A OBRA DE TODOS

A OBRA DE TODOS

“Onde, afinal, começam os direitos humanos universais? Em lugares pequenos, perto de casa – tão perto e tão pequenos que não podem ser vistos em qualquer mapa-múndi.

“Ainda assim, esse é o mundo de cada pessoa. A vizinhança onde mora, a escola ou a faculdade que frequenta, a fábrica, a fazenda ou escritório em que trabalha.

“Esses são os lugares onde cada homem, mulher e criança buscam uma justiça igualitária, oportunidades iguais, e dignidade sem discriminação.

“Caso esses direitos não sejam significativos em tais espaços, eles não vão ter significado em lugar algum.

“Sem a ação organizada dos cidadãos para defendê-los próximo a suas casas, nós esperaremos em vão por progressos no mundo como um todo.”

(Eleanor Roosevelt, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, membro da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas)
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10/dez/2018 – 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

DireitosHumanos #Paz #Justiça #Democracia #Liberdade #Humanismo

Por Gabriel Priolli

Estamos indo em direção a um mundo sem direitos humanos? Imogen Foulkes, da BBC News em Genebra

Se o autor desta matéria vivesse no Brasil teria farto material para comprovar que, além de estarmos indo em direção a um mundo sem direitos humanos, estamos indo em direção a um mundo sem humanos.

Prevalece a barbárie e as declarações estúpidas de bestas quadradas em cargo de presidente golpista, governador, ministro e secretário.

A besta ao cubo, que usurpa o cargo de presidente, chefe das bestas quadradas ministros e secretários, chama a chacina de Manaus de “acidente”.

Ao comentar o massacre carcerário em Manaus, o secretário nacional de Juventude do governo Temer, Bruno Júlio (PMDB), diz que “tinha era que matar mais”.

— Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana.

Bruno Júlio é filho do ex-deputado federal Cabo Júlio (PMDB), hoje deputado estadual em Minas. É também presidente licenciado da juventude do PMDB. A briga entre facções criminosas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) deixou 56 mortos, entre os dias 1º e 2.

A jovem besta quadrada deu esta declaração como se estivesse falando as coisas mais inteligentes de sua vida. E, pasmem, ainda tentou fundamentar sua bela demonstração de ignorância com comparações exdrúxulas e argumentos falaciosos. Caracoles. Será que ainda vamos cair mais ou já chegamos ao fundo do poço?

Repito: se vivesse no Brasil, o autor não teria dúvidas … já estamos em um mundo bárbaro.

Paulo Martins

Estamos indo em direção a um mundo sem direitos humanos?
Imogen Foulkes
Da BBC News em Genebra
5 janeiro 2017

Homem contempla a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um dos primeiros documentos publicados pela ONU

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Criados em 1940, princípios de Direitos Humanos tornaram-se leis nas décadas seguintes, mas vem sendo cada vez mais desrespeitados
“Hoje estamos no limiar de um grande evento tanto na existência da ONU quanto da humanidade”. Com estas palavras, a diplomata e ex-primeira-dama americana Eleanor Roosevelt apresentou a Declaração Universal dos Direitos Humanos para a Organização das Nações Unidas.
Era 1948 e os estados-membros da ONU, determinados em impedir que os horrores da Segunda Guerra Mundial se repetissem, estavam cheios de idealismo e aspirações.
A declaração universal prometia, entre outras coisas, o direito à vida, o direito a não ser torturado e o direito de pedir asilo contra a perseguição. Apenas um dia depois de sua ratificação, os países adotaram também a As Convenções de Genebra, uma série de tratados elaborados para proteger civis durante guerras e garantir o direito de equipes médicas trabalharem livremente em zonas de conflito.
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Nas décadas desde 1948, muitos dos princípios da Declaração foram preservados nas leis internacionais, com a convenção de refugiados de 1951 e a proibição absoluta da tortura – a profecia de Roosevelt de que a declaração se tornaria “a carta magna internacional de todos os homens em todos os lugares” parecia estar se cumprindo.
Mas quase 70 anos depois, os ideais dos anos 1940 começam a parecer batidos. Enfrentando ondas de milhares de migrantes e refugiados em suas fronteiras, muitos países europeus parecem relutantes em honrar sua obrigação de oferecer asilo.
Pelo contrário, seus esforços – desde a cerca na Hungria até o debate britânico sobre aceitar ou não algumas dúzias de jovens refugiados afegãos – parecem mais focados em manter as pessoas afastadas.
Do outro lado do Atlântico, o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, fala em sancionar a controversa técnica de interrogatório conhecida como waterboarding, uma simulação de afogamento considerada tortura.
Questionado sobre o tema, ele afirmou: “Eu faria muito pior… Não me diga que a tortura não funciona… acredite em mim, ela funciona”.
Na Síria e no Iêmen, civis são bombardeados ou morrem de fome, e os médicos e hospitais que tentam tratá-los têm sido atacados por todos os lados dos conflitos.
Por isso, funcionários da ONU e de outras organizações de direitos humanos já se perguntam: qual será o futuro desse tipo de acordo internacional?

