Não nos resta muito, por Fernando Horta .

Não nos resta muito, por Fernando Horta .

O fascismo é sempre libertado pelos liberais. Quem detém as chaves das instituições que guardam as liberdades individuais e o “status quo” são eles. As instituições têm o poder de afastar o fascismo, mas – como afirmava Marx – o homem é construído pelas relações materiais que experimenta. Isto quer dizer que a ideologia de classe é parte constitutiva de cada sujeito. A gente vê o mundo pela janela do nosso quarto. O mundo que se vê, a disposição de olhar, o tempo para tal, as cores e os entendimentos, dependem decisivamente de onde você está, de onde você “mora”.

Diante do medo da mudança, a ideologia de classe opera em quem comanda as instituições. O historiador Walter Laqueur lembra, com correção, que os fascistas são sempre os “perdedores da modernidade”. Aqueles que não aceitam a mudança, a inclusão, a transformação da sociedade, dos padrões culturais, das normas sociais e etc. Aconteceu assim no início do século XX e, de novo, no início do século XXI. Este desconforto (cujo termo técnico é “modern malaise”) no século XX se configurava nos anseios de igualdade social, voto feminino, migrações, direitos para os trabalhadores e urbanização. Em tudo semelhante com o que ocorre no século XXI. E que não se diga que não há pessoas nos dias de hoje que questionem, por exemplo, o voto feminino. A pastora-ministra de Bolsonaro, Damares, sonha com uma sociedade em que as mulheres fiquem reclusas a sua casa. (Nós sonhamos que ela aplique o seu sonho a ela mesma.)

No século XXI, o “modern malaise”, que impulsiona o fascismo “contra tudo que está aí (talkey)”, guarda impressionante semelhança com o do século XX. Cem anos não foram suficientes para que a sociedade humana pudesse refletir e compreender este ponto. Hitler usava canhões e aviões modernos para impor uma sociedade que ele procurava espelhar na medievalidade germânica (o primeiro Reich ou o Sacro Santo Império Romano Germânico). Ele usava bombas e tanques, mas gostaria de usar espadas e lanças. A relação é a mesma de milhares de pessoas usando celulares de última geração para propagar mentiras sobre endemoniamento, comunismo ou “dominação mundial”. É o mesmo sentido de evangélicos neopentecostais vendendo indulgências e recebendo via transferência bancária na internet.

Uma pergunta sobre o fascismo que sempre se fez, e que hoje se torna ainda mais importante é: como pode? Como pode milhões de pessoas parecerem entrar em um “transe” de consciência e de intelecto e acreditarem em figuras bizarras como Olavo de Carvalho, Silas Malafaia, Damares Alves ou a própria família Bolsonaro? É uma assustadora e coletiva dissonância cognitiva que, na Inglaterra, por exemplo, os levou a votarem pela saída do país da UE. O “Brexit” de lá simplesmente quebra a economia do país e foi “votado” em meio à histeria coletiva, em tudo semelhante à eleição de Bolsonaro e Trump. Como pode na eleição brasileira, Bolsonaro ter digerido TODA a direita brasileira? Alckmin, Marina, Amoedo, Meirelles, Álvaro Dias terem sido aniquilados por alguém que não tem condições cognitivas de juntar duas frases ou oferecer qualquer solução para o Brasil?

A resposta fácil é: “a internet”, o “whatsapp” e “as redes”. A resposta fácil quase nunca é a correta. A imensa migração de votos para Bolsonaro não se deveu ao seu programa de governo (que a rigor nem existia), também não foi devido às soluções econômicas ou sociais apresentadas (não apresentou nenhuma) ou a qualquer histórico de serviços ao país e à sociedade (em 28 anos Bolsonaro nunca fez nada de significativo. A que se deve, então, este fenômeno?

Ao fascismo.

O ser humano precisa de reconhecimento e acolhida. São frequentes temas na psicologia e antropologia. A ideia de “pertencimento” é parte da subjetivação humana. Só somos e sobrevivemos em grupo. A modernidade, gerenciada pelos liberais, avança sobre a ideia de “individualismo” de uma maneira que desfaz laços e gera um impressionante senso de crise social. Quando o individualismo se torna um valor em si, a sociedade adoece. Apesar dos fascistas do século XXI propalarem o individualismo (e esta é uma marcante diferença para o século XX), tudo o que eles fazem e defendem é ao contrário do que falam. Querem regular corpos, proibir o uso de espaços, controlar as ideias individuais, atacar as artes e etc. Há uma imensa diferença entre o que dizem e o que fazem.
Ocorre que, ao fazerem estas ações, ao convencerem-se de que estão certos, eles se consubstanciam em um grupo e se sentem parte de algo maior. As frustrações individuais são subsumidas em um todo que age coletivamente – sempre com violência – contra o que é diferente, o que é dissonante e o que ameaça suas certezas sobre o mundo e as coisas. Paradoxalmente, o processo fascista de destruir os coletivos contrários a si, reforça o coletivo fascista, suas ideias, suas certezas e sua violência. As massas não demoram a transformarem-se em turbas.

Jean Wyllys está certo.

O fascismo aumenta o custo da oposição ao máximo, enquanto diminui o custo da aceitação. O fascismo de Bolsonaro et caterva ameaça a vida de Jean Wyllys (e de milhões de outras pessoas) o tempo todo, e de diversas maneiras. A descoberta de que seu filho está imbricado em relações escusas com as milícias do RJ, enquanto seu ministro da justiça nada diz e nada fala é apavorante. O assassinato de Marielle foi um exemplo do que o fascismo vai fazer no Brasil. Cada apoiador de Bolsonaro se torna um assassino em potencial se for convencido de que suas ações são para “o bem do país” ou “o bem do mito”. A vida se torna o preço da oposição política ao fascismo, e Jean Wyllys se deu conta disso a tempo.

Juntamente com a elevação do custo da oposição, o fascismo baixa o preço da aceitação. Bolsonaro desidratou toda a direita brasileira porque, para ser fascista e ser aceito neste imenso grupo de “apoiadores do mito”, basta que você use as cores deles, fale as palavras de ordem deles ou se esconda. Basta esconder sua sexualidade, suas tatuagens, seus piercings, o cabelo, os hábitos, suas preferências políticas. Basta que alguém se torne invisível para ser deixado em paz pelos fascistas.

A escolha de Jean Wyllys era ou desafiar a morte ou se tornar invisível. Jean rejeitou as duas e sai de um país que sequer República é mais. Deixamos de ser democracia com o golpe sobre Dilma Rousseff, deixamos de ser República quando Lula foi preso e estamos deixando de ser civilizados com o auto-exílio de Jean Wyllys. Ainda temos um fiapo de humanidade. Eu me pergunto quanto tempo ele irá durar .

