Fiocruz, seu destino histórico e a cloroquina, entrevista com Nísia Trindade


Chico Alves
Colunista do UOL
21/04/2020 04h00
Nascida em meio à luta contra epidemias como febre amarela, peste bubônica e varíola, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) completa 120 anos em maio, novamente na linha de frente para superação de um enorme desafio sanitário. A instituição foi designada pela Organização Mundial de Saúde como referência na América do Sul no combate à pandemia do coronavírus.

“Estamos cumprindo nosso destino histórico”, diz a doutora em Sociologia Nísia Trindade, presidente da Fiocruz.

As dificuldades para encontrar tratamentos, vacinas e estratégias contra a doença são conhecidas, mas um obstáculo surpreendente ao trabalho dos pesquisadores foi registrado na semana passada. Em meio a estudos sobre a eficácia do uso da cloroquina para o tratamento da covid-19, cientistas da fundação, em Manaus, e de outras instituições foram ameaçados nas redes sociais e fora delas, ao decidirem interromper os testes da substância em pacientes graves, por conta dos riscos.

“Não é um ataque à Fiocruz ou ao grupo de pesquisadores específico, mas uma ameaça ao trabalho científico”, define Nísia.

Nessa entrevista, a presidente da Fiocruz fala que ainda não há respostas imediatas para a pandemia em termos de medicamentos, e por isso o afastamento social continua sendo a estratégia mais indicada. Nísia comenta ainda o aumento da produção de testes para diagnóstico da doença, que chegará a 11 milhões de unidades, e a busca de formas seguras para sair do isolamento quando chegar a hora.
“Não se poderá sair da situação que temos preconizado hoje do isolamento para atividades com aglomeração. Isso terá que ser progressivo”, adianta.


UOL – Recentemente, cientistas que pesquisam a eficácia da cloroquina foram ameaçados nas redes sócias e fora delas. Ao que a sra. atribui esses ataques?

Nísia Trindade – Vejo como um ataque não só aos pesquisadores, mas um ataque a toda a ciência. Não por acaso, além do conselho da Fiocruz, também a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Sociedade de Medicina Tropical, a Academia Nacional de Medicina e várias instituições científicas se posicionaram todas em favor do respeito à pesquisa científica, à preservação do trabalho dos pesquisadores.

Não se trata de ser a favor ou contra um medicamento. Isso não teria o menor sentido. Toda a orientação da ciência, a nível internacional, é para que as pesquisas com relação a tratamentos possíveis sejam feitas a partir de medicamentos já conhecidos. Então, eu vejo esse ataque não como uma ameaça à Fiocruz ou ao grupo de pesquisadores específico.

Todo esse trabalho passa por comitês de ética, comitês de segurança de cada pesquisa que envolve o estudo clínico, que envolve vidas, que envolve pacientes, todos esses trâmites estão sendo seguidos e nós estamos acompanhando. Foi dessa maneira que o nosso conselho se posicionou.

Houve uma resposta das autoridades? Já foram identificados autores das ameaças?

Tivemos contato com uma comissão externa do Congresso que está acompanhando o coronavírus e entrou em contato comigo, como presidente da Fiocruz. Passei todas as informações e temos feito isso em relação a todas as instâncias. Essa pesquisa, inclusive, tinha sido acompanhada pela diretoria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. Sempre temos esse cuidado, que é como procedemos com as nossas pesquisas.

Enquanto temos esses ataques vindo de um pequeno grupo aqui no Brasil, a OMS reconhece a Fiocruz como instituição de referência para o combate ao coronavírus na América Latina. O que isso representa?

Isso representa um reconhecimento muito importante, especificamente ao nosso Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo, vinculado ao Instituto Oswaldo Cruz, que é um de nossos institutos mais tradicionais na pesquisa biomédica. Também um laboratório do México foi reconhecido. Isso significa que o laboratório, além da análise de amostras do material coletado para identificação do vírus é uma referência não só para o Brasil agora, mas para toda a América Latina, no sentido de definir os melhores protocolos, a formação das equipes. É um componente de pesquisa que ajuda todo o acompanhamento da pandemia, que vai ser muito importante para o pós-pandemia também. Esse laboratório contribui para todo um conjunto de medidas que envolve o material onde se identifica o vírus.

Uma das frentes da Fiocruz é a produção de testes. Quanto se conseguiu aumentar na produção desse item?