Donald TrumpImage copyrightDREW ANGERER/GETTY IMAGES

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‘A tortura funciona’, disse o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, durante a campanha
‘Corrida ao fundo do poço’
Em Genebra, onde estão as sedes do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, da Agência de Refugiados da ONU e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, já se fala em um mundo “pós-direitos humanos”.
“Não se pode negar que estamos enfrentando desafios enormes: o retrocesso que vemos no respeito aos direitos na Europa ocidental e possivelmente também nos Estados Unidos”, diz Peggy Hicks, diretora de programas dos Direitos Humanos.
Virando a esquina, na sede da Cruz Vermelha há provas de que esses desafios são reais.
Cientistas encontram fonte de misteriosas ondas de rádio no espaço
Uma pesquisa de opinião realizada durante o verão europeu pela organização mostra uma tolerância maior à tortura. Entre as pessoas entrevistadas, 36% acreditavam que era aceitável torturar combatentes inimigos capturados para obter informações.
Além disso, menos da metade dos entrevistados que pertenciam aos cinco países membros permanentes do conselho de segurança (EUA, Reino Unido, China, Rússia e França) disseram ser errado atacar áreas muito populosas, sabendo que civis seriam mortos.
Mais de 25% deles disseram achar que impedir o acesso de civis a comida, água e remédios é parte inevitável da guerra.
Para o presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer, os dados são preocupantes. “Até na guerra, todos merecem ser tratados de maneira humana”, diz.
“Usar a tortura só dá início a uma corrida até o fundo do poço. Tem um impacto devastador nas vítimas e também brutaliza sociedades inteiras por gerações.”
Peter Maurer, presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha

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Usar tortura em interrogatórios brutaliza sociedade e gera ‘corrida ao fundo do poço’, diz presidente da Cruz Vermelha
Desconexão
Mas quantas pessoas fora da “bolha” de Genebra estão ouvindo?
Peggy Hicks, da ONU, tenta explicar por que as atitudes das pessoas em relação aos direitos humanos podem estar mudando.
“Quando confronto o mal que vemos no mundo de hoje, não me surpreende que as pessoas que não pensaram muito profundamente sobre isso (a tortura) às vezes tenham convicção de que isso pode ser uma boa ideia.”
Mas na Europa e nos Estados Unidos, líderes de opinião tradicionais – desde políticos até funcionários da ONU – têm sido acusados de serem elitistas e desconectados da realidade. Sugerir que algumas pessoas simplesmente não refletiram o suficiente sobre tortura para entender que é errado pode ser parte do problema.
“Eu acho que a comunidade dos direitos humanos – eu mesma incluída – tem o problema de não usar uma linguagem que se conecta com as pessoas num diálogo verdadeiro”, admite Hicks.
“Precisamos fazer melhor, eu realmente acho isso.”
A ideia que ninguém em Genebra parece querer enfrentar, no entanto, é a de que os princípios adotados nos anos 1940 podem simplesmente não ser mais tão relevantes para as pessoas no mundo atual.
Eles parecem pensar que os princípios continuam sendo válidos, só não são respeitados o suficiente.
“Não estamos buscando um mundo de fantasias imaginário”, diz Tammam Aloudat, médico da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF).
“Estamos buscando a manutenção das garantias básicas de proteção e assistência a pessoas afetadas por conflitos.”
Cartaz dos Médicos Sem Fronteiras dizendo:

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Médicos Sem Fronteiras defende que as regras estabelecidas para zonas de guerra sejam obedecidas, garantindo atendimento a feridos
‘Visão imoral’
A preocupação de Aloudat é que a mudança de atitude, especialmente em relação a profissionais de saúde trabalhando em zonas de guerra, acabe com essas garantias básicas.
Recentemente, perguntaram a ele por que a equipe do MSF não diferencia – na hora de atender os feridos – quais são civis e quais podem ser combatentes que, se forem tratados, podem retornar à batalha.
“Isso é absurdo. Qualquer pessoa desarmada merece tratamento… Não temos autoridade moral para julgar suas intenções no futuro.”
Seguindo essa lógica, diz ele, podem acabar exigindo que médicos e outros profissionais de saúde recusem tratamento ou alimentação a crianças de países em conflito, para evitar que elas se tornem combatentes ao crescer.
“É uma visão de mundo ilegal, antiética e imoral”, afirma.
“Aceitar a tortura, a privação de mantimentos, o cerco a cidades e outros crimes de guerra como coisas inevitáveis – ou mesmo ‘ok’, caso elas resolvam o conflito rapidamente – é horripilante. Eu não gostaria de estar em um mundo em que essa fosse a regra.”
Peggy Hicks, por sua vez, alerta para o excesso de críticas às leis atuais de direitos humanos sem que haja alternativas genuínas a elas.
“Quando buscamos alternativas, não há nenhuma. Mesmo que o sistema atual tenha problemas, se você não tem nada para substitui-lo, é melhor ter cuidado ao tentar destrui-lo.”

IMPACTO DAS CRISES SANITÁRIAS INTERNACIONAIS SOBRE OS DIREITOS DOS MIGRANTES

Compartilho artigo de Deisy Ventura publicado na edição de julho/2016 da Revista Internacional de Direitos Humanos (sur.conectas.org).

DOSSIÊ SUR SOBRE MIGRAÇÃO E DIREITOS HUMANOS
IMPACTO DAS CRISES SANITÁRIAS INTERNACIONAIS SOBRE OS DIREITOS DOS MIGRANTES
Deisy Ventura

Fantasma do “estrangeiro que traz a doença” justifica medidas que restringem as migrações internacionais e fomenta violações de direitos humanos

RESUMO
O artigo oferece um panorama do impacto das crises sanitárias sobre os direitos dos migrantes. Demonstra que a repercussão da crise do Ebola sobre a mobilidade humana não é uma novidade: a associação entre o estrangeiro e a doença acompanha a história das epidemias e faz parte do processo de construção das identidades nacionais no Ocidente, mantendo na contemporaneidade o potencial de induzir ou justificar violações de direitos humanos. A seguir, sustenta que as restrições às migrações internacionais adotadas durante a crise do Ebola são ilícitas à luz do direito internacional da saúde, além de contraproducentes no combate à epidemia. Ademais, considera a abordagem securitária das migrações internacionais e da saúde como o germe de uma espécie de utopia totalitária, ao difundir a ilusão de que apenas os sistemas de vigilância são capazes de evitar a propagação internacional das doenças, sem que o direito à saúde seja assegurado em todas as regiões do mundo. Por fim, convida o leitor a refletir sobre a interface entre crise sanitária e migrações internacionais sob o prisma dos embates que animam o campo da saúde global.‬