Publicado por João Lopes

Menino23 – Infâncias perdidas no Brasil (filme)

Sinopse
“Em 1998, o historiador Sydney Aguilar ensinava sobre nazismo alemão para uma turma de ensino médio quando uma aluna mencionou que havia centenas de tijolos na fazenda de sua família estampados com a suástica, o símbolo nazista. Esta informação despertou a curiosidade de Sidney e desencadeou sua pesquisa. Pouco a pouco, o filme mostra como o historiador avançou com a sua investigação, revelando que, além de fatos, ele também descobriu vítimas. Sidney mostrou que empresários ligados ao pensamento eugenista ( integralistas e nazistas) removeram 50 meninos órfãos do Rio de Janeiro para Campina do Monte Alegre/SP para dez anos de escravidão e isolamento na Fazenda Santa Albertina de Osvaldo Rocha Miranda. O trabalho de Sidney vai reconstituir laços estreitos entre as elites brasileiras e crenças nazistas, refletidos em um projeto eugênico implementado no Brasil. Aloísio Silva, um dos sobreviventes, lembra a terrível experiência que escravizou os meninos ao ponto de privá-los do uso de seus nomes, transformando-o no “23”. Sidney e outros historiadores e especialistas irão delinear os contextos históricos, políticos e sociais do Brasil durante os anos 20 e 30, explicando como um caldeirão étnico como o Brasil absorveu e aceitou as teorias de eugenia e pureza racial, a ponto de incluí-los em sua Constituição de 1934. A investigação culmina com a descoberta de Argemiro, outro sobrevivente do projeto nazista da Cruzeiro do Sul. Sua trajetória reforça ainda mais como os conceitos de “supremacia branca” e as tentativas de “branqueamento da população” marcaram nossa sociedade deixando sequelas devastadoras até os dias de hoje. Sendo o racismo e – mais ainda – a negação do mesmo, as mais permanentes.” Equipe Técnica:
Direção: Belisario Franca Roteiro: Bianca Lenti e Belisario Franca Produção: Maria Carneiro da Cunha Produção Executiva: Cláudia Lima Edição: Yan Motta Musica: Armand Amar Fotografia: Thiago Lima, Mário Franca e Lula Cerri. Site do filme: menino23.com.br A seguir, compartilho o filme completo. Muito bom. Paulo Martins

Liberação da posse de armas, feminicídio e messianismo de extrema-direita: faces do mesmo mal

14/10/2018   12h10

Em dezembro de 1980, um assassinato em Nova York chocou o mundo: um fã enlouquecido, com um revólver comprado facilmente, matou John Lennon com três tiros, na porta da sua casa.

Eu estava morando lá. Ví tristeza e a comoção, em toda a parte, no mundo todo. As pessoas choravam pelas ruas. Observei, com pesar, os sinais de fraqueza dos pacifistas frente ao poderoso lobby dos produtores, distribuidores e proprietários de armas.

Como um insano pôde comprar uma arma para assassinar uma pessoa? Ora, facilmente. Consideram normal. Armas são fabricadas exatamente para isso. Para matar pessoas, eles raciocinam assim.

Três meses depois, outro crime com repercussão global: a tentativa de assassinato de Ronald Reagan, em 30 de março de 1981, 69 dias após Reagan ter assumido a Presidência da República nos Estados Unidos.

O presidente Reagan e mais três pessoas foram baleados por John Hinckley Jr. O criminoso disparou seis tiros. Em seu julgamento, Hinckley Jr. foi declarado inocente por insanidade mental e permaneceu internado em uma instituição psiquiátrica até 09 de setembro de 2016, quando foi liberado para viver com sua mãe em tempo integral, com tratamento psiquiátrico obrigatório e acompanhamento legal.

Como um insano mental comprou uma arma para tentar assassinar o presidente dos Estados Unidos? Ora, facilmente.

Eu poderia listar aqui os massacres em escolas e clubes noturnos, lá nos Estados Unidos e aqui no Brasil, para refrescar sua memória e alertá-lo para o perigo de se permitir porte de arma.

Mas este artigo não é somente sobre isso. É sobre a ascensão do fascismo que precisa, para se consolidar, da livre posse de armas.

O fascismo precede o desejo de portar armas e esta posse é a manifestação, na prática, do desejo de eliminar os diferentes. Para isso os fascistas enrustidos desejam a posse de armas: para eliminar os “diferentes”. O fascista odeia os diferentes.

Falei em diferentes e veio à minha atenção um fato incontestável: os machistas e os fascistas estão saindo dos esgotos onde viviam, candidato e seus eleitores, e promovem a liberação do porte de arma. São todos favoráveis, por que será?.

No ataque realizado a Reagan, seu secretário de imprensa, James Brady, foi ferido na cabeça, tornando-se deficiente sem recuperação. Ele continuou como secretário de imprensa do Governo Reagan por um tempo, em um papel basicamente protocolar.

Brady, que no passado tinha o apelido de urso, e sua mulher Sarah Brady, tornaram-se ativistas pelo controle de armas e outras ações para reduzir a violência armada nos Estados Unidos. Como podemos observar pelas ocorrências de massacres que tornaram rotineiros nos Estados Unidos, fracassaram.

Espero que os senhores deputados e senadores não levem adiante as tentativas de revogar o Estatuto do Desarmamento e de liberação do porte de arma no Brasil. Espero, também, que os brasileiros não elejam o candidato apoiado pelos fascistas.

E espero, com toda sinceridade, que não tenhamos que contabilizar arrependidos após terem sido incapacitados, como James Brady. Ou assassinados, como John Lennon.

Infelizmente, o arrependimento veio tarde para Brady e, embora o trabalho de sua organização sem fins lucrativos Handgun Control, Inc. (mais tarde chamada de Brady Campaign To Prevent Gun Violence) mereça elogios, a verdade é que as ações do rico e poderoso lobby norte-americano a favor da livre produção e venda de armas são muito mais efetivas. Elegem presidentes da República, como foi o caso de Reagan e, recentemente, Trump, ou impedem o sucesso de candidatos que se posicionam contra a posse de armas.

Eu residi, trabalhei e estudei nos Estados Unidos no período de fevereiro de 1979 até dezembro de 1981. Acompanhei de perto, com interesse e horror, o crescimento do fascismo à americana, com a ascensão de Reagan. O pano de fundo, a desculpa para o crescimento da extrema direita, foi a invasão da embaixada norte-americana e o sequestro dos diplomatas e funcionários norte-americanos pelo Irã.

Quando me preparo para finalizar este artigo, dou de cara com uma notícia na TV informando que foram registrados no Brasil, em 2016, 929 casos de feminicídio e em 2017, 1133 casos, um aumento de 22% em um ano. Matéria no Estadão de 12/10/2018 – 18h12 – informa:

“Em 3 dias, cinco mulheres são vítimas de feminicídio no interior no interior de SP. Todas foram mortas com arma de fogo – entre elas, uma adolescente de 13 anos”.