Essa produção tem implicado um esforço imenso da nossa instituição, fruto de muito trabalho em ciência e tecnologia. A Fiocruz tem um laboratório de produção de vacinas, de biofármacos e também desses testes, que é a Biomanguinhos. Associado a esse esforço, também o Instituto de Brasileiro de Biologia Molecular do Paraná. Nesses institutos nós conseguimos otimizar a produção desses testes e nós vamos chegar agora, a partir de maio, à produção de 2 milhões de unidades por mês. Totalizando até o final de agosto, 11 milhões de testes acumulados.

Com isso, acho que daremos uma contribuição muito importante para esse processo de testagem. Produzimos o teste molecular, ou seja, o que tem eficácia comprovada e uma acuidade para identificar as infecções já desde o início de seus sintomas. Isso é um grande avanço.

Junto com isso, pretendemos também contribuir através do Ministério da Saúde para pensar as melhores estratégias para todo o sistema de vigilância, para os laboratórios dos estados, de maneira que não haja exames na fila, como se diz. Temos também trabalhado muito com os conselhos de secretários estaduais de saúde, com os laboratórios centrais nos estados.

É essa rede que forma a grande vigilância n Brasil e a pandemia coloca um desafio maior porque não bastam as ações regulares. É de fato um esforço imenso, temos que ser mais rápidos que o vírus. É um desafio e tanto.

Quais as pesquisas prioritárias sobre covid-19 em desenvolvimento na Fiocruz?

Nós temos realizado um conjunto de estudos que vão desde pesquisas ligadas ao vírus, respostas imunológicas, passando também por modelagem epidemiológica, modelagem matemática para entendermos como o vírus poderá vir a se comportar no Brasil, estudos de cenários.

Eu diria que todos os conhecimentos precisam se reunir nesse momento: a imunologia, a virologia, a epidemiologia e a saúde pública, porque essa pandemia, com sua velocidade de transmissão, coloca em xeque os sistemas de saúde de todo mundo. Nesse momento nós estamos lançando um edital de pesquisa, dentro do nosso programa Inova Fiocruz, que se volta para responder perguntas que não foram respondidas e são fundamentais sobre a doença, o comportamento do vírus e também o comportamento do sistema de saúde.
Ao mesmo tempo também temos produtos imediatos: intensificação de estudos clínicos, novos protocolos de tratamento, uma série de ações importantes para que possamos contribuir como instituição de ciência nessa pandemia.

Nas testagens dos possíveis remédios que já existem, houve algum resultado animador?

Não. Resultado, infelizmente ainda não temos. Além do estudo que você fez referência, sobre a cloroquina, em Manaus, nós participamos de um grande estudo clínico, o estudo Solidariedade, coordenado pela OMS, que vai avaliar a possibilidade terapêutica da cloroquina, da hidroxicloroquina, de alguns antivirais. A Fiocruz é a coordenadora desse estudo no Brasil e envolve 18 hospitais em 12 estados.

É um esforço muito intenso, uma rede de estudo clínico. Não há respostas imediatas, infelizmente. Nós gostaríamos de já dizer à população: esse medicamento é o melhor ou essa vacina é a melhor. Por ora, as medidas são de prevenção não-farmacológicas: o isolamento, a distância social, os cuidados de higiene. Que não são simples, sabemos, mas são as medidas recomendadas pela comunidade internacional.

E quanto a vacinas? Empresas americanas informam que no início do ano que vem podem chegar a algum resultado. E por aqui, como andam as pesquisas?

Nós temos feito discussões e aberto possibilidades de trabalho conjunto com laboratórios de todo mundo também, tanto do setor público quanto do setor privado. Sempre com uma preocupação muito grande, já que nossa instituição é signatária de uma rede de pesquisas que tem como objetivo o acesso. Não adianta produzir uma vacina ou chegarmos a um novo medicamento sem que haja garantia de acesso principalmente nos países em desenvolvimento ou de baixa e média renda da América Latina e da África.

Vacinas baratas a que todos tenham acesso, que chegue à sociedade, esse é um ponto muito importante. Um segundo ponto é que nós temos uma tradição de transferências tecnológicas a vacina de febre amarela, que hoje nós somos o principal responsável por essa produção no mundo. Isso é fruto de uma transferência tecnológica da Fundação Rockfeller para a Biomanguinhos. A

A pandemia mostra a importância do país ter uma autonomia na produção de vacinas, de insumos e mesmo de equipamentos, já que estamos vendo essa carência em todo mundo, essa concentração em um único país. Tudo isso faz com que a Fiocruz seja uma instituição que poderá dar respostas para o futuro. Para isso, temos um importante projeto que é o complexo biotecnológico, em Santa Cruz, aumentando a nossa capacidade de vacinas.

