A. O Controle de Razoabilidade no Direito Comparado. Brasília : Thesaurus, 2008.
COSTA. A;. A. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do STF. Brasília : Thesaurus, 2008.
COSTA. A. A. Direito, Dogmática e Linguagem. Notícia do Direito Brasileiro, v.12, p.67 – 83, 2007.
COSTA, A. A. Introdução ao direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicas. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 2001.
COSTA. A. A. Outras Publicações: vide http://www.arcos.org.br/publicacoes/
Universidade de Brasília.
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Asa Norte
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A urgência da esperança não admite mais ilusões, por Saúl Leblon

Compartilho editorial de Saúl Leblon, do Carta Maior.

Como sempre uma análise lúcida, ampla, da enrascada em que nos metemos aqui no Brasil. Sugiro leitura atenta. Sem um bom diagnóstico ficaremos enredados no caos político, econômico e social atual. Tudo começa por um diagnóstico correto das nossas doenças, que não são exclusividade nossa e vem contaminando toda a humanidade. O texto do Saúl contribui para tão necessário diagnóstico.

O autor entende que há  “alternativa ao caos” e apresenta uma proposta. É bem-vinda. Serve para começo de discussão entre alternativas que devem ser postas pela sociedade, em substituição à ordem neoliberal que está sendo implantada, embora sem canhão, à força, mediante golpes e conluios.

Paulo Martins – dialogosessenciais.com

A urgência da esperança não admite mais ilusões, por Saúl Leblon – do  site cartamaior.com.br

Em menos de 24 horas, entre a noite de terça-feira (11/07) e a tarde desta quarta-feira, 12/07, o golpe jogou a cartada com a qual pretende virar uma página dupla da história brasileira.

Encerrar a era Vargas e o ciclo Lula.

Estripou os direitos trabalhistas conquistados e defendidos ao longo de 74 anos, desde a criação da CLT, por Getúlio, em 1943; ato contínuo, condenou ao cárcere, por uma década, o maior líder popular brasileiro, Lula, de 71 anos, presidente duas vezes, favorito inconteste nas sondagens eleitorais para 2018.

Quis o destino que o conjunto acontecesse na mesma data em que, há 55 anos, Jango criava o 13º salário para os trabalhadores brasileiros, recebido com manchetes aterrorizantes pela mídia que dois anos depois festejaria o golpe de 1964.

A apoteose das últimas horas de certa forma esgota o repertório da ‘progressão’ golpista em 2017.

O da resistência democrática, ao contrário, pode enrijecer.

Longe de ser o fim, a tentativa conservadora de inocular prostração na sociedade, poderá inaugurar uma escalada de mobilizações e impor maior clareza programática no projeto de futuro capaz de unir a frente popular e arrebatar o país.

A prefiguração do futuro preconizado pelo golpismo é medonha.

Com certa soberba histórica nem se disfarça a pindaíba social reservada à nação brasileira.

A sofreguidão reflete de certa forma o escaldado retrospecto das oito vezes em que essa ofensiva foi interrompida, em meio século de luta de classes.

Em 1954, pelo levante popular após o suicídio de Vargas; em 1961, na campanha da legalidade pela posse de Jango; em 1984, na luta pelas Diretas Já! — derrotada, mas que levou à conquista superior da Carta Cidadã, de 1988 e, finalmente, nas quatro vitórias presidenciais sucessivas de Lula e Dilma em 2002, 2006, 2010 e 2014.

Era demais o risco de um novo revés em 2018.

Derrubar Dilma para inviabilizar Lula fazia parte do ciclo político da tolerância conservadora em nossa história. Erros na condução da crise econômica serviram apenas de lubrificante: a engrenagem já fora acionada quando as urnas de 26 de outubro de 2014 refugaram, pela quarta vez sucessiva, o projeto antissocial e antinacional ora imposto à nação.

A ofensiva revanchista culminada nas últimas horas calcifica as representações dos trabalhadores (sindicais e partidárias), sangra sua estrutura financeira, ataca sua credibilidade e busca encarcerar sua principal voz.

Se o nome disso não é golpe será preciso inventar um outro para defini-lo.

A existência altiva de uma organização de trabalhadores constitui um freio inestimável às arremetidas da barbárie capitalista em qualquer época, em qualquer sociedade.

Dispensar à destruição do PT e de Lula uma centralidade equivalente a atribuída pelos mercados à revogação do direitos sociais e trabalhistas explicita a funcionalidade de Moro.

O seletivo afinco do juiz da praça de Curitiba em atender à demanda política número um do conservadorismo — calar a única voz ouvida por aqueles aos quais a Globo gostaria de falar sozinha– é um requisito para viabilizar a restauração do trabalho avulso diante da coesão patronal.

Descortina-se –mesmo aos olhos antes distraídos—a natureza do futuro que se reserva à sociedade brasileira: uma nação feita de gente barata, um país entregue ao abismo da desigualdade abissal, sem laços compartilhados no trabalho, na velhice e no ganha pão.

Esse Brasil mexicanizado, de vidas ordinárias, entregues ao arbítrio do mercado e das gangues, mimetiza, num país de carências bíblicas, as incertezas e vicissitudes do voo turbulento do capitalismo global, em um estágio de mutação desordenada.

O discernimento do futuro inscrito na apoteose golpista pode gerar no eleitor de 2018 o efeito que se quer prevenir com a eliminação de Lula da urna. É ostensivo o anseio conservador pela condenação ‘célere’ do candidato que lidera as sondagens, como pede o editorial da Folha no dia seguinte à sentença de Moro.

A tentativa da destruição gêmea de Lula e dos direitos sociais e trabalhistas desnuda perigosamente a virulência dos marcos do projeto conservador para o país.

A literalidade dos impactos na vida cotidiana, sobretudo dos mais humildes que perdem a proteção da lei e a voz que poderia representa-los pode ser a tocha de uma espiral de conflitos de consequências imprevisíveis.

O golpe de 1964 levou quase cincos anos para encontrar um chão ‘institucional’ baseado no terror, na tortura e na censura.

A manipulação midiática e a farsa de um parlamento contra o povo não serão suficientes para sustentar a reordenação conservadora atual, se for escancarada a sua âncora de des-emancipação social.

A verdade é que o esgotamento da ordem neoliberal no mundo requisita um poder de coordenação econômica e de planejamento democrático inverso ao que se desenha aqui.

Reduzir o país a uma dívida pública paga em dia, a juros suculentos, às custas da agonia falimentar dos serviços públicos, dos direitos, da renda e do emprego só é viável no imaginário de quem já se dissociou até fisicamente do destino da sociedade e da sorte do seu desenvolvimento.