A campanha do candidato do fascismo, do machismo, da homofobia e da agressão ao meio ambiente quer fazer-nos acreditar que com a liberação de armas haverá mais proteção para as mulheres.
Vocês já viram mulheres sairem em marcha nas ruas, lá fora ou aqui, pedindo liberação irrestrita do porte de armas?
Claro que não. Mesmo intuitivamente é fácil perceber quem irá armar-se, não só para se defender mas, principalmente, para agredir. Serão os homens adeptos da violência, agressores e nunca as mulheres, normalmente muito mais pacíficas. A conclusão é um exercício de simples lógica: as mulheres vão ser assassinadas com maior facilidade. Veja, abaixo, uma lúcida entrevista de Ciro Gomes, contra a loucura  de se eleger um fascista para a presidência do Brasil.

A indigência do “fascismo tropical”


A indigência do “fascismo tropical”

POR RAFAEL ZACCA
– ON 11/10/2018

Publicado em outraspalavras.net


Em vez de História, esquecimento. No lugar de glórias externas, combate aos pretos, nordestinos e gays. Um “nacionalismo” entreguista. Como Jair Bolsonaro produziu um movimento que até Marine Le Pen rejeita.


Por Rafael Zacca | Imagem: cena de A Resistível ascensão de Arturo Ui (de Bertolt Brecht), encenada em Londres, 2013