Nós temos a resposta imediata à pandemia, mas temos que pensar nos passos seguintes. Para a epidemia da covid-19 e também para outras doenças com que o mundo infelizmente passará a conviver.

Depois do coronavírus outras viroses semelhantes vão surgir?

Isso é algo que já vem acontecendo no mundo. Esperamos que não com essa violência, no sentido da velocidade de transmissão e dos casos graves com complicações que levam tantas pessoas ao mesmo tempo para as unidades de tratamento intensivo. Mas temos que nos proteger.

Além disso, até termos a imunidade, a vacina será necessária e o acompanhamento epidemiológico dessa pandemia. Ou seja, a pandemia não termina no curto prazo. Temos que pensar que até termos uma vacina estaremos expostos a ciclos de doenças, coisas que não sabemos, Também não quero fazer aqui nenhuma previsão. São coisas que estão sendo estudadas e caberá à pesquisa científica nas diferentes áreas nos apontar esses cenários.

Nos últimos dias se registrou um aumento de circulação de pessoas nas ruas de várias cidades do país. O que fazer para aumentar a adesão ao isolamento social?

Em primeiro lugar, não é fácil lidar com essa situação, que é nova. Pela primeira vez eu vivo um momento como esse, assim como grande parte da população. Uma experiência semelhante em nosso país em termos de quarentena, mas em momento muito diferente na história, só ocorreu com a gripe espanhola, que teve mortalidade intensa e foi um gravíssimo problema logo após à Primeira Guerra. Acho que há uma dificuldade desse entendimento.

Mas creio que com toda essa dificuldade, boa parte da população está entendendo a gravidade e é propensa ao isolamento sanitário. O que precisamos são de medidas que não só reforcem a comunicação, mas que tornem viável esse isolamento em alguns grupos vulneráveis que têm mais dificuldades. Os trabalhadores informais têm muita dificuldade. Para isso, teríamos que ter reforço das medidas de proteção social.

Temos agora a destinação de R$ 600 para permitir aos trabalhadores que fiquem em casa, mas creio que precisemos de mais medidas em relação a pequenas e médias empresas para dar esse suporte. Além disso, muitos grupos vulneráveis vivem em localidades de altíssima densidade demográfica, com altíssima aglomeração. As próprias casas muitas vezes com sete pessoas no mesmo cômodo. São questões de um país marcado por profunda desigualdade social.

Ao chegar ao país, o vírus tem essa realidade no seu processo de expansão. É diferente se olharmos para a Europa e mesmo diferente de outras realidades na Ásia, onde a pandemia teve seu início. É um país continental, com grande diversidade regional, com grande desigualdade social. Tudo isso se reflete. Temos que trabalhar medidas específicas. Na Fiocruz nós construímos um fórum conjunto com os comunicadores populares, para dessa forma termos realmente mensagens que cheguem às pessoas. Há uma grande rede de solidariedade em relação a essas populações vulneráveis e locais de mais baixa renda e muita aglomeração, como favelas e periferias.

Temos pensar junto com essas populações e suas lideranças as melhores medidas. É preciso que as pessoas tenham meios para fazer esse isolamento. Creio que essa é uma das tarefas mais urgentes.

Já se sabe qual a forma mais segura de flexibilizar o isolamento social?

Não, isso ainda está em discussão. Eu mesmo participo do fórum de líderes globais de saúde da OMS, onde esse debate está se realizando nesse momento. O que está muito claro é que essa saída será gradual, vai ser muito importante o controle dos casos, o controle também da oferta de leitos, para que se possa encaminhar os pacientes graves.

Mas não é o bastante ter os leitos disponíveis. É muito importante o controle através de testes, através de uma visão de como a doença vai se disseminando. Ou seja, é uma fase de muita cautela e da qual não se poderá sair do isolamento para o retorno pleno a atividades com aglomeração. Isso terá que ser progressivo. Isso é muito claro em todas as orientações dos estudos, até porque nós teremos pessoas ainda sujeitas a infecção e podemos ter novos ciclos da doença o que seria bastante perigoso. Teremos sair com muita cautela e com base em evidências científicas, articuladas ao reforço do sistema de saúde. Será um trabalho que exigirá muita coordenação. Tenho certeza que a comunidade científica fará um grande esforço para que seja bem-sucedida a saída dessas medidas atuais.