Quem?

A minoria rentista que da escada do avião acena recomendações de uma dantesca ‘purga’ na Constituição de 1988 para equilibrar ‘o fiscal’, às favas o povo, esse estorvo da boa finança (leia nesta pág. http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FBye-bye-Brasil%2F38336).

O jogo, portanto, atingiu o ápice da violência de classe.

Não é temerário prever um aguçamento do conflito social no período que se abre.

Com um agravante.

Inabilitadas pela ruptura da legalidade, as instituições mediadoras, a exemplo de uma parte ostensiva do judiciário –sem falar da mídia e da escória parlamentar de despachantes do mercado– perderam sua credibilidade ao se acumpliciarem na demolição do pacto da sociedade sem consulta-la.

Após quatro derrotas presidenciais sucessivas, sendo a última, de outubro de 2014, com seu quadro mais palatável, as elites decidiram queimar as caravelas e os escrúpulos que supostamente ainda carregariam.

Fizeram-no, como se constata na escalada do cerco ao PT e à Carta de 88 convictas de que só escavando um fosso profundo na ordem constitucional teriam o poder necessário para a demolição requerida.

Aquela capaz de transformar a construção inconclusa de um Brasil para todos, na recondução da ordem e do progresso para os de sempre.

Não deixam dúvida as encomendas e as entregas: o golpe veio apunhalar a democracia para atingir o interesse popular.

Vem aí um vergalhão de privatizações e abastardamento de serviços essenciais.

Reafirma-se a rigidez recorrente da velha fronteira histórica onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado e começam as bases da construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta.

‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo pode conceder sem mergulhar a economia em uma crise fiscal desestabilizadora’, martelam diuturnamente os colunistas do jogral midiático que não cogitam jamais de uma reforma que estenda, por exemplo, a coleta de tributos aos R$ 334 bilhões em lucros e dividendos –isentos de IR—apropriados em 2016 por pessoas físicas das faixas de renda mais altas da sociedade.

Ao contrário.

O que se enxergou do esgotamento de um ciclo de expansão, agravado pela crise econômica global, foi a oportunidade para um acerto de contas capaz de fazer o serviço completo.

Cortar o ‘mal’ pela raiz.

Explica-se assim a sanha do assalto às fontes originárias da universalização de direitos na sociedade, desde a CLT de 1943, à Constituição Cidadã de 1988 e o partido que deles se tornou o principal promotor.

Pode dar errado.

Ter um Estado que trata encargos sociais como estorvo do mercado, por mais que gere uma euforia inicial nos donos do dinheiro, não resolverá as grandes pendências nacionais emolduradas por um pano de fundo desafiador.

O capitalismo revira os nós de suas tripas em uma transição épica de padrão tecnológico.

O salto da industrialização 4.0 baseada na robótica, na integração e digitalização dos processos vai ralear e atomizar o mundo do trabalho e desse modo toda a sociedade.

A indústria continuará vital como núcleo irradiador de produtividade e tecnologia na sociedade. Mas será cada vez menos o núcleo ordenador do emprego e dos direitos.

A dispersão laboral que a esperteza conservadora quer acelerar aqui com a implosão da CLT e o barateamento da previdência aponta para uma fragmentação social de consequências imponderáveis.

Só a ação planejadora da democracia e do Estado pode impedir que isso transborde em anomia conflitiva, violenta e desesperada.

Eis o paradoxo da política de estabilização golpista.

A coesão social hoje passa a depender cada vez mais –e não menos– de políticas públicas amplas, massivas, inclusivas que a sabedoria fiscal dos ‘reformistas’ aqui trata de desossar.

O modelo atual de previdência social de fato se esfumou num horizonte de emprego instável e escassos vínculos trabalhistas.

Mas a miopia ideológica do conservadorismo extrai daí a oportunidade de apagar o incêndio social com o maçarico da exclusão .

A alternativa ao caos existe.

A seguridade social do futuro terá que ser financiada com um imposto geral, progressivo, cobrado de toda a sociedade. O contrário é o apartheid da velhice –e não apenas dos pobres, mas também da classe média– em privação, abandono, desespero familiar e depósitos de barbárie.

O mesmo vale para os demais bens e serviços.

No dizer do professor Luiz Gonzaga Belluzzo (que recomenda o filme de Roberto Andó, ‘As confissões’, de onde deriva a enunciação de um personagem para adaptá-la à hora do Brasil) –‘Se queremos reaver a esperança, não podemos mais oferecer ilusões’.

A esperança capaz de levantar a rua e redimir os laços sociais em nosso tempo não nascerá da nostalgia de um padrão de desenvolvimento irrecuperável.

Nem do seu ‘ajuste’ pelas mãos dos alfaiates das crises humanitárias.

A reforma estabilizadora e crível virá de políticas públicas que inovem diante das incertezas sociais e laborais, e respondam com justiça tributária ao desamparo que estilhaça e subordina a sociedade à ganância financeira.

Não por acaso, o que mais se evidencia nessa ciclópica transição emendada à crise de 2008, é a falta que faz agora tudo o que foi subtraído do Estado e da democracia no ciclo neoliberal anterior à explosão das subprimes – regulações, direitos, soberania, garantias trabalhistas, tributação da riqueza –que cedeu lugar ao endividamento paralisante do Estado, salários dignos, indução pública do investimento, amparo social enfim, laços de pertencimento e solidariedade fiscal e humana.

A virulência anacrônica do golpe brasileiro quer nivelar o país nesses quesitos, implodindo estruturas que o ciclo de governos progressistas preservou e ampliou.

Sua vitória pode estar fadada a ornamentar o cemitério da estagnação e o inferno da desigualdade.

A volta da fome ao país, denunciada agora à ONU, é um sinal da combustão social que arde com rapidez assombrosa. O quadro falimentar do estado no Rio de Janeiro velado por uma procissão de corpos que cresce à razão de um assassinato a cada duas horas é outro grito de alarme.

A conclusão explode aos olhos de quem não foi contaminado pela cegueira tóxica do jornalismo isento.

Falta investimento público, falta demanda, faltam oportunidades, inclusão e sentido de esperança no capitalismo do século XXI.

Esse corner humano e macroeconômico que o golpe mimetiza para barrar reformas e retificações de privilégios –requeridas pelo esgotamento do ciclo anterior de expansão– é justamente o desafio ao qual o projeto progressista terá que responder com o desassombro histórico.

A resposta conservadora é a ‘noite de São Bartolomeu’ em marcha que instaura a paz salazarista dos cemitérios.