Em todo o mundo a extrema direita surfa a onda conservadora da última década. Sempre que nos deparamos com um fenômeno confuso, vasculhamos a memória atrás de algum ponto de apoio para distinguir as coisas. É assim que por toda a parte o nazi-fascismo volta a ser sussurrado de ouvido em ouvido, como o marulho dessas águas. Chamar as coisas por seu nome é uma tarefa importante – mas distinguir os nomes corretamente é a tarefa justa. No caso brasileiro, o retorno do recalcado de nossa época ditatorial militar nos impele, a um só tempo, a lhe dar o nome de fascismo, e a acrescentar-lhe um broche, provavelmente maior que a roupa. Um broche tropical. Pois é difícil de acreditar que se possa sobrepor diretamente a imagem de Hitler ou de Mussolini à de Jair Bolsonaro, e nada nos parecerá mais absurdo do que a ideia de um povo ariano brasileiro.
Não obstante, a morte do capoeirista Moa do Katendê, na madrugada de 8 de outubro, é a mais recente evidência da existência de um fascismo à brasileira que diferentes discursos negacionistas tentam abafar. O capoeirista foi morto pela peixeira de um bolsonarista muito mais jovem (Moa tinha 63, o assassino tem 36), que cometeu o crime por “discordância política”. Outra evidência se dá no contexto dos acontecimentos que se seguiram ao assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco. Sete meses depois da execução, motivada pela atuação de Marielle no combate às milícias e na defesa da população negra e pobre das favelas do Rio de Janeiro, os então candidatos (e agora eleitos) a duas vagas na Assembleia do Rio, Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, quebraram uma placa feita em homenagem à vereadora na rua em que ocorreu o assassinato, no bairro do Estácio. Tratava-se de um evento político, e ao lado dos dois estava, no mesmo palanque, o atual candidato ao governo do Rio, Wilson Witzel – todos do partido da oligarquia Bolsonaro.
Nas eleições para o primeiro turno, fotos da urna eletrônica indicando voto em Jair Bolsonaro e pistolas repousando sobre os números expõem, com uma clareza freudiana, a vontade de entregar poderes excessivos ao candidato. A poucas semanas do processo eleitoral, em Copacabana, uma corrida de militares, destinada a homenagear um sargento morto durante operação em uma favela carioca, tornou-se prontamente uma carreata de apoio ao presidenciável, em uma espécie terrível de anúncio de uma possível “versão tropical dos Freikorps”, como afirmou Gilberto Maringoni, professor da UFABC. O professor referia-se aos grupos paramilitares que encabeçaram a escalada de violência nazista no século passado. Bolsonaro parece aceitar de bom grado o trono que lhe querem entregar: já afirmou, ao longo de sua história, que é a favor da tortura, que fechará o congresso na primeira oportunidade, e, recentemente, que irá “por um ponto final em todos os ativismos do Brasil”.
Quando teve fim o seu exílio, Leonel Brizola regressou ao Brasil com a ideia de realizar um “socialismo moreno”: mais libertário, mais afeito aos trópicos. Em uma espécie de piada histórica de mau gosto, o que parece ter vingado no país é um “fascismo moreno”, com as cores de nossa bandeira. Torquato Neto escreveu em 1968: “não faça esforço para ser tropicalista: continue moralista e será. O trópico é fatal.” Um nome mais adequado para essa ideologia talvez seja “fascismo tropical”.
Para compreender esse fenômeno, é preciso partir da premissa de que o que encontramos aqui não é exatamente igual àquela ideologia que nasceu das fasci di combattimento italianas. É preciso repetir o gesto daqueles que enfrentaram a meia-noite do século XX: na década de 1930, os que resistiam ao autoritarismo e à morte criaram institutos de estudo e combate ao nazi-fascismo. Tais institutos viriam a calhar hoje no Brasil. A história não se repete – conhecer o que se passa aqui, dessa vez, é tarefa prioritária, para que possamos traçar estratégias de resistência e combate mais bem definidas. O que se segue é um ensaio de distinções.
Lembrar ou esquecer
É curiosa a franca oposição em que se encontram a mentalidade histórica nazi-fascista e a do fascismo tropical. Enquanto para o primeiro a história (ainda que inventada e travestida de ciência) é importante na fundamentação dos símbolos nacionais a serem adorados pela população, para o segundo, o esquecimento é o cimento sobre o qual o autoritarismo pode se firmar. Não à toa a Comissão Nacional da Verdade tenha sido, desde a sua fundação, duramente atacada, simbólica e materialmente, por partidários, civis e militares, da ditadura. Ligada a um projeto de revisão da lei da anistia, que admitiu o retorno dos exilados políticos e perdoou os crimes dos agentes do Estado brasileiro, a Comissão trabalhou no sentido de revisar a dívida histórica com o passado recente nacional, quando o regime militar sequestrou, torturou, matou e desapareceu com inúmeros cidadãos, muitos dos quais sem paradeiro certo até hoje. O projeto de esquecimento envolvido nesse processo conhece agentes armados, e não apenas ideologicamente eloquentes. Em 2014, por exemplo, o coronel Paulo Magalhães confessou crimes de tortura e sequestro à Comissão; um mês depois, sua casa foi invadida, o coronel assassinado, e seus computadores roubados.
Enquanto no fascismo tradicional o passado é glorioso e os ancestrais exaltados, no fascismo tropical o passado é motivo de vergonha e deve ser esquecido. O fascismo tropical é um projeto de futuro que quer purgar, com fogo mesmo, o território nacional de seus males. Apenas o patriarca é respeitável, o que explica, por sua vez, que a centralização de poder em nossa história seja tão mais facilmente alcançável. Essa ideologia funda em nós uma atração desproporcional, mesmo se comparada a outros contextos patriarcais, pelas figuras do super-herói incorruptível, do avô amoroso provedor ou do coronel que apazigua os conflitos locais. E não importa que sejam essas as figuras nacionais que mais rapidamente se mostrem corruptas, avarentas e violentas, quando não as três coisas: o fascismo tropical tem mais amor pela violência do chefe que pela instauração de uma ordem, pois identifica ordem com o cano de um revólver.
Sob gritos de “mito”, Jair Bolsonaro é eleito deputado, ano após ano, como o grande patriarca do fascismo tropical. Quanto mais os seus adversários relembram de seu flerte com os crimes de guerra do regime militar, mais o candidato se apoia na amnésia social promovida pela lei da anistia como escudo ideológico. Esse grande patriarca sofre hoje, não por mera coincidência, a maior rejeição por parte das mulheres, sob a bandeira do movimento do #elenão.
O inimigo externo ou interno
A tipificação do alvo nacional, do inimigo número um, também difere nos dois casos. Na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler, esse elemento sempre foi exterior. Fora do território, esse inimigo movia a guerra de conquista. Marinetti chegou a afirmar em manifesto futurista, em apoio à Itália na guerra colonial na Etiópia, que “a guerra é bela”. O nazismo, por seu turno, cresceu na sombra do argumento da humilhação por seus vizinhos: o discurso revanchista, pelas consequências da derrota na Primeira Guerra Mundial, pavimentou a marcha da SS. E mesmo o grande alvo interno dos arianos, os judeus, eram tidos como inimigos externos, que teriam saqueado e destruído a nação. De um modo ou de outro, o nacionalismo se constrói por oposição ao internacional.
No fascismo tropical, o alvo é nacional. Esse efeito é possível graças à produção de esquecimento – assim, o alvo pode ser aquilo que é nacional, mesmo sob justificativa nacionalista. O ódio aos afrodescendentes e aos índios, e a todas as políticas de reparação histórica e de inclusão social desses grupos na sociedade, é a mais estranha contradição de um fascismo tropical. E é vestindo a camisa da seleção nacional de futebol, que teve historicamente a maior parte de seus melhores jogadores pessoas negras, que os novos verde-amarelos exigem políticas de extermínio nas favelas, fim de cotas nas Universidades e em concursos públicos, etc. Também o nordestino pode ser odiado desse ponto de vista, como inimigo interno que desorganiza o país, bem como o pobre. Todos esses alvos acusados de imoralidade – pois o fascismo, lá como aqui, é antes de tudo um ato de conservação dos costumes do patriarcado.
Exatamente por isso, tanto em um caso como no outro, um alvo continua o mesmo: o corpo estranho. O desejo de morte aos corpos que fogem da norma reprodutiva heterossexual se traduz, hoje, sob gritos de “fim do kit gay nas escolas” ou na exigência de que os não-heterossexuais não se mostrem de tal forma em espaços públicos. De qualquer maneira, a pressão para que esses modos de vida permaneçam na esfera privada significa – mesmo antes dos espancamentos e das violências verbais, que ocorrem todos os dias – a morte social desses corpos.
Nacionalismo e entreguismo
É curiosa a posição dos fascistas tropicais: são nacionalistas e entreguistas ao mesmo tempo. Essa foi a postura social e econômica da Ditadura Militar, e parece continuar a ser o projeto do militar Jair Bolsonaro. A aceitação de sua candidatura, por parte de grandes contingentes da população, coincidiu, inclusive, com uma mudança de posição do candidato: de passado protecionista, Bolsonaro se move cada vez mais para o campo neoliberal. Nesse sentido, o fascismo tropical é bastante diferente de seu irmão europeu – lá, o protecionismo é a palavra de ordem. Aqui, o economista liberal, formado por Chicago, Paulo Guedes, é a arma do convencimento de fecundidade do projeto de Bolsonaro. Privatização e entrega das riquezas nacionais podem conviver em seu discurso porque o nacionalismo, no fundo, não é sequer a exaltação de tais ou quais aspectos nacionais. Nacionalismo no fascismo tropical é pura e simplesmente a defesa da família tradicional e a repressão da sexualidade.
Esse fenômeno ficou conhecido entre os historiadores como “modernização conservadora”. Modernização com a livre-circulação do capital e dos capitalistas internacionais, e conservação nos costumes. Se no nazi-fascismo a modernidade é imoral e destrói o passado glorioso das nações superiores, no fascismo tropical a modernização é o que pode fazer com que a nação concorra a um papel de destaque no arranjo internacional de disputa de riquezas. E como sempre cabe mais um ingrediente no prato brasileiro, soma-se a esses aspectos um reacionarismo no campo social, com a retirada progressiva de direitos. Ataques à legislação trabalhista são justificáveis em prol de uma “estabilização financeira” e “reequilíbrio das contas públicas”, delegando, no fundo, ao trabalhador, a tarefa de fechar as contas do cofre nacional.
O fenômeno não se desenvolve sem contradições, é claro. Um dos principais aliados de Bolsonaro, por exemplo, Alexandre Frota, é um dos defensores da moralidade e dos bons costumes, além de guardião discursivo da família tradicional brasileira, e parece não causar espanto o fato de que Frota tenha sido ator pornô e tenha contracenado tendo relações sexuais com diferentes moças e rapazes, performando hetero, bi e homossexualidade em seus filmes. Também não parece contradizer a família tradicional o fato de que Frota tenha feito apologia ao estupro em rede de televisão aberta. Nada disso impediu que o ator tivesse sido eleito deputado federal com 152 mil votos pelo partido de Bolsonaro, o PSL.
Antipartidarismo como guarda-chuva ideológico
O fascismo não se fundamenta sem um guarda-chuva ideológico. É preciso canalizar uma grande variedade de medos e inseguranças da população sob um mesmo signo para arregimentá-la em seu projeto. Largos contingentes de seres humanos, formados até mesmo pelos corpos ameaçados por essa ideologia, não são fascistas por natureza. São boas pessoas, incapazes de ferir o semelhante. É preciso um elemento que filtre as diferentes demandas sob um só signo odiento e que, nesse mesmo movimento, impulsione a violência em ondas cada vez mais fortes. Somente com essa canalização aquilo que Hannah Arendt chamou de banalização do mal é possível. Como o fascismo floresce em épocas de crise das relações sociais, esse filtro se liga a um elemento que possa a qualquer custo conservar essas relações. Em 1964, o filtro era o anticomunismo. Hoje, é o antipartidarismo, principalmente o antipetismo. Sob o argumento da corrupção, esconde-se um ódio às transformações sociais exigidas por pobres, negros, mulheres, LGBTQ+ e índios.
De outro modo, não se explica o apoio dado a Jair Bolsonaro e àqueles que coligam com ele. Sua história partidária está ligada aos mesmos escândalos que sustentam a retórica do PT como o partido mais corrupto de todos. Bolsonaro era deputado pelo PTB na mesma época em que o partido protagonizou o mensalão; foi deputado pelo PP na mesma época em que o partido teve o maior número de indiciados no petrolão; além de ter participado da base ampla do PT por muitos anos. Mas nada disso adiantará nos ouvidos tropicais desse fascismo à brasileira. Atacar a sustentação do filtro ideológico é gastar energia sem produzir efeitos; aqueles que se comprometem com o combate ao fascismo devem estar dispostos a refazer as perguntas fundamentais que movimentam o medo daqueles que coligam com este projeto. Apenas na reformulação dos problemas sociais que servem de fundamentação real ao fascismo, a esquerda conseguirá apontar uma direção mais adequada. Isto é: não é a questão partidária que está em jogo. No limite, a questão partidária é apenas o conteúdo manifesto de um conteúdo latente que precisa ser trazido novamente para os debates públicos. Já o combate aberto, deve ser reservado aos ideólogos do fascismo tropical, tais como toda a oligarquia Bolsonaro, Kim Katagury, Olavo de Carvalho, Rodrigo Gurgel, Alexandre Frota, e outros pseudo-pensadores semeadores dos campos da morte.