Muito ajuda quem não atrapalha

Muito ajuda quem não atrapalha
(Sérgio Sérvulo da Cunha)

Você é microempresário, e, devido à quarentena decretada pelo governo, está sem qualquer receita. Por isso está justamente preocupado: como pagar as suas contas? Ao fechar as portas do seu negócio, o governo não disse como é possível fazer isso, nem colocou, ao seu alcance, meios para fazer isso.
A quarentena a que você está obedecendo – no interesse seu e de todos – foi decretada pelos governos municipal e estadual, que não têm competência legal para fazer o que o governo federal deveria ter feito, e não fez: decretar, junto com a quarentena, a moratória dos débitos.
Por isso, não se desespere: a moratória virá, se não em decorrência da lei, imposta pelos fatos.
Cuide, em primeiro lugar, da sua vida e das suas necessidades básicas; se você tem recursos disponíveis, preserve-os para o essencial; e se você estiver capitalizado, busque pagar suas contas aos credores que estão em situação pior do que você. Preocupe-se com sua clientela e com seus funcionários. Nas relações trabalhistas e negociais, evite criar conflitos, e litígios que serão julgados, no futuro, segundo velhos princípios, e não segundo regras transitórias, feitas de afogadilho.
Fechamos portas, abramos corações: há desempregados, e trabalhadores informais que precisam ser assistidos, mediante parcerias municipais de que participem indústrias e empresas de alimentação, para distribuição de cestas básicas. Há trabalhadores autônomos e avulsos a quem o governo deve, com urgência, medidas que para ele não passam, praticamente, de uma penada.
Essa crise veio mostrar para o governo o que ele não, mas a maioria das pessoas já sabia: que estamos todos no mesmo barco; a sociedade não é feita de duas camadas de pessoas: a elite, de um lado, e a ralé, de outro. O governo não é feito para favorecer os que têm, em detrimento dos que não têm. Essa é uma concepção de sociedade, e de governo, pertencente ao passado.
Muitos, é verdade, continuam se comportando assim. Por exemplo: a concessionária de transporte que diminuiu o número das suas balsas, aglomerando seus passageiros em menor número de viagens. Mas muitos, e muitos, estão se comportando de modo diferente. Por exemplo: profissionais da saúde, lutando bravamente nas primeiras trincheiras; aquele funcionário de concessionária de eletricidade que se recusou a cortar a luz de uma família em quarentena.
Continuemos a demonstrar, por todos os modos, a nossa solidariedade. São muitas as virtudes, que a competição ordinária costumava ocultar, e que aparecem agora. Tendo essa crise aberto nossos olhos, fixemos alguns objetivos inarredáveis para depois dela:
Nós, da Baixada Santista, precisamos nos unir para aprovar algum dos projetos de lei, em curso no Congresso, estabelecendo benefícios tributários em favor dos municípios portuários; sem isso será impossível recuperar depois da crise a nossa economia regional, fragilizada pela recessão, abatida pela globalização dos serviços de transporte marítimo.
Outra coisa: impossível continuar com esses índices de desigualdade: precisamos aprovar uma renda mínima para todo e qualquer brasileiro, o que, do ponto de vista econômico, é perfeitamente possível. Segundo Ladislau Dowbor, “o desafio não é a falta de recursos; o que hoje produzimos é amplamente suficiente para uma vida digna e confortável para todos. No mundo se produz anualmente 85 trilhões de bens e serviços por ano, o que, razoavelmente distribuído, asseguraria 15 mil reais por mês por família de quatro pessoas. E o Brasil está precisamente nesta média mundial.” Aliás, se você está em casa, sem fazer nada, essa é uma excelente ocupação: veja o que estão fazendo com a economia brasileira, assistindo os videos de Dowbor na internet.

“Tutto Andrà Benne?”