Graças ao monopólio midiático, interditou-se o debate das alternativas à delicada transição de ciclo econômico (local e global) para a qual não existe saída fora da repactuação da sociedade em torno de políticas que fortaleçam, não esmaeçam, as dimensões compartilhadas do presente, do futuro e do passado da cidadania.

A manipulação midiática logrou assim avalizar ‘soluções’ que na verdade radicalizam a contraposição de interesses unilaterais, privilegiam os mercados e não os cidadãos, impõem uma regressão civilizacional inconciliável com a manutenção do Estado democrático e, por fim, corroem aquilo que tão arduamente se reconquistou, a autoestima brasileira.

Sobra o quê?

Uma ruptura mais profunda do que a mera destituição de um Presidente da República.

De diferentes ângulos da economia e da sociedade já emergem avisos de saturação estrutural.

Em 1964, a transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar abriu uma válvula de mobilidade momentânea –às custas de uma urbanização de periferias conflagradas– para as contradições violentas de uma sociedade que já não cabia no seu modelo anterior.

Mesmo com essa válvula de escape, a repressão do regime foi brutal. Hoje não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer a panela de pressão da nova encruzilhada do desenvolvimento turbinada pela finança e a tecnologia poupadora de empregos e direitos.

As legiões que não couberem aí serão escorraçadas, como estão sendo, pela explosiva segregação que se anuncia, atiradas a uma periferia constitucional e, assim, coagidas a reagir de forma explosiva ou perecer.

Erra esfericamente quem imagina que esse estirão pode ser mitigado com a maciça entrega do que sobrou do patrimônio público depois do governo do PSDB.

Privatizações não agregam força produtiva nem vagas; apenas concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o já enfraquecido poder indutor do investimento público, reduzem o fôlego do Estado com remessas descasadas de receitas exportadoras.

Radicalizam , enfim, o que o país mais precisa superar.

A reedição de um novo ‘1964’ exigiria, desse modo, uma octanagem fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do poder de coerção necessário à devolução da pasta de dente social a um tubo que na verdade nem existe mais.

Não há uma terceira escolha.

É voltar às urnas na esteira de forte mobilização da sociedade; ou entregar a nação a uma ‘longa noite de exceção’ de desdobramentos incontroláveis.

Essa é a disjuntiva.

Moro se empanturrou da ração midiática na qual foi cevado nos últimos anos.

A sentença com a qual pretende ‘limpar esse terreno’, interditando o nome de quem pode barrar a imissão de posse violenta, não vai mudar, nem resolver a encruzilhada estrutural da qual Curitiba é um simples adereço de mão do conservadorismo.

A opção à deriva imponderável cabe à resistência democrática progressista –se cumprir certos requisitos.

Ela terá que ser construída nas ruas, a partir de um desassombrado aggiornamento de sua visão de futuro.

A esperança capaz de levantar as ruas –repita-se—não admite mais ilusões.

A repactuação do desenvolvimento brasileiro só deixará de ser uma miragem flácida se calcada em amplas políticas de infraestrutura e inclusão social –inclusive dos filhos de uma parte expressiva da classe média que terão que se inserir em sistemas públicos de educação, saúde e lazer.

O novo é o que é público e comum. Assim como as escalas se ampliam na economia das grandes corporações, elas terão que ser magnificadas também na esfera dos acessos e direitos consagrando o bem comum.

Moro não calará Lula, assim como não silenciaram Mandela, se ele se tornar desde já o porta-voz desse arrebatador projeto de futuro compartilhado.

Aquele que repactua a nação consigo mesmo e com o século XXI através de políticas públicas e tributárias que viabilizem o que a elite brasileira – e sua escória parlamentar—se empenha em sonegar: o direito de a maioria sair da soleira do lado de fora do país e da civilização para desfrutar da principal riqueza do nosso tempo: direitos, oportunidades, serviços e espaços públicos dignos para todos.

Livre apreciação da prova é melhor do que dar veneno ao pintinho?, por Lenio Luiz Streck

Compartilho artigo de Lenio Luiz Stock, publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Vale a pena ler até a última linha do texto. Sugiro repetir a leitura para bom entendimento do texto. Como eu já disse, vale a pena.

Paulo Martins

SENSO INCOMUM
Livre apreciação da prova é melhor do que dar veneno ao pintinho?

13 de julho de 2017, 8h00
Por Lenio Luiz Streck

Depois de ver que aqui em Pindorama estão querendo, a fórceps, enfiar o bayesianismo e o explanacionismo para “dentro” da teoria da prova (ver aqui), algumas questões devem ser postas aos leitores. Penso que teorias como bayesionismo e explanacionismo podem ser úteis em determinados aspectos da filosofia e áreas ligadas à economia e gestão. Trata-se da discussão de probabilidades, “calculadas” a partir da lógica, na busca de caminhos para uma (melhor) tomada de decisão. Bayesianismo, explanacionsimo e outras teorias quetais podem ser úteis para análises econômicas envolvendo risco nas decisões. E há autores que trabalham com essas teorias na Análise Econômica do Direito (AED).

Mas, atenção: isso não quer dizer “decisão jurídica” e tampouco que se possa condenar alguém com base em cálculos de probabilidades. Usam análises para aferir eficiência de (e entre) fins e meios. O erro nas teorias desse tipo é o de pensar que o único critério de controle da ação seria o de analisar como que se “relacionam” fins (vazios) e meios (indeterminados) em busca de um resultado eficiente. Como o Direito, mormente o Penal e Processual Penal, trata de direitos fundamentais à liberdade e integridade, parece-me que tais teorias não podem ser aplicadas aqui, sob pena de estarmos criando uma espécie contemporânea de ordálias ou “prova do demônio”: atirem o réu às probabilidades! Direito e democracia não combinam com qualquer forma de teoria cética ou não cognitivista moral (uso aqui o conceito de Arthur Ferreira Neto em seu livro Metaética e a fundamentação do direito). Teorias céticas constituem um problema, porque, nelas, há uma crença de que a verdade, com um mínimo grau de objetividade, não importa. Quer dizer: paradoxalmente, para essas teorias “é verdade que não existe verdade”. Com isso, o Direito — e a teoria prova — são transformados em uma katchanga (real ou não).

Queria ver, por exemplo, alguma sentença que usasse, efetivamente, a fórmula do Teorema de Bayes. A relação do bayesianismo com a AED é, para mim, absolutamente temerária. O próprio criador da AED (Ronald Coase) não o fez. Aproveito para dizer que: a) quem aposta na AED adere a um tipo de ceticismo externo ou interno (ver aqui o belo texto de Marcos Marrafon sobre isso); b) a AED foi uma reação ao positivismo (formalismo), sendo uma versão 2.0 do realismo jurídico, cujo resultado pode ser visto no cotidiano do irracionalismo das decisões do judiciário brasileiro; c) AED? Você gosta? Então veja este exemplo, advindo de um dos corifeus da AED, R. Posner – que, aliás, custou uma enorme dor de cabeça, quando falou da venda de crianças. (ver aqui).