Rafael Zacca


Poeta e crítico literário. É doutorando em Filosofia pela PUC-RJ. Integra o Núcleo de Estudos da Cultura no Capitalismo Contemporâneo (UFF). Articula com outros poetas a Oficina Experimental de Poesia (OEP). Autor do livro de poemas Rafael Zacca | Coleção Kraft (2015). Vive no Rio de Janeiro (RJ).


Repúdio ao fascismo # 1 – 27/09/2018

Iniciamos aqui a série de compartilhamento de textos que servem de alerta e repúdio contra o fascismo.

Paulo Martins

“O governo de um fascista cultua explicitamente a ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. Despreza naturalmente grupos sociais vulneráveis e fragilizados. Lá no Terceiro Reich, de Hittler, durante o período de 1933 e 1945, foram os judeus. Aqui no Brasil já está declarado que são mulheres(seres inferiores), homossexuais, índios, quilombolas, pretos e pobres das periferias, mas podem também ser eu, você, a sua família ou alguém que discorde dos métodos autoritários e violentos do fascista brasileiro. Aos poucos as pessoas vão acreditando “na construção social das propostas fascistas de um nacionalismo em defesa da pátria, da família e com Deus. Então meus caros amigos, essa é uma publicação de despedida, caso o #elenao seja eleito. #elenao vai me perseguir me prender e me torturar. Porque eles e eu somos muito diferentes. Primeiro porque eu amo o “materialismo dialético: síntese, antítese e tese. E #elesnao simplesmente não dialogam, usam a força, ou fazem nova constituição, matam e arrebentam e torturam também. E os que querem #elenao, não fizeram essa escolha porque compreenderam mal os argumentos. Escolheram #elenao porque aderem bem essa forma de vida e afetos típicos desse modelo de sociedade fascista, racista, homofóbica, violenta e injusta.”

Por Vina Guedes (compartilhado por Fernando Almeida).