Por Nina Paduani
Eu quase não tenho dormido. Longe de mim me queixar, sei dos meus privilégios. Vivo numa casa confortável, com minha família que amo, tenho um emprego, um salário. E agora também tenho a companhia do Davide, que depois de curado está aqui. Mas tenho um trabalho de cuidar, e não deixo de me preocupar. Já se passaram três semanas de confinamento, e, na previsão mais otimista, terão mais três. O desconforto psicológico na solidão das casas me tira o sono. E também a solidão dos profissionais de saúde que trabalham na linha de frente, isolados de suas famílias, lutando pela vida num cenário de guerra, devastação, morte. O desamparo, a impotência, o medo. E também os enlutados. Mais de dez mil mortos, são algumas dezenas de milhares de enlutados tendo de elaborar sua perda sem o corpo de um pai, de uma mãe, de um irmão, de um filho. Sem o direito a realizar um enterro digno, se despedir, sem cumprir os ritos daquilo que nos torna humanos. Como será isso? O que acontecerá na psique? É um país inteiro chorando a perda dos seus.

Eu não gosto desse “tutto andrà bene”. Quer dizer, acho válido para crianças. Mas como discurso entre adultos, não. Porque, como podemos ver, as coisas estão andando mal. Negar parece-me obstinar com uma resposta que reitera o otimismo, a produção de conteúdo, a saturação do trauma. É querer seguir a cartilha do capitalismo, que, convenhamos, é desumana. As coisas andam mal e parece-me importante fazer algo desse “mal”, questionar tudo o que nos trouxe aqui, e não substituir os corpos e os abraços por uma hiperconexão para fazer de conta que. Não vai nada bem e talvez devamos ficar. Parar, estacionar, deixar doer, desistir, cair. E tentar um ritmo diferente, um passo novo.

Mas se os acontecimentos daqui me tiram o sono e entristecem, os do Brasil me destroem. Porque a epidemia na China foi detectada quando já estava disseminada. Não havia, ainda, a noção de como o vírus se disseminaria. Nem se imaginava a velocidade do contágio. As pessoas lembravam do H1N1, em que alguns cuidados bastaram para controlá-lo. “Limpe as mãos, não dê abraços e beijos e isso basta”, todos pensavam. Os erros da Itália, a demora na decretação da quarentena, a gente pode entender, porque era algo novo. Mas ver o governo brasileiro deliberadamente tentando levar o país ao colapso na saúde, matando centenas de milhares de pessoas, com o apoio de seus fiéis seguidores, acaba comigo. O exemplo está aqui, o mundo inteiro viu os nossos erros. Não decretar a quarentena e matar milhares de pessoas não será um trágico erro, como foi aqui na Itália, mas sim uma escolha. Uma escolha de um governo que é baseado no ódio, voltado para a destruição. O governo bolsonaro é a pulsão de morte institucionalizada.

Ou o Brasil acaba com o Bolsonaro, ou o Bolsonaro acaba com o Brasil.