Aliás, defender a AED no Brasil é um grande e barulhento tiro no pé, porque, por ela, muitas operações da Justiça-MPF-PF podem ser severamente criticadas — mormente a operação carne fraca, assim como a divulgação das gravações do presidente Temer com Joesley (nesse dia, a bolsa perdeu 200 bilhões), porque mais causam prejuízo que felicidade (no sentido utilitarista — que, como se sabe, está por detrás da AED) — sem considerar os altos custos em diárias e logística das operações.

Bom, só para avisar, eu não sou adepto da AED. Logo, essas contradições não são problema meu nem são problemas que atrapalham minha análise. Ah: e também não sou contra a lava jato – sou contra os desmandos e autoritarismos que a operação institucionaliza.

Minha oposição a qualquer teoria ceticista (emotivista, não-cognitivista moral e/ou pragmaticista, todos parentes entre si) está assentada na CHD – Crítica Hermenêutica do Direito – tendo por suporte a ideia de que existem padrões objetivos que sustentam “o certo e o errado”. Meu Dicionário de Hermenêutica e o livro Diálogos com Lenio Streck mostram isso à saciedade. Direito sem teoria da decisão vira irracionalidade na veia. Estamos cheios de profetas sobre o passado. No Brasil existem até realistas (retrôs) que sustentam que precedentes são fonte primária de direito. Aceita-se, no atacado, que, primeiro se decide e, só depois, busca-se a fundamentação. Ou seja: atravessam a ponte, chegam do outro lado e depois voltam para construir…a ponte pela qual passaram. Aporias em cima de aporias. Processualismo…sem processo. Bingo.

O que quero dizer é que, para uma teoria da prova, não se pode jogar com probabilidades, intuições, deduções e subjetivismos tipo “busco a verdade real”. No fundo, isso dá tudo no mesmo, porque há um desprezo por critérios substantivos e uma ode à ficcionalização das respostas. Na verdade, teorias como essas querem dar respostas antes das perguntas. Fazem “deduções” porque constroem, artificialmente, as premissas.

Porque a “teoria do pintinho envenenado” é melhor!
Para quem aposta em teses intuitivas, emotivistas, probabilísticas e quer trazer isto para a seara dos direitos e garantias de liberdade (processo penal), sugiro algo mais “seguro”, como o “Teorema do Pinto” (o apelido é dado por mim), “praticado” pela Tribo Azende, da África central. Sem intuicionismo e sem deduções, a tribo, para construir a prova e “buscar a verdade”, lança mão do que chamo de “fator benge”, que consiste em dar para um pintinho um veneno previamente preparado (há um ritual para isso) e, se o pinto morrer, o réu é considerado culpado. Se o pinto sobreviver, é absolvido[1].

Pergunto: Qual é a diferença da “teoria do pintinho benge” e a inversão do ônus da prova que ainda é aplicado pelos tribunais da pátria? Qual é a diferença da teoria do pintinho e a tese bayesianista pela qual Pr(A) e Pr(B) são as probabilidades a priori de A e B Pr(B|A)? Ou que Pr(A|B) são as probabilidades a posteriori de B condicional a A e de A condicional a B respectivamente? Ou que o réu Tício deve ser condenado porque a hipótese fática H foi tomada como verdadeira por Caio porque é a que melhor explica a evidência E? Ou que, pela AED, Tício… O leitor pode complementar.

Falemos sério. O Brasil tem um precário ensino jurídico. E práticas judiciárias que não possuem racionalidade. Em São Paulo, um grupo estrangeiro comprou um conjunto de faculdades e despediu mais de duas centenas de professores, trocou o currículo e esticou o percentual de aulas em EAD (que não deixa de ser resultado de uma “análise econômica”, se me permitem a ironia). Como se o direito fosse mero instrumento. Ora, fala-se em bayesianismo e quejandos e, pelo país afora, nas salas de aula ainda se ensina que Kelsen é um positivista exegético, que cumprir a letra da lei é uma atitude positivista, que princípios são valores, que o juiz deve decidir conforme sua consciência, etc. E o professor posta no Facebook a sua maior conquista — a de ver aprovado um artigo seu no Conpedi.

Erros e epistem(olog)ias fakes que se refletem na operacionalidade do direito nos fóruns e tribunais. Por que há tanta insegurança e falta de previsibilidade? Simples: Porque não há critérios. Porque não há preocupação com um mínimo grau de objetividade e respeito à coerência e à integridade do direito (aliás, isso é obrigação legal – artigo 926 do CPC). Porque sequer se cumpre a objetividade mínima do texto como ponto de partida limitador de um processo hermenêutico. Pergunto: O que são a livre apreciação da prova e o livre convencimento se não argumentos emotivistas (ou coisa desse gênero)? Por isso, envenenar o pinto pode ser mais eficiente. Um relógio parado também acerta hora duas vezes ao dia.

Deixemos o bayesianismo na (e para a) filosofia moral e a lógica. Quero no direito a preservação de garantias. Quem tem de provar robustamente a culpa do réu é o Estado. Isso não pode vir de presunções. E nem de probabilidades. E duvido alguém provar a existência de um fato a partir do Teorema de Bayes.

Além de tudo, determinadas teorias, analisadas no plano filosófico, constituem-se em um paradoxo: se estiverem certas, estão erradas, isto é, se estiverem certas, a filosofia e seus dois mil anos não serviram para nada. Matemos os filósofos. Matem o cantor e chamem o garçom, diria Fausto Wolff.

Para encerrar, conto uma historinha bem ao gosto dos realistas retrôs brasileiros (que são, todos, não cognitivistas morais), com uma advertência – A anedota abaixo é uma carapuça – ponha-a quem quiser. Quem a conta é o professor Arthur Ferreira Neto:

“Um professor alemão, responsável pela disciplina Niilismo, que se enquadra em qualquer dos não cognitivismos acima, foi indagado por um aluno acerca do significado de um conceito complexo e um tanto obscuro que estaria ele apresentando em aula. Respondeu o professor: – não sei a resposta agora; mas, não se preocupe, porque até amanhã inventarei uma”.

Bingo! Bem assim se faz na cotidianidade das práticas jurídicas e nas salas de aula de Pindorama. Como diz a mãe de um amigo meu, nem tudo que parece, é. Mas se é, parece.