O homem que não gostava de gatos, por Fernando Horta

Por Fernando Horta
“O homem que não gostava de gatos
Benito Amilcare Andrea Mussolini não gostava de gatos. Leonino, nascido na região entre Florença e Milão, mantinha-se sem cabelos em sem barba através de um intrincado processo que envolvia barbeiros escolhidos aleatoriamente, em diferentes momentos para garantir-lhe a segurança. Em 1903, ainda com cabelos e barbas, foi preso na Suíça por incitar uma greve de pedreiros e foi deportado para a Itália onde, até 1912, participou do Partido Fascista Italiano.
Nenhuma das informações acima é importante para a definição do que é o fascismo, contudo, parece que no Brasil de hoje uma parte das pessoas (acadêmicos inclusos) parece afirmar que enquanto um italiano careca de uniforme não começar a discursar aos berros, nós não temos fascismo no Brasil. É um argumento muito semelhante àqueles que dizem que por Mussolini ter feito parte do Partido Socialista Italiano ele era “de esquerda”. Ambas as explicações são baseadas num profundo desconhecimento do que foi o fascismo na Europa. A negação do termo ao Brasil, no entanto, obedece a dois objetivos: (1) desmobilizar a crítica e (2) afirmar que está tudo normal no país, e algumas pessoas na esquerda estão “alucinadas”.
Não gosto do rótulo de alucinado. No Brasil não está tudo normal, e penso que é preciso aprofundar a crítica, neste momento.
Existem várias explicações para o fascismo. O próprio fascismo se declarava uma filosofia libertadora, que pretendia combater a corrupção e unir o “povo” por um país “vitorioso”. Apesar de algumas diferenças, a onda fascista atingiu toda a Europa, incluindo a Inglaterra. Onde ela não obteve força para tomar o poder, mantinha-se como importante partido político e força social. Sempre ligada aos grupos sociais que detinham o poder das armas. Na Itália, por exemplo, a polícia da época (os Carabinieri) era participante ou simpatizante do fascismo desde o seu início. Existem inúmeros relatos e documentos mostrando que estas forças não se mobilizavam para conter ou fazer recuar os fascistas e, na maioria das vezes, os protegiam e permitiam que agredissem outros manifestantes. Esta característica não se resume à Itália, mas está presente em todo o lugar afetado pelo fascismo. Na famosa Batalha de Cable Street (1936), em Londres, é possível ver em fotos e filmagens a polícia protegendo os fascistas e agredindo a população.
A História fala em um “sistema sócio-político” dependente do capitalismo de cunho nacionalista que imperou no período entre-guerras na Europa, estendendo-se ao restante do mundo (especialmente América do Norte e do Sul). A Ciência Política fala em um sistema autocrático, de cunho ditatorial com supremacia do executivo sobre os outros poderes. Existem definições sobre a estética do fascismo, sobre o tipo de filosofia produzida e defendida pelo fascismo, arquitetura e até estudos sobre a influência fascista (e nazista) no desenvolvimento do cinema e da propaganda. A atriz e diretora de cinema Leni Riefensthal, por exemplo, é conhecida pela criação de toda uma estética visual ao exercício do poder de Hitler.
Em “Mil Platôs”, Delleuze e Guattari argumentam pela existência dos “micro-fascismos”. Mostram como, a partir de uma ideia “liberal”, ocorre a degeneração ao fascismo através de micro-violências e rupturas culturais mínimas, quase todas nas micro-esferas de poder individual ou burocrático, que vão se acumulando dentro do tecido social até a formação do sentido de diferença social do fascismo que invariavelmente acaba sendo usado como espaço de atração para o pertencimento do cidadão comum ao movimento. Estas ideias deram origem a uma série de estudos psicológicos (muitos deles baseados nas ideias de Hannah Arendt) que argumentam pela existência de padrões de comportamento que estariam associados a estas micro-rupturas. O narcisismo, o individualismo, um forte sentimento de inadequação social, a não aceitação do outro e do diferente, baixa-auto estima, e etc. Seja como for, a leitura combinada de “A condição humana” e “As origens do Totalitarismo”, ambos de Arendt, oferecem um campo bastante fértil para pensarmos em como a “essência humana” se transmuta em ações políticas através do corpo ou das narrativas, sendo veículo de ideias pessoais que passam a se reconhecer no tecido social, potencializando seus efeitos.
A literatura da década de 50 e 60 sobre o tema, enfatizava a relação entre o indivíduo e os grupos com o argumento de fundo de que uma vez que o indivíduo era engolido pelo grupo – como nos processos nazista e comunista – as degenerações se davam como decorrência social. Assim, argumentava-se que o único caminho para uma sociedade “saudável” era a preponderância do indivíduo e atacava-se toda e qualquer organização coletiva. O centro desta argumentação servia muito bem aos interesses norte-americanos da época, que buscavam igualar nazismo e comunismo e desacreditar sindicatos, associações de classe ou outras formas coletivas de organização dentro dos EUA.
Desde a década de 50 a psicologia vinha fazendo uma série de experimentos para mostrar que o indivíduo não era a catedral santificada das virtudes. Na década de 50, Solomon Asch mostrava que os sentidos e opiniões pessoais eram totalmente influenciados pelas percepções de grupo e que os indivíduos se sentiam amparados e defendidos quando imersos numa “conformidade”. Em 1961, Milgram realizava seu famoso e controvertido estudo sobre obedecer e violentar. Milgram mostrou que indivíduos normais, aparentemente justos e não cruéis eram capazes de infligir dor em outros seres humanos se assim fossem ordenados. Na década de 70 estes estudos foram colocados em teorias maiores como parte do esforço de pesquisa realizado pelos EUA para manter o país livre de “ideologias coletivas”. No fim, descobriu-se que há uma imensa tendência na população para o sadismo e para a violência.
As pesquisas nos EUA afirmavam que a sociedade americana não estava livre de ser tomada por ondas ideológicas como o fascismo. Em realidade, os estudos sugeriam que para conter estes micro-comportamentos violentos era necessário investimento massivo em educação e distribuição de riqueza. O homem, por mais respeitador da lei que fosse, se confrontado com situações de necessidade usava como recurso a violência. Fosse ela física e direta, simbólica ou psicológica.
Hoje o estado da teoria sobre explicação do fascismo é bem avançado. O fascismo se baseia em quatro características sociais: (1) negação da política como forma de resolução dos conflitos humanos; (2) negação da diferença como comportamento socialmente válido; (3) afirmação de um comportamento moral único caracterizado não apenas como desejável, mas obrigatório e (4) não aceitação da figura humana como detentora de direitos naturais. Com estas características rapidamente decorrem as três condições históricas para o surgimento do fascismo: (1) preponderância da ideia de Estado sobre qualquer outra coisa (Salus patriae, suprema lex); (2) corporativismo e uso da violência contra opositores políticos (com especial negação da luta de classes) e (3) ênfase na noção de escassez e de luta por recursos materiais para promover a cisão social.
Como um diagnóstico de uma doença, em que um ou outro sintoma sozinho não qualifica um mal específico, na percepção do fascismo vários dos pontos apontados acima podem ser vistos como características ocasionais (ou mesmo perenes) de algumas sociedades ou grupos. Não se pode tomar a noção exagerada de escassez e de luta por recursos como já caracterizando o fascismo. Assim como a utilização de violência para com opositores políticos, tomada de forma separada, pode ser encontrada em todo período histórico em todas as sociedades.
O problema do Brasil é quando você ouve de deputados no impeachment de 2016 que “in dubio pro societat”, numa clara alusão à ideia do Estado sobre qualquer coisa, em seguida ouve nas manifestações que “os comunistas são vagabundos que querem continuar mamando nas tetas do Estado”. Percebe o aumento absurdo da violência contra homossexuais, negros, mulheres e ativistas de toda a sorte, registra senadores defendendo que se bata de relho em manifestantes, policiais jogando spray de pimenta no rosto da população e dizendo “faço porque eu quero”. Retira de falas de ministros da suprema corte que existe o “uso abusivo das liberdades e do habeas corpus”, e de desembargadores que “se alguém está sendo processado é porque alguma coisa fez”. Médicos falando em “romper a veia para que o capeta abrace ela” e pilotos de aeronave dizendo “abre a janela e joga este lixo daí”. Fica ainda mais claro quando se vê delegados de polícia criando histórias mirabolantes para prender seus desafetos, membros do ministério público falando mais em fé e bíblia do que em lei, e generais exaltando uma pátria de símbolos amorfos (e sem nenhum povo) para pregar a violência.
O fascismo está no Brasil. E de uma forma assustadoramente rápida. Os estamentos que deveriam lhe servir de oposição sucumbiram. Juízes moralistas, punitivistas que falam em “bandidolatria” já estão no espectro do fascismo. Liberais que deixam de defender as liberdades e direitos humanos são fascistas. Políticos que defendem a violência, constrangimento ou mesmo aniquilação dos opositores são fascistas. Manifestantes que exigem “protestos sem partidos” são apenas protofascistas. Nossas instituições ruíram por dentro com uma facilidade impressionante, mas não sem explicação. Os historiadores sempre afirmaram que o fascismo era filho do período entre-guerras. Os psicólogos e sociólogos apenas confirmaram.
O fascismo é filho da ignorância e do medo. No Brasil, o medo de que em uma sociedade igualitária falte “dinheiro” para todos é usado até nas propagandas oficiais de Temer. A noção do “Brasil quebrado financeiramente” é exatamente para induzir o desespero e a luta pelos recursos. Tudo isto com o neo-moralismo evangélico e o apelo evidente ao nosso passado escravocrata. Bertold Brecht afirmava que não há nada mais parecido com um fascista do que um capitalista assustado. A classe média brasileira nunca foi conhecida por seu quilate cultural, nunca foi saudada por sua rigidez legal, nem nunca foi exaltada por seu apreço e defesa pelas liberdades individuais. Delleuze e Guattari afirmavam que um certo tipo de liberalismo difuso convivia muito bem com o autoritarismo fascista.
Como se vê, não é necessário um italiano careca e de uniforme para termos fascismo. A classe média brasileira sempre esteve ali no limiar e nunca teve qualquer apreço pela democracia. Precisou apenas um sentimento de medo da igualdade social, incitado pela mídia e pelos países interessados em manter a América Latina subserviente, para que nossa classe média abraçasse seu destino. Como disse Chico Buarque:
“Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal,
Vai tornar-se um imenso Portugal!”
Mas enquanto Portugal luta vigorosamente contra a austeridade, nós viramos um Salazarismo tupiniquim nos trópicos.”