Destaque

O SÉCULO XXI PEDE PASSAGEM

O SÉCULO XXI PEDE PASSAGEM
Adhemar Bahadian
Informo o passamento do século XX, os cem anos mais amargos da modernidade. Como ainda está estrebuchando, seria mais certo dizer cento e vinte anos, porque até hoje chegam as pragas que periodicamente o infestaram.
Em 1914, nossos avós viveram a primeira guerra mundial. Em 1944, nossos pais morreram nas terras da Europa. Em 1964, sobrevivemos a uma ditadura militar. A partir dos anos 70, nos intoxicamos com o alucinógeno do neoliberalismo e em 1991 nos embebedamos em homenagem ao fim da história pela fantasia de uma globalidade dividida por profunda desigualdade social.
Agora, quando a história parece repetir-se e desaba sobre nós uma variante ainda mais malévola que a gripe espanhola, carro fúnebre do morticínio da primeira guerra, teremos a oportunidade de nos recriarmos? A história não se repete, os erros humanos é que se multiplicam, quase sempre em torno de nossa incapacidade de construirmos um mundo melhor.
Este coronavirus, queiramos ou não, nos transformará. Não há economia que dele sairá imune. Não há ideologia política que depois dele nos fará reconstruir um mundo carcomido por falácias e desfigurado por uma profunda injustiça entre países e, dentro deles, entre irmãos de sangue. Só o mais obtuso dos seres deixará de perceber que esta virulência do coronavirus nada mais é do que a metáfora de nossa vida dita humana, em que nos entre-devoramos tangidos pelas piores pulsões de nossos instintos e que, por isto mesmo, chamamos pulsão de morte.
Se hoje nos assusta o ataque sub-reptício de um vírus, nos deveriam apavorar as barbaridades dos poderosos deste mundo e suas máquinas de guerra ou de empobrecimento.
Tanto na primeira guerra quanto na segunda tivemos estadistas que nos propuseram mundo mais solidário. Mas tanto as ideias de Wilson e a Liga das Nações quanto o projeto de Roosevelt e as Nações Unidas já nasceram, a primeira, debaixo da insensatez da Paz de Versailles- berço sangrento de Hitler- e a segunda no rastro de fogo e horror de Nagasaqui e Hiroshima.
Terminada a guerra e desmantelados os sistemas coloniais, iniciamos uma corrida armamentista que abarrotou de ouro cofres públicos e privados e o imperialismo econômico substituiu com honras o pacto colonial.
Tivemos o desplante de culpar os escravos por sua condição abjeta. Fomos intolerantes a cor de pele, a religiões que não adoravam os nossos deuses e bestialmente erigimos altares em que se exibem os ricos e se ajoelham os pobres. Criamos a sociedade da intolerância e demos a ela o simpático disfarce de sociedade da abundância. Inscrevemos em moeda falsária, a sacrílega admoestação de que “in God we trust”.
A partir dos anos 60, abatemos a tiros líderes e mergulhamos em guerras que muito antes de nos vencerem talharam em nossos cânticos “de um mundo livre” a marca de ferro em brasa da hipocrisia.
E em 2008 desnudamos nossas mais deslavadas mentiras e apropriamos hipotecas de gente honrada em nome da cobiça e do canibalismo financeiro. Enterramos poupanças em areia movediça e transformamos sonhos em ilusões amargas antes de perdidas. E de tudo fizemos um caldo de cultura cozinhado no ódio e na mais absoluta indiferença à sorte de milhões de irmãos espalhados pelos quatro continentes e, pelos quatro, rejeitados ou expulsos. Jogamos literalmente milhares de irmãos aos ventos e às marés.
Fizemos da cena política um picadeiro. Elegemos, por ignorância ou míseras ideologias, estadistas de papelão, mágicos de oz das terras do faz de conta e nos alegramos com os coliseus modernos em que a violência se confunde com o entretenimento e desta espúria combinação surgem os grandes líderes que nos apontam os caminhos das guerras, da cobiça e do desrespeito.
Nossas cidades se tornaram armadilhas ardilosas e imensos covis. Andamos por elas como se atravessássemos zonas desmilitarizadas ou campos minados em que a cada movimento suspeito pode surgir o aço da lâmina ou o fogo da bala. Perdida ou não.
Voltamos às cavernas e nos olhamos uns aos outros com o olhar da suspeita e da desconfiança. Passiva e bovinamente acatamos os conselhos desavisados de nossos líderes a nos sugerirem comprar armas de grosso calibre e andarmos armados de destemida arrogância.
Somos vítimas de uma combinação canhestra em que a ignorância se associa à ideologia e aprofunda a pobreza e o desnível social, sempre a nos enganar com um canto de sereia marcial.
Nesta hora em que nosso eleito desrespeita cotidianamente a vida e o futuro de nosso povo, agarrado como craca nos cascos de um navio a pique, mais do que revolta, surge nos homens de bem uma profunda vergonha de termos compactuado com a mentira e a ideologia.
Hoje, parte da sociedade brasileira é vítima de sua própria cegueira. De mãos dadas com seu carrasco-redentor caminha impotente para sua hora final. Docilmente, apesar de alertada pelo próprio carrasco de que sua salvação depende apenas de sua determinação em salvar-se.
Talvez nossa efetiva sobrevivência comece no dia em que levarmos a sério esta frase que lhe escapou das pequenas e ainda não cerradas frestas de sanidade.
Tomemos o destino em nossas mãos. E enfrentemos o século XXI com a humildade que ele nos impõe e com a coragem que a vida nos exige.

Carta Aberta de Professores do Instituto de Economia da UFRJ: Impacto Econômico da Covid-19 e Medidas de Combate à Crise Econômica