Para quem conseguiu chegar até aqui: Escrevi esta coluna para falar das mistificações que começam a ser feitas a partir do uso de teorias exóticas para dentro da teoria da prova no processo penal brasileiro. Já teve até decisão em que se disse que não havia prova, mas a doutrina que tratava do assunto autorizava a condenação (e citava Malatesta). Que se use teses sofisticadas como o bayesianismo onde se quiser. Mas não na teoria da prova. Por favor, não vamos conspurcar a já combalida teoria da prova. Temos 350 mil presos cautelarmente que teriam melhor destino se, para os seus processos, fosse utilizada a teoria do pintinho envenenado… A chance de cada réu seria maior. Ou estou exagerando?

Salvemos, pois, a professorinha, com seu toco de giz. Salvemos as teorias da verdade. Não desistamos da (busca da) verdade!

Post scriptum: lendo a sentença condenatória do ex-Presidente Lula prolatada pelo Juiz Sérgio Moro, deu-me a nítida impressão que o réu teria mais chance de ser absolvido se tivesse sido usado o “Teorema do Pintinho Envenenado”, que faz sucesso na tribo Azende, da Africa Central.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2017, 8h00

Exóticas, teorias usadas pelo MPF no caso Lula seriam chumbadas pelo CNMP, por Lenio Luiz Streck

Exóticas, teorias usadas pelo MPF no caso Lula seriam chumbadas pelo CNMP

Por Lenio Luiz Streck

Recentemente, o conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Valter Shuenquener concedeu liminar (aqui) para anular a questão número 9 do 54º concurso público para promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. No voto, o conselheiro cita coluna Senso Incomum, na qual denunciei o exotismo das teorias perquiridas no certame, como a teoria (sic) da graxa e do Estado vampiro. O CNMP, assim, dá importante passo para desbaratar embustes epistêmico-concurseiristas, como o uso de questões exóticas e quiz shows. Bingo, conselheiro Valter. Estava na hora de passar um recado às bancas de concursos. Há que se avisar que o concurso não é da banca; é do “público”; é res publica. Não é res concurseira.
Pois parece que o recado do CNMP não retumbou em certas teorias utilizadas pelo Ministério Público Federal nas alegações finais subscritas recentemente no processo criminal movido contra o ex-presidente Lula. Que o procurador signatário da peça cite em seu livro teorias exóticas e incompatíveis com qualquer perspectiva contemporânea acerca da prova, OK. Mas que queira fazer uso de teorias, teses ou posturas acopladas a fórceps no Direito é outra coisa. Qual é o limite ético do uso de determinadas teses, tratando-se de uma instituição que deve ser imparcial (MP deveria ser uma magistratura) e zelar pelos direitos e garantias dos cidadãos e da sociedade?
É possível, na ânsia de condenar, jogar para o alto tudo o que já se ensinou e escreveu nas mais importantes universidades do mundo sobre a prova e a verdade no processo penal? Aliás, nas alegações finais que tive a pachorra de ler (e só o fiz depois que fiquei sabendo que o procurador usou o bayesianismo e o explanacionismo), sequer são citados os livros nos quais ele se baseia.

O que diz o signatário? Vamos lá. “As duas mais modernas teorias sobre evidência atualmente são o probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o explanacionismo. Não é o caso aqui de se realizar uma profunda análise teórica delas, mas apenas de expor seus principais pontos, a fim de usar tal abordagem na análise da prova neste caso”. (grifei)
Sigo. E ele explica: “Muito sucintamente, o bayesianismo, fundado na atualização de probabilidades condicionais do Teorema de Bayes, busca atualizar a probabilidade de uma hipótese com base em evidências apresentadas. Na linguagem probabilística, uma evidência E confirma ou desconfirma uma hipótese H. Contudo, a vertente probabilística de análise de prova apresenta inúmeras dificuldades para as quais ainda não foi apresentada resposta convincente, como o problema das probabilidades iniciais, a complexidade dos cálculos, o problema da classe de referência, o paradoxo das conjunções, as evidências em cascata etc. Já de acordo com o explanacionismo, a evidência é vista como algo que é explicado pela hipótese que é trazida pela acusação ou pela defesa”. (sic)

Bom, isso se pode ver também na Wikipédia (e olha que a fonte das páginas Wikis nem são tão confiáveis). Aliás, na Wiki está mais “clara” essa “bela” tese sobre “a prova” adaptada à fórceps ao Direito. Vejamos: O teorema de Bayes (por isso bayesianismo!) é um corolário do teorema da probabilidade total que permite calcular a seguinte probabilidade:
(vide imagem no banner)
Pronto. Eis aí a fórmula para condenar qualquer réu e por qualquer crime. Você joga com as premissas (ou probabilidades) e… bingo. Tira a conclusão que quiser. Algo próximo a autoajuda para entender o que é isto — a verdade no processo penal. Gostei mesmo foi do “Paradoxo das conjunções…”. Deve ser esse o busílis do teorema aplicado à teoria da prova. Fico imaginando o juiz dizendo (não resisto a fazer uma blague e peço já desculpa aos leitores e ao signatário da peça por isso — mas é que a situação é por demais peculiar): “— Condeno o réu Mévio porque o Pr(A), na conjunção com o Pr(AB) deu 0,1. Isso porque a probabilidade a posteriori indicava que Pr(B-A) era inferior a Pr (B+). Perdeu. A casa caiu; a pena aplicada é de X anos”.
Mas a peça é ornamentada com mais uma “teoria jurídica”: O explanacionismo, que “tem por base a lógica abdutiva, desenvolvida por Charles Sanders Peirce no início do século XIX. Para se ter ideia da força que assumiu a abdução, que foi denominada inferência para uma melhor explicação (“inference to the best explanation”) pelo filósofo Harman, pode-se citar uma obra da década de 1980 em que Umberto Eco, junto com outros renomados autores, examinaram exemplos do uso dessa lógica em inúmeras passagens de Sherlock Holmes.
Na linguagem explanacionista, a hipótese fática H (cuidado com a cacofonia) que é tomada como verdadeira é aquela que melhor explica a evidência E, ou o conjunto de evidências do caso. Assim, a melhor hipótese para a evidência consistente em pegadas na areia é a hipótese de que alguém passou por ali. (…) Combinando o explanacionismo com o standard de prova da acusação, que se identifica como a prova para além de uma dúvida razoável, pode-se chegar à conclusão quanto à condenação ou absolvição do réu”. (sic)
Pronto. Sherloquianamente, a partir do explanacionismo, chega-se à conclusão de que… de que, mesmo? Ou seja: Tício pode ser condenado porque a hipótese fática H (cuidado de novo) foi tomada como verdadeira por Caio porque é a que melhor explica a evidência E. E eu poderia dizer que, a partir da teoria da incompletude de Gödel, a tese esgrimida na peça processual está errada. Ou está certa. Quem sabe? Ou que pelo sistema de Hilbert (por essa ninguém esperava, hein; pensam que não leio essas coisas?) há 85% de chances de a abdução realizada pelo procurador signatário da peça ser falsa, porque, no plano sistêmico — entendido a partir de uma epistemologia não-cognitivista moral (teoria metaética) — ele está absolutamente equivocado. Mas isso que eu acabei de falar é tão verdadeiro quanto a teoria do bayesianismo. Ou não. Entenderam?