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Em 2014, no auge da epidemia de Ebola na África Ocidental, diversos países, entre eles Austrália e Canadá, restringiram o ingresso em seu território de pessoas provenientes dos países mais afetados pela doença (Guiné, Libéria e Serra Leoa).1 Grandes companhias aéreas, como British Airways e Emirates Airlines, suspenderam total ou parcialmente seus vôos em direção à região mais atingida.2 Desprovidas de justificativas científicas ou de saúde pública plausíveis, essas medidas ignoraram a determinação categórica da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que não deveria haver restrição de deslocamentos, exceto para portadores da doença e seus contatos diretos, entre outras razões porque ela obstaculizaria a chegada de socorro aos países mais atingidos.3 Países contíguos ao epicentro da crise fecharam suas fronteiras terrestres. No caso da Costa do Marfim, por exemplo, essa medida impediu o repatriamento de milhares de refugiados marfinenses que se encontravam na Libéria.4

Além da restrição da mobilidade humana, a crise do Ebola causou também o recrudescimento da discriminação de migrantes negros, inclusive os oriundos de regiões em que a doença não existia, a exemplo do que ocorreu com os haitianos no Brasil.5 No mesmo sentido, foi denunciada a adoção de medidas discriminatórias em relação aos profissionais de saúde que haviam trabalhado na África Ocidental quando de seu retorno aos respectivos países de origem, como a Espanha, os Estados Unidos e o Reino Unido.6 A privacidade de pacientes ou de casos suspeitos, inclusive migrantes ou refugiados, foi em muitos casos exposta desnecessariamente.7

O presente artigo busca identificar, de forma geral e breve, o impacto das crises sanitárias sobre os direitos dos migrantes. Em sua primeira seção, demonstra que a repercussão da crise do Ebola sobre a mobilidade humana não é uma novidade: a associação entre o estrangeiro e a doença acompanha a história das epidemias e faz parte do processo de construção das identidades nacionais no Ocidente, mantendo na atualidade o seu potencial de induzir ou justificar violações de direitos humanos. A segunda seção demonstra que as restrições às migrações internacionais adotadas durante a crise do Ebola são ilícitas à luz do direito internacional da saúde, além de contraproducentes no combate à epidemia. A seguir, a terceira seção pondera que o fortalecimento da abordagem securitária das migrações internacionais e da saúde está construindo uma espécie de utopia totalitária, ao propagar a ilusão de que os sistemas de vigilância são suficientes para evitar a propagação internacional das doenças. Por fim, a conclusão convida o leitor a refletir sobre a interface entre crise sanitária e migrações internacionais sob o prisma dos embates que animam o campo da saúde global.

02O estrangeiro e a doença
Em seus estudos sobre a história do medo no Ocidente entre os séculos XIV e XVIII, Jean Delumeau elabora uma tipologia dos comportamentos coletivos em tempos de peste negra, concluindo que, diante da epidemia, o impulso primeiro e natural, tanto no plano individual como no coletivo, é o de nomear os culpados, como forma de tornar compreensível o que parece inexplicável. Assim,

os culpados potenciais, contra quem a agressividade coletiva pode se voltar, são em primeiro lugar os estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não são bem integrados a uma comunidade, seja porque eles não querem aceitar suas crenças – caso dos Judeus –, seja porque foi preciso jogá-los à periferia do grupo por evidentes razões – como os leprosos –, seja simplesmente porque eles vêm de alhures e a esse título são em alguma medida suspeitos.8

A desqualificação do estrangeiro em geral baseia-se na “síntese grosseira de informações incompletas” que forja tipos coletivos “ingenuamente esquemáticos”, capazes de “assombrar a imaginação popular”.9 Na Idade Média, um campo particular da xenofobia (aversão ao estrangeiro) fundado em razões culturais e políticas, fez com que a desqualificação de sarracenos ou bizantinos contribuísse para construir a identidade dos ocidentais em oposição aos “orientais”, e mais adiante a desqualificação de ibéricos e italianos contribuísse para salientar a diferença entre regimes políticos, como parte da idealização das figuras do homem ocidental e da monarquia francesa.10 Assim, ao longo da história, os exemplos de fundamentos identitários da repulsa aos estrangeiros corrobora a ideia de que “não existe estrangeiro em si; só se é estrangeiro diante de uma norma, de uma cultura, uma civilização. Em resumo, o estrangeiro só existe na sua relação com o outro”.11

Essa brevíssima remissão histórica corrobora a ideia contemporânea de que qualquer “cálculo racional” que se procure fazer a respeito do risco de contrair uma doença deverá fazer frente a um imaginário tecido por representações,12 incluindo tanto os fantasmas populares do imigrante como vetor das doenças como o discurso de especialistas que apontam as consequências epidemiológicas das migrações populacionais.13 Marco da história da saúde global, a epidemia de HIV/Aids que irrompeu nos anos 1980 fez renascer os medos arcaicos das grandes epidemias como a peste e a sífilis e, com eles, os meios mais repressivos de proteção, visando em primeiro lugar às populações mais estigmatizadas, como os homossexuais, os usuário de drogas, as prostitutas e os estrangeiros.14 Em um estudo sobre a resposta ao HIV/Aids na China, Évelyne Micollier revela que a “construção social da doença”, em especial nas campanhas de prevenção, articulou-se em torno da noção de “estrangeiro” que traz o risco de contaminação, na qual os chineses incluíam não somente os nacionais de outros Estados mas igualmente os chineses que não são da etnia Han.15