Carta Aberta de Professores do Instituto de Economia da UFRJ: Impacto Econômico da Covid-19 e Medidas de Combate à Crise Econômica
O mundo está enfrentando uma grave crise econômica provocada pelo avanço da pandemia da Covid-19. Instituições internacionais (FMI, OCDE, UNCTAD, etc.) e economistas renomados estão projetando significativa desaceleração do crescimento mundial, no melhor dos cenários, ou uma recessão global em 2020, em cenários menos otimistas.
As medidas implementadas de isolamento e/ou quarentena para impedir o avanço do vírus nos países mais afetados provocaram a interrupção das atividades normais das pessoas, desmobilizando recursos. Isso impactou negativamente a produção, o consumo corrente e os investimentos. Portanto, a gravidade dos efeitos econômicos da Covid-19 deve-se à sua capacidade de gerar, ao mesmo tempo, choques negativos na oferta e na demanda agregada mundial. Ademais, há uma enorme pressão sobre os recursos (físicos e humanos) na área de saúde com o aumento dos casos de pessoas infectadas, sobretudo no pico da epidemia, o que requer uma espécie de economia de guerra nesse segmento.
Em virtude disso, muitos governos estão adotando medidas para: i) garantir que não haja desabastecimento de bens e insumos básicos, por meio do monitoramento das cadeias de distribuição (transportes e o comércio atacadista e varejista) e, quando necessário, de eventuais intervenções em setores produtores e importações emergenciais; e ii) estimular a economia por meio de políticas monetária, fiscal e creditícia.
A economia brasileira será profundamente afetada por essa conjuntura crítica decorrente do avanço na Covid-19 no país, o que é agravado pela nossa situação prévia de baixo dinamismo e incapacidade para recuperar os níveis de produção anteriores à recessão de 2015-16.
Nesse quadro, que já era preocupante antes de a pandemia se instalar, a resposta do governo brasileiro para enfrentar a crise econômica (plano divulgado no dia 16/03/2020) gera ainda maior preocupação ao não propor nenhum recurso novo, apenas antecipação de recursos ou diferimento de pagamentos. Ademais, o ministro da Economia mantém o discurso de que a melhor resposta para combater a crise econômica seria a aprovação das reformas administrativa e tributária.
As reformas já aprovadas (Emenda Constitucional 95/2016 do “Teto dos gastos”, reformas trabalhista e previdenciária) não foram capazes de proporcionar a retomada do crescimento econômico e, em alguns casos, ampliaram as vulnerabilidades para enfrentar os desafios atuais das crises de saúde e econômica provocadas pela Covid-19.
A EC 95/2016, por exemplo, alterou o cálculo do mínimo constitucional na área de saúde que implicou uma redução de mais de R$ 20 bilhões nos recursos federais que deveriam ter sido utilizados para saúde pública desde 2018. Ademais, somada a um resultado primário rígido, essa emenda constitucional impede a execução de políticas fiscais anticíclicas que permitem, durante a crise, manter o fluxo de renda da população, por meio de instrumentos de transferência de renda e da ampliação de investimentos.
Diante desse quadro, a economia brasileira deverá mergulhar numa recessão em 2020, provocando a ampliação do número de desempregados e da população em situação de extrema pobreza. Segundo estimativas realizadas por Warwick McKibbin & Roshen Fernando (ver The Global Macroeconomic Impacts of COVID-19: Seven Scenarios, CAMA Working Paper, Australian National University, 2020), a economia brasileira deverá perder, em 2020, dois pontos percentuais de crescimento, num cenário mais favorável, e até oito pontos percentuais num cenário mais desfavorável.
A recessão está contratada e pode ter a gravidade de uma depressão caso não sejam utilizados todos os instrumentos disponíveis de política econômica, sobretudo os fiscais, para combater a crise. Em uma economia sob efeito da Covid-19, haverá um esgotamento da capacidade instalada e escassez da mão de obra no setor saúde, combinados a desemprego e falta de produtos e insumos nos outros setores. Nesse contexto, a necessidade de priorizar os objetivos imediatos do país – a luta contra a pandemia e a contenção dos seus efeitos sobre a atividade econômica – em detrimento do equilíbrio fiscal de curto prazo não é uma questão ideológica.
As medidas econômicas anunciadas pelo governo brasileiro são paliativas: suficientes apenas para impedir a ruptura do sistema de crédito sem conseguir estimular a economia, pois o aumento da liquidez deverá ficar empoçado no sistema financeiro. Entretanto, a política de gastos governamentais deveria assumir papel central na reativação econômica e na economia de guerra na área da saúde. Para tanto, são necessários gastos adicionais ao previsto no orçamento para a infraestrutura de combate à doença e coordenação do governo central em virtude da baixa capacidade fiscal dos estados e munícipios.
Pelas razões apontadas, professores do Instituto de Economia, abaixo assinados, consideram ser sua obrigação expressar publicamente sua profunda preocupação com a lenta reação das autoridades econômicas ante a gravidade da crise. Nessa situação, defendemos que o governo e o Congresso brasileiro adotem os seguintes pontos para combater a crise:
1) Ampliação dos benefícios e de programas de transferência de renda para famílias, de trabalhadores formais e informais que perderem ou tiverem sua capacidade de geração de renda diminuída pela crise, em especial para as famílias afetadas pela pandemia com filhos em idade escolar, garantindo que estes possam permanecer junto aos pais.
2) Eliminação da fila do Bolsa Família e reajuste do benefício.
3) Recomposição da verba de saúde em relação aos mínimos constitucionais definidos antes da EC 95/2016 e garantia de recurso extra para ampliação de testes, de leitos e aquisição de equipamentos para emergência.
4) Recomposição das verbas para Ciência e Tecnologia, especialmente para áreas capazes de enfrentar a pandemia, de forma a garantir nossa capacidade de desenvolver medicamentos e vacinas.
5) Alteração das demais regras fiscais vigentes, além do Superávit Primário, como a Regra de Ouro e a suspensão do Teto de Gastos, de forma a se criar um espaço legal para a necessária política de expansão dos gastos públicos.
6) Suspensão de multa, juros e penalização sobre pagamento atrasado de contas dos serviços de utilidade pública.
7) Ajuda fiscal aos estados e municípios, seja por meio de transferências do governo federal, seja pela renegociação de dívida, de forma a permitir aos entes subnacionais elevar seus gastos para fazer frente à emergência médica e seus impactos sociais mais imediatos.
8) Política de expansão de crédito e alongamento de dívidas utilizando os bancos públicos, para socorrer empresas e famílias mais afetadas pela pandemia.