Ou seja, cada coisa que está dita — e vou utilizar o neopositivismo lógico (não inventei isso) e sua condição semântica de sentido — pode ser refutada com a simples aposição da palavra “não”. Vou me autocitar só uma vez (há 7 autocitações na peça processual): no meu Dicionário de Hermenêutica, há um verbete sobre Resposta Adequada a Constituição, em que mostro como usar a condição semântica de sentido (por óbvio, sob um viés hermenêutico que não vou explicar aqui). De uma forma simples, é assim: Um enunciado só é verdadeiro, a partir do neopositivismo lógico, se passar pelo filtro da sintaxe e da semântica. Se eu digo “chove lá fora”, esse enunciado pode ser testado. Sintaticamente, correto. E semanticamente? Fácil. Basta olhar para fora. Se estiver chovendo, beleza. Se estiver tempo seco, basta colocar um “não” no enunciado. Bingo. Enunciado verdadeiro. Parcela considerável do que está dito nas três centenas de laudas não passa pela CSS (condição semântica de sentido). Coloque a palavra “não” nos enunciados (frases) e constate. No Dicionário, uso o exemplo da decisão em que uma juíza do Rio de Janeiro nega ao detento o direito de não cortar o cabelo, enquanto que para as mulheres era dado esse direito. Argumento: as mulheres são mais higiênicas que os homens. Bingo: se eu colocar um “não”, que diferença fará? Não há qualquer possibilidade empírica de verificar a veracidade do enunciado.
Aliás, qualquer coisa que você quiser demonstrar é possível com as duas “modernas” teorias (sim, são modernas…, mas não para o Direito e/ou teoria da prova). Aliás, abdução ou dedução ou coisa que o valha só é possível — na filosofia — se estivermos em face de um enunciado auto evidente. Caso contrário, como nunca falamos de um grau zero de sentido, colocamos a premissa que quisermos, para dali deduzir o que queremos. Sherlock mesmo tem várias passagens em que brinca com esse tipo de raciocínio. Isso também está explicado no diálogo entre Adso de Melk e Guilherme de Baskerville, no romance O Nome da Rosa. É a passagem da subida em direção à Abadia… Deduções que parecem deduções…
Trazer isso para o Direito e tentar, de forma malabarística, dizer que uma coisa é porque não é mas poderia ter sido por inferência ou abdução, cá para nós, se isso for ensinado nas salas de aula dos cursos de direito… Bom, depois da teoria da graxa, dos testículos partidos, da exceção da nódoa removida, do dolo colorido, do estado vampiro, da teoria régua lésbica aristotélica (sim, isso é ensinado em alguns cursinhos), porque não incluir duas novas — bayesianismo, e o explanacionismo?

Aproveito para sugerir uma nova: a TPP — Teoria da Prova de Procusto. Inventei agora: Procusto era um sujeito que tinha um castelo no deserto. Quem por ali passava recebia toda mordomia. Só tinha um preço: dormir no seu leito. Procusto tinha um metro e sessenta. Se o visitante medisse mais, cortava um pedaço; se medisse menos, espichava o vivente. Pronto. Se os fatos não comprovam alguma coisa, adapte-se os às teorias. Ou se crie uma teoria para construir narrativas.

Numa palavra: não coloco em dúvida o valor do teorema de Bayes e o esplanaciosimo. Mas um processo penal é uma coisa séria demais para experimentalismos. Ou jogos de palavras. O que consta da peça processual, se verdadeiras as adaptações que se quer/quis fazer para a teoria da prova no Direito, jogará por terra dois mil anos de filosofia e todas as teorias sobre a verdade. Mas tem uma explicação para essas teses ou “teorias”: na verdade, são teses que se enquadram, no plano da metaética, no não cognitivismo moral, como bem explica Arthur Ferreira Neto no seu belo livro Metaética e a fundamentação do Direito. São não-cognitivistas todas as teorias emotivistas, niilistas, realistas (no sentido jurídico da palavra) e subjetivistas.
E por que? Porque são posturas céticas (ceticismo externo, diria Dworkin). Por elas, não é possível exercer controle racional de decisões. Direito, por exemplo, será aquilo que a decisão judicial disser que é. E isso resultará de um ato de verificação empírica. Um ato de poder. E de vontade. Prova será aquilo que o intérprete quer que seja. Para essa postura, decisões jurídicas sempre podem ser variadas. Uma postura não-cognitivista não concebe a possibilidade de existir nenhuma forma de realidade moral objetiva; relativismo na veia; não é possível, por elas, dizer que uma coisa é ruim em qualquer lugar; somente a dimensão empírica é capaz de influenciar a formação do direito. O decisionismo é uma forma não-cognitivista. Niilismo, do mesmo modo é uma forma não-cognitivista, assim como uma corrente chamada emotivista. O uso das teses em testilha e seu signatário podem ser enquadrados como um não-cognivismo moral, seguindo os conceitos das teorias mais modernas sobre a diferença entre cognitivismo e não-cognitivismo ético (aqui, moral e ética são utilizadas, na linha de Arthur Ferreira Neto, como sinônimas). De minha parte, sou confessadamente um cognitivista.