Via João Lopes

O fascismo está no ar (revisado)

Eu ouvi um discurso dos anos 30 e 40, com nítido ranço da Alemanha hitlerista, que apenas adota um velho disfarce ao substituir a supremacia da raça pura alemã pela supremacia da nação norte-americana e por apelos ao nacionalismo e engrandecimento dos EUA em detrimento do resto do mundo.

Trump inverteu completamente a realidade e atribuiu a decadência da classe média norte-americana à exploração dos outros países. Falou do sucateamento da indústria norte-americana atribuindo a culpa ao Estado, à tributação e à falta de patriotismo do empresário norte-americano. Jogou Adam Smith e David Ricardo na lata do lixo. Talvez seja um lugar merecido no século XXI. Esqueceu-se, convenientemente, do desmantelamento da economia norte-americana causado pelo neoliberalismo e pela desregulação, especialmente do mercado financeiro, iniciados na era Ronald Reagan.

Os editores do Jornal Nacional, “inocentes”, coitados, escolheram ver um discurso forte. Alguns chamariam a expressão “forte”, que nada define, de mero eufemismo de conveniência; outros, de mistificação corriqueira, norma já tradicional na Organização.

Comentarista da GNT, empresa da mesma Organização, definiu o discurso de Trump  como Nacional Populista. Outro eufemismo.Um pouco mais próximo da realidade mas, mesmo assim, eufemismo. Todos sabemos qual a correta classificação do lamentável discurso de Donald Trump.

Se Trump realmente gosta de um palavreado xenófobo, misógino e racista,  que a Globo escolheu chamar de “forte”, nós também temos o direito de usar linguajar apropriado, expresso em “trumpês”, para classificar seu discurso de posse. Nesse novo  idioma, que causa calafrios na China e na Alemanha, a correta definição do discurso de Trump, é “fascismo”. Reciclado, revisado, semi-novo, transgênico, gourmetizado, mas o mesmo fascismo de sempre.

Hitler reencarnou-se em Trump. Só faltou escolher “Ordem e Progresso” como o lema deste novo tempo. A expressão já havia sido exportada para um determinado país sul-americano, igualmente carente de ideias e inspiração.

Preparem-se. Os novos tempos são de cuidados e de mediocridade. Stephen Bannon reina. God save us.

Leia, a seguir, texto complementar de Luiz Carlos Oliveira e Silva:

TRUMP E HITLER
1. O discurso de “inauguração” do mandato de Donald Trump, em diversos pontos, lembrou o de Hitler antes da guerra.
2. A ideia de que o povo retomou o poder, na figura do presidente, contra os políticos e as instituições, é um deles.
3. Há outros… Por exemplo:
4. Unir a nação contra os inimigos internos e externos é uma das ideias-força de Hitler que Trump está tomando como sua.
5. Os “judeus” de Trump são os assim chamados “imigrantes ilegais” e os “comunistas” da vez são os “radicais islâmicos terroristas”.
6. Outra ideia-força de Hitler que Trump estás abraçando denodadamente é a de atribuir as dificuldades econômicas à traição antinacional dos políticos.
7. O “Tratado de Versalhes” de Trump é a globalização.
8. Onde se ouvia “Alemanha para os alemães”, ouça-se agora “Buy American, hire American”.
9. Onde se ouvia “Deutschland über alles”, ouça-se agora “America First”.
10. O discurso de “inauguração” foi a reiteração do que ele disse na campanha. Diferentemente do que muitos esperavam.
11. Trump não amarelou. Hitler não amarelava… E deu no que deu…

Vox mídia, Vox Dei

No período de 2005 a 2008 cursei, já aos 54/56 anos, metade do curso de Direito. Tive oportunidade de cursar, com extrema dedicação, Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e, obviamente, Direito Penal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos está recepcionada pela Constituição Federal de 1988 e seus princípios mais importantes estão explicitamente inseridos na CF.

Esta introdução foi necessária para mostrar que meu respeito à Constituição, às liberdades (em seu sentido verdadeiro e mais profundo) e à profissão dos operadores de direito – juízes, advogados e todo pessoal envolvido no processo de administrar justiça, um direito humano fundamental – não é recente. Não sou um novo democrata, um novo indignado on-line ou um neo-caçador de marajás ou de corruptos. Não sou, também, neo-patriota, nem neo-nazista. Hoje, estamos com inflação de sonegadores e espertos do dia-a-dia tornados, subitamente, santos, cruzados anti-corrupção.

Saímos, muitos  brasileiros, traumatizados pela ditadura e com uma lei de anistia ditada, como se faz em ditaduras, que ficou atravessada na garganta da nação. Saímos da ditadura mas a ditadura continua entranhada em muitos. Misturou-se ao sangue, faz parte do DNA.

A grande mídia, cúmplice e conivente, saiu premiada pela ditadura, com concessões de estações de rádio e de emissoras de TV. Como sairão premiados todos os delatores da Lava Jato. No Brasil, delator tem tapete vermelho, olhares de admiração. Aqui o crime compensa, desde que você tenha acesso a caríssimos advogados especializados em delações premiadas bem formatadas e vantajosas. Delações sem provas, com nexos de causalidade, tipicações e culpabilidades espúrias, vagas …

A constituinte, e seu resultado, a Constituição de 1988, apesar dos seus defeitos, representariam, acreditávamos então, um remédio contra os golpes e ditaduras. Ledo engano.

Fico surpreso de ver os argumentos estafúrdios a justificar as conduções coercitivas de inimigos investigados e as prisões com justificativas ralas para forçar delações premiadas.

Não tenho acesso privilegiado aos detalhes dos processos instaurados no âmbito da operação Lava Jato. Só os cúmplices têm. Estes processos são vazados para a mídia empresarial e divulgados com estardalhaço, de forma parcial e seletiva, com objetivos que estão claramente predefinidos: dar um golpe de estado e assumir o poder.

Tenho acompanhado, na medida do possível, as justificativas para prisões arbitrárias e conduções coercitivas. Na ausência de provas claras utiliza-se do recurso da condenação pela opinião pública: se muitos acreditam depois de grande bombardeio midiático que alguém cometeu um crime, então deve ter cometido mesmo. Vox mídia, Vox Dei.

Vamos invadir seu lar às 6:00 horas da manhã e vasculhar sua residência, arrombar portas, violar seus computadores e suas contas bancárias para ver se encontramos as provas que possam confirmar a prévia condenação pelo ouvido. As justificativas do Ministério Público ao solicitar prisões e conduções coercitivas, bem como as decisões do juiz Moro, são verdadeiros copia e cola.