No Ocidente, nasceu o mito acusador de que os haitianos seriam os responsáveis pela origem e pela extensão da epidemia de HIV/Aids nos Estados Unidos, alimentado pela teoria dos grupos de risco conhecida como dos 4H (hemofílicos, haitianos, homossexuais e heroinômanos).16 Em uma obra fundamental sobre o tema, Paul Farmer demonstra que esse mito acusador constitui um processo de “responsabilização étnica” pelo qual se “acusa as vítimas”, que só pode ser compreendido tendo em conta as relações de dominação política, social e econômica entre o Haiti e os Estados Unidos.17 Não obstante, diversos episódios denotam a força desse amálgama. Em 1993, o Senado proibiu a imigração de portadores de HIV/Aids, com o apoio de 71% da população norteamericana, como resposta direta aos 219 refugiados políticos haitianos portadores de HIV/Aids que aguardavam na base naval de Guantanamo Bay (Cuba), há cerca de um ano, a autorização para entrar nos Estados Unidos.18
David Kracht
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Passando ao Brasil contemporâneo, um estudo de caso sobre a migração haitiana em Tabatinga (Amazonas), revela que “a saúde foi sem dúvida o principal cristalizador do medo que os migrantes haitianos inspiraram na população local”, alimentado pela representação, promovida principalmente por vereadores e pela mídia local, de que uma migração “incontrolada e perigosa” traria grandes riscos sanitários.19 Todavia, os autores constataram que tamanho alarmismo contrastava com a realidade, pois a equipe da ONG Médicos sem Fronteiras que avaliou o estado geral de saúde dos migrantes considerou que não diferia do quadro geral da população local.

A repercussão da crise internacional do Ebola no Brasil, ainda que não se tenha registrado nenhum caso da doença, alimentou esse medo. É preciso compreender que a doença não é o evento que suscita a representação estigmatizadora do estrangeiro: ao contrário, ela vem a preencher um espaço de desqualificação pré-existente.20 É o que revela o estudo da cobertura jornalística da crise do Ebola no Brasil, que constatou o reforço da ideia de que a África é um lugar de risco para a saúde e de que os africanos são agentes disseminadores do Ebola, promovendo construindo “a africanidade como um fator de risco à saúde”.21

Entretanto, a abordagem que as mídias brasileiras fizeram da crise do Ebola não é uma exceção, e sim a regra. Os sete casos de Ebola notificados no Ocidente (quatro nos Estados Unidos e casos individuais na Espanha, na Itália e no Reino Unido), entre os quais apenas um óbito, tiveram repercussão vertiginosamente maior do que os milhares de casos e de óbitos ocorridos na Guiné, na Libéria e em Serra Leoa –22 totalizando 28.616 casos confirmados, prováveis ou suspeitos, e os 11.310 óbitos notificados à OMS até 5 de maio de 2016.23 Até que a OMS a declarasse uma Emergência Pública de Importância Internacional, em agosto de 2014,24 os surtos da doença ocorridos na África desde os anos 1970 haviam merecido escassa atenção. Por mais perigoso que possa ser, o vírus que não gera um mercado significativo, como foi o caso do Ebola, tende a permanecer negligenciado, o que explica a ausência de tratamentos e vacinas quando da eclosão da epidemia. Porém, “o mercado emerge quando o vírus sai de um país onde o Ocidente gostaria muito que ele ficasse”.25

Os determinantes econômicos da percepção da gravidade de uma doença corroboram, de certa forma, a ideia de que “a saúde significa ter as mesmas doenças que os nossos vizinhos”.26 Tal percepção parece ter se refletido na reação de uma parte da classe política e das mídias dos Estados Unidos que foi contrária ao repatriamento de profissionais de saúde norte-americanos que atuaram no combate à epidemia de Ebola, durante o auge da crise. Provavelmente a desqualificação prévia desses profissionais correspondia ao fato de “terem estado onde não deveriam estar”, isto é, não comungarem de uma indiferença essencial à saúde da maioria da população mundial para que as imensas distorções da atual governança da saúde global sejam mantidas.27 Assim, em plena campanha para as eleições de meio-mandato,28 houve uma instrumentalização política da crise sanitária nos Estados Unidos.29 O republicano Donald Trump atacou duramente o governo Obama, sustentando que pessoas infectadas por Ebola não deveriam ser repatriadas pois, embora seja fantástico prestar ajuda em lugares distantes, elas deveriam assumir as consequências de seus atos.30

A seguinte série de charges de Patrick Chappatte, cujos direitos de uso foram gratuitamente cedidos para a presente publicação, é de grande valia para compreender alguns elementos da complexa repercussão do Ebola no Ocidente.

Figura 1 – Lidando com Ebola31

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Figure1 Tradução: Você está sob quarentena…para seu próprio bem.

Figura 2 – Poderia ser Ebola? 32

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Figure2 Tradução: Suor, náusea, tremores, ele tem todos os sintomas. De ter assistido o noticiário recentemente.

Figura 3 – O boletim sobre Ebola do Centro de Controle de Doenças (CDC na sigla em inglês)33

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Figure3 Tradução: Ebola pode ser transmitido por fluidos corporais, sangue, gafes e equívocos.

MFigura 4 – O ano para Ebola 34

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Figure4 Tradução: Marco de 2014 a 2015: Primeiros alertas, um americano fica doente, medo, pânico, casamento do George Clooney, sonda aterriza em cometa.