Por que estou dizendo tudo isso? Porque quem sai na chuva é para se molhar. Ou corre o risco de se molhar (isso seria uma inferência? Ou uma abdução? Ou dedução?). Estamos falando de um agente do Estado que possui responsabilidade política (no sentido de que fala Dworkin). O agente do MPF nos deve accountability. Deve ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição acerca do que são garantias processuais. E do(s) agentes(s) estatais podemos questionar o uso de “teorias” sobre a prova que o próprio CNMP poderia — se indagadas em concurso público — chumbá-las, porque exóticas. Comparando com a medicina, é como se alguém defendesse a tese de que é possível fazer operação a partir da força da mente. Ou algo exótico desse jaez.
Por fim, poder-se-á dizer que há provas nos autos etc., coisa que aqui não me interessa. Não sou advogado da causa. Não quero e nem posso discutir o mérito do processo. Discuto as teorias de base utilizadas por um agente público. Poder-se-á dizer que o uso das duas “teorias” citadas nem são (ou foram) importantes para o deslinde da controvérsia (embora o próprio procurador signatário diga que fará a análise das provas a partir dessas duas “teorias”). Mas que estão aí, estão. O juiz da causa poderá até acatá-las. Mas, com certeza, se perguntadas em concurso público, haverá a anulação das questões. Pelo menos é o que se lê na liminar do CNMP (atenção – até porque no Brasil as metáforas têm de ser anunciadas e explicadas – a alusão ao CNMP tem apenas o condão de comparar a dimensão do sentido do uso de “teorias exóticas”).
Se alguém ficou em dúvida em relação ao teorema de Bayes, retorne no texto e veja de novo a fórmula. Não entendeu? Ora, é fácil.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: http://www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2017, 8h00

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SENTENÇA CONTRA LULA

Por Fernando Hideo I. Lacerda
(Advogado criminalista – PUC/SP)

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SENTENÇA CONTRA LULA

  1. Não me proponho a exaurir o tema, tampouco entrar num embate próprio das militâncias partidárias, relatarei apenas as minhas impressões na tentativa de traduzir o juridiquês sem perder a técnica processual penal.
  2. OBJETO DA CONDENAÇÃO: a “propriedade de fato” de um apartamento no Guarujá.

Diz a sentença: “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”.

Embora se reconheça que o ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse apartamento, o juiz fala em “propriedade de fato”.

O que é propriedade ?

Código Civil – Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

Portanto, um “proprietário de fato” (na concepção desse juiz) parece ser alguém que usasse, gozasse e/ou dispusesse do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.

Esse conceito “proprietário de fato” não existe em nosso ordenamento jurídico. Justamente porque há um outro conceito para caracterizar essa situação, que se chama POSSE:

Código Civil – Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

E não foi mencionada na sentença qualquer elemento que pudesse indicar a posse do ex-presidente ou de sua esposa do tal triplex: tudo o que existe foi UMA visita do casal ao local para conhecer o apartamento que Léo Pinheiro queria lhes vender.

Uma visita.

Portanto, a sentença afirma que Lula seria o possuidor do imóvel sem nunca ter tido posse desse imóvel. Difícil entender ? Impossível.

  1. TIPIFICAÇÕES:
  • corrupção (“pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”)
  • lavagem de dinheiro (“envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”).

    1. PROVAS DOCUMENTAIS: um monte de documento sobre tratativas para compra de um apartamento no condomínio do Guarujá (nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal tenha obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal o globo (sim, acreditem se quiser: há NOVE passagens na sentença que fazem remissão a uma matéria do jornal o globo como se prova documental fosse).

    Esse conjunto de “provas documentais” comprovaria que o ex-presidente Lula era o “proprietário de fato” do apartamento.

    Mas ainda faltava ligar o caso à Petrobras (a tarefa não era assim tão simples, porque a própria denúncia do Ministério Público do Estado de São Paulo — aquela mesmo que citava Marx e “Hegel” — refutava essa tese)…

    1. PROVA TESTEMUNHAL: aí entra a palavra dos projetos de delatores Léo Pinheiro e um ex-diretor da OAS para “comprovar” que o apartamento e a reforma seriam fruto de negociatas envolvendo a Petrobras.

    Não há nenhuma prova documental para comprovar essas alegações, apenas as declarações extorquidas mediante constante negociação de acordo de delação premiada (veremos adiante que foi um “acordo informal”).

    1. CORRUPÇÃO

    Eis o tipo penal de corrupção:

    Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem

    Portanto, deve-se comprovar basicamente:
    – solicitação, aceitação da promessa ou efetivo recebimento de VANTAGEM indevida; e
    – CONTRAPARTIDA do funcionário público.

    No caso, o ex-presidente foi condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.

    O pressuposto mínimo para essa condenação seria a comprovação:
    – do recebimento da vantagem (a tal “propriedade de fato” do apartamento); e
    – da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás.

    Correto ?

    Não.

    Como não houve qualquer prova sobre a contrapartida (salvo declarações extorquidas de delatores), o juiz se saiu com essa pérola:

    “Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.”

    E prossegue, praticamente reconhecendo o equívoco da sua tese: “Na jurisprudência brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não depende da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma determinação precisa dele”.

    Ou seja, como não dá pra saber em troca de que a oas teria lhe concedido a “propriedade de fato” do triplex, a gente diz que foi em troca do cargo pra que as vantagens fossem cobradas “assim que as oportunidades apareçam” e está tudo certo pra condenação !

    Para coroar, as pérola máxima da sentença sobre o crime de corrupção:

    • “Foi, portanto, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente”.

    Haja triplex pra tanta vantagem…

    • “Não importa que o acerto de corrupção tenha se ultimado
      somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da República”.

    Haja crédito pra receber as vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…

    1. LAVAGEM DE DINHEIRO

    A condenação por corrupção se baseia em provas inexistentes, mas a pior parte da sentença é a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro.

    Hipótese condenatória: lavagem de dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”.

    Ou seja, o ex-presidente Lula teria recebido uma grana da oas na forma de um apartamento reformado e, como não estava no nome dele, então isso seria lavagem pela “dissimulação e ocultação” de patrimônio.

    Isso é juridicamente ridículo.

    Lavagem é dar aparência de licitude a um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um dinheiro sujo no mercado. Isso é “esquentar o dinheiro”. Exemplo clássico: o cara monta um posto de gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro, só joga dinheiro sujo ali e esquenta a grana como se fosse lucro do negócio.

    Então não faz o menor sentido falar em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do contrário, o exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem, percebem ?

    Não só corrupção, mas sonegação, roubo a banco, receptação, furto… Nenhum crime patrimonial escaparia da lavagem segundo esse raciocínio, pq obviamente ninguém bota essa grana no banco !

    1. DELAÇÃO INFORMAL (OU SEJA, ILEGAL) DE LÉO PINHEIRO

    Nesse mesmo processo, Léo Pinheiro foi condenado a 10 anos e 8 meses (só nesse processo, pois há outras condenações que levariam sua pena a mais de 30 anos).

    Mas de TODAS AS PENAS a que Léo Pinheiro foi condenado (mais de 30 anos) ele deve cumprir apenas dois anos de cadeia (já descontado o período de prisão preventiva) porque “colaborou informalmente” (ou seja, falou o que queriam ouvir) mesmo SEM TER FEITO DELAÇÃO PREMIADA OFICIALMENTE.

    Ou seja, em um INÉDITO acordo de “delação premiada informal”, ganhou o benefício de não reparar o dano e ficar em regime fechado somente dois anos (independentemente das demais condenações).