Rio de Janeiro, 17 de março de 2020

1 Adilson de Oliveira
2 Alexandre Laino de Freitas
3 Alexis Nicolas Saludjian
4 Almir Pita
5 Ana Celia Castro
6 Ana Cristina Reif De Paula
7 Andre de Melo Modenesi
8 Angela Ganem
9 Ary Vieira Barradas
10 Bernado Karam
11 Caetano Christophe Rosado Penna
12 Camila Cabral Pires Alves
13 Carlos Aguiar de Medeiros
14 Carlos Eduardo Frickmann Young
15 Carlos Frederico Leão Rocha
16 Carlos Pinkusfeld Bastos
17 Celia de Andrade Lessa Kerstenetzky
18 Daniel de Pinho Barreiros
19 Denise Gentil
20 Edson Peterli Guimarães
21 Eduardo Costa Pinto
22 Eduardo Figueiredo Bastian
23 Ernani Torres
24 Esther Dweck
25 Fabio de Silos Sá Earp
26 Fabio Neves Perácio de Freitas
27 Fernando Carlos Greenhalgh de Cerqueira Lima
28 Galeno Tinoco Ferraz Filho
29 Gustavo Daou Lucas
30 Helder Queiroz Pinto Junior
31 Helena Lastres
32 Isabela Nogueira de Morais
33 Italo Pedrosa Gomes Martins
34 Jaques Kerstenetzky
35 Joao Carlos Ferraz
36 João Felipe Cury Marinho Matias
37 Joao Luiz Maurity Saboia
38 João Luiz Simas Pereira de Souza Pondé
39 Joao Sicsu
40 José Eduardo Cassiolato
41 José Luís Fiori
42 Julia Paranhos de Macedo Pinto
43 Kaio Glauber Vital da Costa
44 Lena Lavinas
45 Leonarda Musumeci
46 Lia Hasenclever
47 Luis Fernando Rodrigues de Paula
48 Luiz Carlos Delorme Prado
49 Luiz Martins de Mello
50 Marcelo Colomer Ferraro
51 Marcelo Gerson Pessoa de Matos
52 Margarita Silvia Olivera
53 Maria da Conceição Tavares
54 Maria Isabel Busato
55 Maria Mello de Malta
56 Maria Silvia Possas
57 Maria Tereza Leopardi Mello
58 Marília Bassetti Marcato
59 Marina Honorio de Souza Szapiro
60 Marta Calmon Lemme
61 Marta dos Reis Castilho
62 Nicholas Miller Trebat
63 Norberto Montani Martins
64 Numa Mazat
65 Paulo Tigre
66 Raphael Padula
67 Renata Lebre Rovere
68 Rene Carvalho
69 Ricardo Alberto Bielschowsky
70 Ricardo de Figueiredo Summa
71 Rodrigo Vergnhanini
72 Rolando Garciga Otero
73 Ronaldo Bicalho
74 Victor Prochnik
75 Wilson Vieira