Em síntese, uma doença negligenciada como foi o Ebola, que no epicentro da epidemia mereceu uma resposta internacional unanimemente considerada como deficiente,35 paradoxalmente passou a ser exacerbada fora de seu epicentro por uma narrativa que imbricava as noções de segurança e crise, sustentadas por um espetáculo político e midiático.36 No entanto, o potencial impacto dessa encenação sobre os direitos humanos alcançou o Poder Judiciário. Merece especial atenção a sentença que considerou lícitas as restrições inusitadas, impostas pelo governo do Estado do Maine a uma enfermeira norte-americana repatriada da África Ocidental, entre elas a determinação de guardar distância de um metro em relação a outras pessoas.37 Embora reconheça a ausência de base científica para sua decisão, o juiz a fundamenta no reconhecimento de que as pessoas têm medo e que, seja ele racional ou não, este medo é “presente e real”.

04Restrições ilícitas à mobilidade humana
Durante a crise do Ebola, pressionados pela vertiginosa disseminação do pânico, mais de 40 Estados desrespeitaram as recomendações da OMS sobre o tráfego de pessoas e o comércio; poucos países notificaram a OMS a respeito das medidas adotadas, e alguns deles, quando questionados a respeito, sequer responderam à organização.38 Isto levou David Fidler a identificar uma outra epidemia: a de descumprimento de normas, em especial do Regulamento Sanitário Internacional (RSI).39 Vigente em 196 países, o RSI estipula que a prevenção e a resposta à propagação internacional de doenças será feita de maneira proporcional, evitando interferências desnecessárias na circulação de pessoas e mercadorias (artigo 2º), garantido o “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas” (artigo 3º).40 Em virtude do artigo 42 do mesmo Regulamento, qualquer medida deveria ser adotada de maneira transparente e não discriminatória.

Na avaliação de Khalid Koser,41 as restrições de viagens podem ser mais prejudiciais do que os problemas que pretendem resolver, por ao menos três razões. Em primeiro lugar, a experiência das crises sanitárias precedentes revela que elas raramente resultam em incremento da mobilidade humana; quando isto ocorre, os deslocamentos tendem a ser internos, para longe do epicentro do surto, e temporários, até que possam ter informações mais precisas sobre a doença. Em segundo lugar, as restrições são ineficazes diante da atual dinâmica de transmissão das doenças infectocontagiosas, que podem ser disseminadas em todo o mundo em poucos dias, diante da vertiginosa velocidade do tráfego de pessoas e do comércio internacional. Por essa razão, o RSI concentra-se em medidas de saúde pública para controle de vetores nos pontos de entrada por via aérea, marítima ou terrestre, além da ativação dos canais de comunicação entre os Estados, e não na restrição da circulação de pessoas. Por fim, as restrições de viagens e a imposição de medidas de isolamento quando do retorno, prejudica o fluxo de pessoal da saúde para as regiões mais atingidas justamente quando ele é mais necessário, afetando ainda o fornecimento de material médico e de assistência humanitária. De modo mais amplo, há prejuízo significativo para a economia da região afetada, interrompendo os fluxos comerciais, e igualmente prejuízo da capacidade dos governos para gerir a crise.

Cabe acrescentar a esse diagnóstico que a limitação do ingresso regular nos países de destino favorece a migração em situação irregular, esta sim capaz de favorecer a propagação de doenças pela absoluta ausência de controle de sua presença em determinado território. Ademais, o ambiente de rechaço à presença de pessoas de uma dada origem pode levá-las a não buscar tratamento, por temor a medidas que tenham impacto sobre sua situação migratória.

Uma comissão de especialistas independentes sugeriu que, diante da experiência da crise do Ebola, a OMS deveria ser dotada do poder de sancionar os Estados que não cumprissem suas regras, eis que restrições indevidas causam graves prejuízos sociais, econômicos e políticos aos países mais atingidos.42 Em oposição a essa sugestão, porém, argumentou-se que as graves falhas da OMS na resposta ao Ebola teriam encorajado os Estados a ignorar as recomendações da organização, como se o cumprimento do RSI fosse uma “barganha política” na qual os Estados só poderiam ser cobrados se a própria OMS e os Estados mais atingidos não tivessem falhado em relação às suas próprias obrigações.43 De todo modo, o fato de que países como a Austrália e o Canadá tenham adotado restrições impunemente revela que os países desenvolvidos possuem capital político suficiente para não cumprir suas obrigações.44 45

Por outro lado, a eventual capacidade de impor sanções não resolveria o maior obstáculo ao cumprimento do RSI, que é a incapacidade de numerosos Estados, inclusive os países mais atingidos pela crise, de cumprir as obrigações assumidas por meio do Regulamento, devido às suas limitações econômicas e políticas.46 É preciso reconhecer que a plena aplicação do RSI nos países da África Ocidental, por exigir melhora significativa das políticas e dos serviços de saúde que são indispensáveis a uma vida digna, teria sido muito mais efetiva em matéria de enfrentamento das causas de uma parte significativa das migrações internacionais do que as restrições da circulação de pessoas adotadas durante a crise do Ebola.47
Theen Moy
05Uma utopia totalitária em construção
Em setembro de 2014, destituindo a OMS de sua função de coordenadora da ação internacional no campo da saúde, o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) criou a primeira missão sanitária de urgência da história, a Missão das Nações Unidas para a Ação de Urgência Contra o Ebola (MINAUCE),48 com o beneplácito do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral. A epidemia de Ebola foi então considerada uma ameaça à paz e à segurança mundiais. Desde então, prospera o enfoque de que a resposta internacional às crises sanitárias, a partir das “lições do Ebola”, seja pautada sob a perspectiva da “segurança global da saúde”.49 Contudo, combater a propagação internacional das epidemias pela via do fortalecimento dos sistemas de vigilância e, quando necessária a resposta internacional, de missões da ONU focadas na contenção e na militarização, parece constituir uma espécie de utopia totalitária.