    Detalhes da sentença:

    “O problema maior em reconhecer a colaboração é a FALTA DE ACORDO de colaboração com o MPF. A celebração de um acordo de colaboração envolve um aspecto discricionário que compete ao MPF, pois não serve à persecução realizar acordos com todos os envolvidos no crime, o que seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal

    “Ainda que tardia e SEM O ACORDO DE COLABORAÇÃO, é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário Pinheiro Filho contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da verdade, prestando depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais

    “é o caso de não impor ao condenado, como condição para progressão de regime, a completa reparação dos danos decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de cumprimento de pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão no regime fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que exigiria mais tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos

    “O período de pena cumprido em prisão cautelar deverá ser
    considerado para detração” –> desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva

    “O benefício deverá ser estendido, pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos demais processos julgados por este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos) ele irá cumprir apenas dois anos em regime fechado…

    1. TRAUMAS E PRUDÊNCIA

    Cereja do bolo: o juiz diz que “até caberia cogitar a decretação da prisão
    preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”.

    É a prova (agora sim, uma prova !) de que não se julga mais de acordo com a lei, mas pensando nos traumas e na (im)prudência…


    Independentemente da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza.

    Eis o processo penal de exceção: tem a forma de processo judicial, mas o conteúdo é de uma indisfarçável perseguição ao inimigo !

    Muito cuidado para que não se cumpra na pele a profecia de Bertolt Brecht e apenas se dê conta quando estiverem lhe levando, mas já seja tarde e como não se importou com ninguém…

    Brasil: Fábrica de teorias condenatórias

    Quando um juiz assume o papel de promotor de justiça em flagrante infração às regras mínimas que regem a atuação de magistrados em estados democráticos de direito; quando a ausência de prova transforma-se em “prova de destruição ou ocultação de provas”; quando as pessoas são previamente condenadas por convicção; quando há quebra do direito constitucional de acesso à informação e resguardo do sigilo da fonte -“Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos – XIV – é assegurado o acesso à informação e resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”; quando é conspurcado o direito constitucional da presunção de inocência; quando “Justiceiros e Direitistas” chafurdam no lodaçal e batem boca em público ferindo o decoro e nossos ouvidos, resta-nos exigir desses senhores: compostura!

    Compartilho abaixo texto, como sempre preciso e elegante, do amigo de Facebook Flávio Antônio da Cruz. O título, a foto e a introdução são de minha autoria. O autor do texto compartilhado ainda perde o seu precioso tempo discutindo o atual estado de coisas no Brasil. Eu, curto e grosso, não tenho dúvidas em afirmar: caímos no precipício, no estado de exceção, antes sutil, agora escancarado.

    Paulo Martins

    Segundo Karl Popper, determinadas asserções são verificacionistas. Isso significa que são afirmações vagas, ambíguas, porosas, suscetíveis de se amoldarem a qualquer conjunto de fatos, mediante remendos ad hoc. Essa é a diferença básica entre astrologia e astronomia…. A astrologia profetiza que, no próximo ano, algum artista famoso morrerá. Não diz quem, não precisa a data, não diz a causa. Apenas afirma, de modo vago, algo altamente provável… A astronomia preocupa-se com a precessão do periélio de Mercúrio, elabora cálculos, busca causas e faz prognósticos com elevado grau de acurácia a respeito de eventos futuros… Urbain Le Verrier profetizou a descoberta de Netuno – por décadas, chamado de planeta de Le Verrier – justamente por meio da aplicação das equações newtonianas… Claro que ele cometeu o equívoco de imaginar que a precessão do periélio de Mercúrio seria explicada pela pretensa existência de Vulcano, o planeta imaginário (Le Verrier defrontou-se com um problema que apenas seria solucionado com a teoria da relatividade geral de Einstein, quase um século depois)… De modo semelhante, Gauss calculou a órbita de Ceres, com elevada precisão, dispondo apenas dos dados de Tycho Brahe e seu elevado conhecimento de matrizes… Bom, o fato é que o verificacionismo aproxima-se da paranoia. Como dissuadir alguém de que a sua teoria da conspiração não corresponde à realidade dos fatos? Qualquer afirmação que o interlocutor empreenda pode ser empregada como mais uma prova de que, na verdade, haveria um grande complô…. O processo penal também pode ser verificacionista… A autoridade manda empreender uma busca e apreensão. Caso a prova do pretenso delito seja obtida, voilà: confirma-se o que se julga saber… Caso a prova do pretenso delito não seja localizada, isso pode se converter na ‘prova’ de que o suspeito a destruiu… A ausência de prova pode se converter em simples ‘prova da ausência’… e, com isso, se imaginar uma pretensa obstrução à justiça… e, com isso, a demonstração do cogitado delito… Afinal de contas, alguém apenas destruiria provas tendo interesse em impedir a apuração… Enfim, dado que o verificacionismo é muito frequente – basta ler qualquer jornal para se perceber isso -, é fato que, não raro, as pessoas podem interpretar qualquer evento como a prova cabal daquilo que imaginam saber… O verificacionismo guarda certo liame, pois, com aquela tentativa – presente em muitos discursos – de se promover uma leitura do mundo a partir de uma chave única de decodificação das relações humanas…, como se houvesse algum código (chave mestra) que conferisse sentido a tudo o mais… O verificacionista está convencido… e, com isso, qualquer elemento – mesmo aqueles que evidenciem que a convicção é equivocada – pode se converter em instrumento de mera confirmação do que acredita saber… Confrontado com fósseis de dinossauros, o criacionista responde que se trata de um mero teste de fé…, ossos deixados na Terra para testar a crença dos fiéis… Dizia Popper que, se a teoria for refutada pelos fatos, abandona-se a teoria e se fica com os fatos. Melhor seria dizer: se a teoria for refutada pelas provas dos fatos – já que não lidamos diretamente com ‘fatos’ , em si, mas com a sua demonstração -, abandona-se a teoria…. Confia-se no mapa… mas, se o terreno destoar do mapa, confia-se no terreno…, com o perdão do truísmo. Por questões de regras democráticas para a solução de non liquet probatório, a ausência de prova não pode se converter, de forma automática, em ‘prova da destruição da prova’…. A regra democrática é a de que todo suspeito faz jus ao respeito ao estado de inocência, cabendo a quem acusa apresentar as provas – efetivas, reais – da sua responsabilidade penal… Quando a ausência de prova se converte em prova da destruição das provas… tem-se, na ponta, verdadeiro círculo vicioso argumentativo… Talvez seja por isso que os alemães denominam, com certa dose de razão, os círculos viciosos de círculos diabólicos (Teufelskreis…).