Totalitária, em primeiro lugar, porque justifica regimes jurídicos de exceção (tais como as chamadas leis anti-Ebola adotadas nos países mais atingidos pela epidemia) que erodem a democracia e o Estado de Direito, além de patrocinar violações de direitos humanos que excedem largamente as limitações do exercício das liberdades que poderiam ser exigíveis para evitar a propagação das doenças (como é o caso do fechamento de fronteiras, reais ou políticas).

É totalitária, ainda, porque ao negligenciar graves problemas de saúde em escala mundial – tais como a malária, a tuberculose, a saúde da mulher e dos indígenas, entre tantos outros – para privilegiar a doutrina da segurança da saúde global e o combate a doenças construídas socialmente como mais perigosas, a resposta internacional que foi dada à crise do Ebola contribui para aprofundar as desigualdades no plano mundial.

Em segundo lugar, trata-se de uma utopia. Sem adentrar o vasto debate sobre o seu conceito, essa expressão é aqui referida simplesmente como “representação fantasmática de uma sociedade necessária e impossível”.50 A estratégia de contenção de doenças por isolamento do território está fadada ao fracasso. Por maiores que sejam os investimentos em recursos humanos e financeiros para vigilância, toda a barreira física pode ser potencialmente rompida. Do mesmo modo, a estratégia da “bala mágica” – 51 a busca de tratamentos e vacinas que buscam a eliminação da doença sem enfrentar os determinantes sociais que, a depender do caso, potencializam tanto sua origem como o alcance de sua propagação – é impotente diante da constante mutação dos agentes causadores das doenças infectocontagiosas.

Uma vasta literatura demonstra a complexidade da origem das epidemias. As mudanças de equilíbrio entre o homem e a fauna selvagem, as modificações dos ecossistemas e o aumento das trocas entre zonas rurais e urbanas, assim como as trocas internacionais, são fatores que contribuem à emergência de novas doenças. Logo, as conexões entre as esferas ecológica, epidemiológica e sócio-econômica são indispensáveis: é preciso abordar a doença e as epidemias sob um prisma ecológico integrado, tendo o homem como elemento indissociável de um sistema complexo e interativo.52

Por tudo isto, ainda que possa ser adotada excepcionalmente de forma legítima pelas autoridades sanitárias (e não outras), com embasamento científico e procurando reduzir o seu impacto negativo sobre os direitos humanos,53 a restrição da mobilidade humana está longe de constituir uma resposta eficaz à propagação internacional de doenças. Restaria, à guisa de conclusão, questionar: qual seria essa resposta?

06Conclusão
Não há dúvidas de que os riscos da circulação de pessoas seriam radicalmente reduzidos se os Estados enfrentassem prioritariamente as causas da persistência e/ou da rápida propagação das doenças, tornando-se capazes tanto de prevenir como de oferecer respostas nacionais consistentes aos surtos quando eles são declarados.

Neste sentido, os recursos provenientes da cooperação internacional deveriam ter como prioridade não apenas os sistemas internacionais de vigilância ou os programas de combate a doenças específicas. São sobretudo os sistemas nacionais de saúde, de acesso universal e gratuito, que exigem massivos recursos para prevenção e atenção básica à saúde, em infra-estruturas sanitárias e no recrutamento de profissionais de saúde bem formados, de carreira estável e bem remunerada.54

Para falar a sério sobre a segurança da saúde global, e não sobre a segurança específica de alguns Estados desenvolvidos, não se pode deixar de mencionar outros fatores decisivos, como: a mudança urgente e profunda da regulação da produção de alimentos e de medicamentos, capaz de submeter estas indústrias aos imperativos do fortalecimento das normas e das políticas de saúde pública; a restrição absoluta da fabricação e da comercialização de armas que viabilizam os conflitos armados em curso, responsáveis por grande parte da desolação do Estado de Direito e via de consequência dos sistemas de saúde dos países mais pobres, como foi o caso da Libéria e de Serra Leoa; além da ação internacional prioritária em relação aos determinantes sociais da saúde, especialmente saneamento básico, alimentação, moradia e educação.

Logo, a dicotomia que caracteriza a interface entre migrações internacionais e saúde – de um lado, a representação do migrante como uma “ameaça” à saúde, e de outro lado, o reconhecimento da vulnerabilidade da saúde do migrante, amiúde exposto a difíceis condições de trabalho com limitado acesso a direitos e políticas inclusivas – 55 precisa ser superada com urgência. A abordagem internacional da saúde do migrante e do refugiado deve ser pautada pelos embates que estão em jogo na formulação de políticas migratórias nacionais e regionais, mas igualmente nas grandes disputas que se travam no campo da saúde global,56 em especial no que atine às desigualdades que hoje tornam impossível para milhões de pessoas ter uma vida digna no lugar em que nasceram.
Deisy Ventura – Brasil
Deisy Ventura é professora do Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Publicou, entre outros livros, Direito Global – o caso da pandemia de gripe AH1N1 (São Paulo: Expressão Popular/Dobra Editorial, 2013). Desde 2009, atua em projetos de extensão universitária relacionados aos direitos dos migrantes na cidade de São Paulo (SP). Participou da Comissão de Especialistas criada pelo Ministério da Justiça do Brasil que apresentou o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, em 2014.

contato: deisy.ventura@usp.br

Recebido em maio de 2016

Original em português.

Amnésia Seletiva: Quem Esquece, Repete os Erros

Como observador interessado, sexagenário, estou muito preocupado com os cidadãos, de todas as idades, que irão tocar o barco daqui para a frente e construir este país.

Com pessoas que se digladiam para aumentar sua fatia do bolo, passando por cima dos outros, mesmo sem terem apetite ou fome, podemos construir uma bela pátria sonegadora, mas não vai dar para construir um país digno.

As nações enriquecem quando as memórias e os aprendizados – não só as técnicas, as tecnologias e os modos de produzir, mas os conhecimentos e os aprendizados humanos – são passados e absorvidos pelas novas gerações como importante legado.

O século XX foi um dos mais violentos da história da humanidade. As mazelas do século XX parecem ter sido herdadas pelo século XXI. Infelizmente, o colchão civilizatório que permitia uma certa redução dos danos e sofrimentos no século XX está sendo jogado no lixo neste século.

A humanidade saiu horrorizada da Segunda Grande Guerra Mundial e criou mecanismos para minorar o sofrimento. Entre estes, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Hoje, o sentimento que ajudou a desenhar aquele novo arranjo de convivência entre os seres humanos, está ausente. As guerras e a violência tornaram-se lugares comuns.

O egoísmo e o individualismo tornaram-se o novo normal.

Os novos oráculos, regiamente pagos pela grande mídia, em ataque de amnésia seletiva, pregam como remédio único, como panaceia para todos os males do mundo, a política econômica neoliberal.

Ora, a capitulação ao mercado e ao consumismo levou a enormes desequilíbrios na economia, no meio-ambiente e a aumentos nos níveis de desigualdade de renda.

Mistificam quando não explicam que a política econômica neoclássica requer, para retomar o equilíbrio, níveis brutais de redução de salários e o desemprego. O equilíbrio, prometido para algum lugar no futuro distante, nunca chega.

Os tratados de paz assinados após as grandes guerras mundiais foram esquecidos.

Eric Hobsbawn, em seu livro de 1994, Era dos Extremos – O breve século XX – 1914 – 1991, publicou as opiniões de doze pessoas sobre o século XX. Selecionei algumas destas opiniões e as transcrevo abaixo:

Isaiah Berlin (filósofo, Grã-Bretanha): “Vivi a maior parte do século XX, devo acrescentar que não sofri provações pessoais. Lembro-o apenas como o século mais terrível da história”.

Rita Levi Montalcini (Prêmio Nobel, ciência, Itália): “Apesar de tudo, neste século houve revoluções para melhor […] o surgimento do Quarto Estado e a emergência da mulher, após séculos de repressão”.

Yehudi Menuhin (músico, Grã-Bretanha): ” Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais”.

Leo Valiani (historiador, Itália): “Nosso século demonstra que a vitória dos ideais de justiça e igualdade é sempre efêmera, mas também que, se conseguimos manter a liberdade, sempre é possível recomeçar […] Não há por que desesperar, mesmo nas situações mais desesperadas”.

Para Hobsbawn, “a destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes do que nunca no fim do segundo milênio”.

Passaram-se 20 anos desde que Hobsbawn observou esta mazela. Hoje, em 2015, tenho a sensação de que a situação está ainda mais grave: além da destruição do passado, aparece a amnésia seletiva e a volta das velhas ideias como se fossem remédios novos.

Posição da Anistia Internacional do Brasil sobre penas de morte

15 de janeiro de 2015 | Pena de morte
A Anistia Internacional é contra a pena de morte em qualquer circunstância e repudia veementemente a decisão do governo indonésio em executar Marco Archer, condenado à morte em 2004 por tráfico de drogas. A sentença está marcada para ser cumprida neste fim de semana e ele corre o risco de ser o primeiro brasileiro executado por um governo estrangeiro. Além dele, outro brasileiro, Rodrigo Gularte, também espera no corredor da morte indonésio e pode ser morto nas próximas semanas.

“A pena de morte é um atentado contra a vida que desumaniza a justiça e brutaliza o Estado. É inaceitável em qualquer circunstância e mais chocante quando aplicada a alguém que não cometeu crime violento”, afirma Atila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional Brasil.

A pena de morte é uma violação aos direitos humanos, atentando contra princípios básicos de dignidade, como o direito à vida, e é a punição mais cruel, desumana e degradante. Desde 2007, a ONU advoga pela moratória global em execuções.

O governo brasileiro tem agido com firmeza na defesa de Archer e Gularte, contribuindo dessa forma não só para a defesa de dois de seus cidadãos, mas para a campanha internacional para abolir a pena de morte. O Brasil ratificou dois tratados internacionais que a proíbem em tempos de paz – protocolos adicionais ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana de Direitos Humanos.

“Apoiar a pena de morte é estar no lado errado da história. Só 10% dos países recorrem a execuções e a tendência é decrescente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. É inaceitável que o governo da Indonésia manipule a vida de dois brasileiros para fins de propaganda de sua política de segurança pública”, diz Roque.

Em ocasiões semelhantes no passado, as autoridades da Indonésia comutaram as sentenças, entendendo que há outras formas de aplicar a lei, sem violar direitos humanos. “Instamos o presidente da Indonésia, Joko Widodo, a seguir o exemplo de seus antecessores e cancelar a execução de Archer e dos outros condenados à morte”, finaliza Roque.

Nota: A Anistia Internacional vai lançar hoje (15) uma Ação Urgente para todas as suas seções pedindo que pressionem o governo Indonésio a não levar adiante as execuções agendadas para este fim de semana – além do brasileiro, mais cinco pessoas serão executadas. A ação urgente é uma ferramenta que permite que seções de todos os países onde a Anistia Internacional está presente se mobilizem através de seus ativistas para pressionar diretamente representantes dos governos através de e-mails, cartas e telefonemas.

A Universalidade dos Deveres Humanos – Dalmo de Abreu Dallari

A universalização dos direitos humanos é um ideal da humanidade, ou seja, que o reconhecimento e a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana sejam efetivamente incorporados a todos os sistemas políticos e jurídicos do mundo e se apliquem a todos os seres humanos, sem qualquer exceção. Esse ideal está expresso na própria denominação da proclamação aprovada pela Organização das Nações Unidas, a ONU, em 1948 : «Declaração Universal dos Direitos Humanos».

Ao aprovar essa declaração, a ONU estava reconhecendo e afirmando que a universalidade dos direitos humanos é um pressuposto para a implantação da Justiça nas relações humanas. Uma rápida retrospectiva da conscientização da importância fundamental dos direitos humanos e de sua efetiva implantação revela que a própria concepção dos direitos fundamentais evoluiu e vem exercendo influência, gradativamente, sobre os sistemas políticos e jurídicos de todo o mundo que reconhecem os direitos fundamentais da pessoa humana e procuram dar-lhes efetividade.

No ano de 1215, na Inglaterra, os barões, membros da nobreza e grandes proprietários, vítimas de arbitrariedades impostas pelo rei, aprovaram um documento que foi denominado Magna Carta, no qual se proclamava que «nenhum homem livre será preso ou despojado de seus bens, ou exilado, sem um julgamento leal de seus pares, conforme a lei do país». Houve evolução, e na própria Inglaterra, no ano de 1689, o Parlamento aprovou uma lei que, por seu conteúdo, foi denominada Bill of rights.

O século 18 foi, por um conjunto de circunstâncias, um verdadeiro marco nesse avanço. No ano de 1776 as colônias inglesas da América do Norte declararam-se independentes e se uniram para a defesa da liberdade. Já no documento de Declaração de Independência há uma afirmação de direitos, o que seria reafirmado e ganharia muita força jurídica com a invenção da Constituição, em 1787, e seria muito ampliado com a aprovação das dez primeiras emendas à Constituição, em 1791, sendo muito expressivo o fato de que, por seu conteúdo, esse conjunto de emendas constitucionais recebeu a denominação de «Bill of rights», lembrando a inspiração no precedente inglês. Nesse mesmo momento histórico ocorreu a Revolução Francesa, que levaria à aprovação, em 1787, da «Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão». Nesse documento se proclama que «são direitos naturais e imprescritíveis do homem a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão».

A par dessas referências aos direitos fundamentais, a Declaração francesa introduz as ideias de dever e responsabilidade, dando à sociedade o direito de exigir prestação de contas dos governantes e estipulando, no artigo 4, a seguinte norma : A liberdade consiste em fazer tudo o que não prejudique os outros. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limitações, a não ser aquelas que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos». Houve aí um avanço altamente significativo no sentido da afirmação dos direitos fundamentais da pessoa humana e do dever de respeitá-los. Entretanto, embora a Revolução Francesa adotasse o lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade, a desigualdade foi estipulada como regra em muitas situações. Com efeito, quando estabeleceram que o governo da sociedade seria o governo da lei, sendo esta igual para todos, dispuseram que a lei seria feita pelos «delegados dos cidadãos ativos», conceito que só incluía os homens ricos.

O grande avanço, no sentido da universalização dos direitos humanos e da fixação dos deveres e das responsabilidades quanto ao respeito a esses direitos e à busca de sua efetivação, foi dado pela aprovação da «Declaração Universal dos Direitos Humanos» pela ONU, em 1948. Visando justamente essa universalização, com a superação das concepções discriminatórias e restritivas até aí utilizadas, a Declaração Universal proclama que «todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, acrescentando que o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana é dever de todos, sem distinção de raça, de sexo, de língua ou de religião. Tanto os direitos fundamentais quanto o dever de respeitá-los são iguais para todos, sem admitir qualquer espécie de privilégio. Tudo isso vem ganhando expressão prática em situações e ocorrências da atualidade, pois várias situações concretas demonstram que já não subsistem alguns privilégios tradicionais, que isentavam de responsabilidade as pessoas detentoras de certos qualificativos. Entre tais situações é muito significativo o que vem ocorrendo na Espanha. A Princesa Cristina, irmã do atual rei da Espanha e, por essa condição, herdeira presuntiva da Coroa espanhola , está sendo processada criminalmente, porque, na condição de sócia de seu marido, participou da prática de atos criminosos, como a lavagem de dinheiro, a simulação de transações econômicas e financeiras e outras operações delituosas. Um dado importante é que a denúncia da princesa e seu enquadramento em ações penais são fatos públicos, sem que haja qualquer interferência do rei, de alguma autoridade pública ou de pessoas prestigiosas para protegê-la e garantir-lhe um tratamento privilegiado.

Essa igualdade de todos em direitos e responsabilidade, que é um dos aspectos da universalização dos direitos humanos, vem sendo registrada ultimamente no Brasil. Pessoas que ocuparam ou ocupam altos cargos no governo ou na administração pública, parlamentares que exerceram ou exercem mandatos nas casas legislativas, assim como “povo brasileiro”. Tudo isso leva a uma importante conclusão: como um complemente necessário da universalização dos direitos humanos está ocorrendo a universalização dos deveres e das responsabilidades em relação a esses direitos. É um ganho fundamental para toda a humanidade, que fica mais próxima da perspectiva de uma sociedade justa, na qual todos serão efetivamente iguais em direitos e dignidade, assim como em deveres e responsabilidades.

*Dalmo de Abreu Dallari é jurista. – dallari@noos.fr, sdallari@uol.com.br

Publicado no Jornal do Brasil on line

http://www.jb.com.br