Apresentamos, a seguir, vídeo com entrevista do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, condenando as conduções coercitivas praticadas no âmbito da operação Lava Jato. Notável observar a cara de ….. dos entrevistadores quando confrontados com o claro e firme posicionamento do ministro. Vale a pena observar, ainda, a cara do um apresentador reserva de uma emissora de São Paulo cujo nome me foge neste momento.

O segundo assunto, também associado a este artigo, refere-se ao interrogatório de uma testemunha da acusação na 24a. fase da Lava Jato, cujo foco indisfarçável é incriminar o ex-presidente Luiz Inácio da Silva – Lula. O Ministério Público solicitou e o juiz Moro autorizou a citação de uma testemunha. Por engano, convocaram a testemunha errada. Um capoteiro de Belo Horizonte. Devem ter visto correlação entre a profissão de capoteiro – faz capotas e estofados para carros – e a operação Lava Jato. “Teoria da culpabilidade por similaridade de objeto”. Kafka é pouco … Mussoline também.

Antes que alguém argumente que o capoteiro foi convocado a prestar depoimento como testemunha da acusação, respondo que este é o modus operandi da operação Lava Jato. Para ele sair de lá preso por estar omitindo informações seria apenas um passo, ou melhor, um texto copiado e colado, de três linhas, com uma assinatura eletrônica do juiz.

 

 

 

 

 

 

Nova categoria: Ovos da serpente

Há 31 anos Rui Guerra escreveu uma crônica sobre o golpe de 1964.

No dia 03 de abril de 2014 o site Carta Maior publicou uma crônica de Rui Guerra sobre o papel dos militares e a continuidade do comportamento hostil à democracia.

No dia 03 de abril passado eu publiquei esta crônica do Rui Guerra neste blog. Eu estava, então, preocupado com a onda fascista que começava a quebrar a casca do ovo.

Hoje, passados quase 7 meses, as evidências se multiplicam.

Nesta situação, calar é consentir. Omitir-se não é opção.

Estou criando uma nova categoria no blog intitulada Ovos da Serpente, para postar os casos de ódio e intolerância que chegarem ao meu conhecimento.

Espero que funcione como um chamamento singelo ao bom-senso e à construção de um ambiente de paz.

Quem sabe as pessoas não se dão  conta que chegamos a uma situação limite. Se continuarmos nessa trilha, vamos levar o país para uma situação insustentável.

Temos que reconhecer que por mais poderoso que qualquer um seja, seu direito termina onde começa o direito do próximo. Trata-se de regra básica de convivência.

É necessário registar, discutir, analisar, indignar-se, compartilhar … antes que seja tarde.

Paulo Martins

“Anticomunismo é a base ideológica comum para o espectro fascista no Brasil”

Publicado originalmente em Escrivinhador – Rodrigo Viana – Revista Fórum

Por Igor Felippe

O professor de história na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Lucas Patschiki, pesquisa a continuidade e transformações do fascismo do começo do século 20 até agora.

No Brasil, ele estuda o portal de extrema-direita Mídia Sem Máscara, dirigido pelo filósofo Olavo de Carvalho, e o Instituto Millenium, que reúne diretores, colunistas, comentaristas e blogueiros vinculados aos grandes meios de comunicação.

Segundo ele, a onda conservadora que avança no Brasil é um fenômeno mundial, ligado ao enfraquecimento da democracia burguesa, à crise do capitalismo a partir de 2008 e às dificuldades do modelo neoliberal de encontrar uma saída para o seu projeto econômico.

Essa onda conservadora se manifestou nas eleições de 2014, com a votação expressiva de ícones da direita para o Congresso Nacional, e explodiu nas ruas com os protestos do dia 15 de março, quando segmentos extremistas catalisaram o sentimento de indignação de milhares de brasileiros.

No caso brasileiro, afirma Patschiki, a ascensão de atores conservadores pegou carona na doutrina do “anticomunismo preventivo”, que norteou a atuação da mídia hegemônica nos últimos 12 anos, como forma de pressão para que o PT cumprisse os acordos com a classe dominante e o imperialismo.

“O anticomunismo serviu como base ideológica comum para o espectro fascista da sociedade, um movimento organizador visando o acirramento da luta de classes, tendo como expectativa a crise aberta. O fascismo, como fenômeno surgido com o imperialismo, tem como função política e social primária reorganizar o bloco no poder de maneira brutal durante a crise aberta, para a manutenção e reprodução da sociedade de classes, o que denota seu caráter de organização visando a luta contra a classe trabalhadora e, de maneira geral, de luta contra qualquer avanço democratizante”, afirma.

Abaixo, leia trechos da entrevista.

Incapacidade do Estado

Vivemos historicamente uma ofensiva violenta do capital contra o trabalho sob a égide do neoliberalismo, e isto tem consequências que atingem a totalidade da sociedade. Para o que nos interessa discutir aqui, temos de sublinhar o deslocamento dos centros de decisão política. Há um esvaziamento da capacidade de universalização de direitos pela via parlamentar-eleitoral burguesa, que acaba por ser inundada pela pequena política (a política que é incapaz de mudar os rumos do Estado). Mas este esvaziamento não se traduz em uma crise de direção política, pois a capacidade de decisão é deslocada para esferas corporativas na ossatura material do Estado, no caso brasileiro notadamente para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), lugar de construção de consensos sociais em favor do capital, assim como o Banco Central.

Crise política

A Dilma tentou reavivar esse pacto social, abalado pela estagnação econômica. Primeiro, em contato direto com o empresariado na própria eleição e depois do pleito pela distribuição de cargos e ministérios (Joaquim Levy, Kátia Abreu, etc.). Não foi o suficiente, enfraquecendo as articulações políticas com os partidos na Câmara e no Senado. Isso, somado à ida para ruas, que em 2013 quebrou a política de apaziguamento das organizações das classes subalternas, via CUT e PT após a eleição de Lula. Agora, em 2015, se radicalizam, com parte dos atores políticos intitulados de direita passando a inclusive defender inclusive a ruptura institucional dessa democracia que temos. Abre-se um precedente preocupante para o futuro. Estamos, sem dúvida, vivendo uma crise política no âmbito da representatividade. Isso atinge todos os partidos, e os desdobramentos dessa crise ainda são nebulosos.

Onda conservadora

Com a crise de 2008, crise estrutural do capital, há uma ascensão de projetos, pautas e movimentos de cunho chauvinista, xenófobo e mesmo fascista. Eles são financiados abertamente pelo grande capital e servem tanto para se colocarem como possibilidade em caso de crise de direção política quanto para constituírem uma base social de sustentação e apoio ativo ao incremento da violência estatal, diante do esvaziamento das formas de resolução política formal da democracia burguesa. O caso mais claro é o do Tea Pparty estadunidense. Ou seja, há uma correlação fundamental entre a ascensão fascista, o aumento (qualitativo e quantitativo) da violência e autoritarismo estatal e o programa neoliberal.

Anticomunismo preventivo

No caso brasileiro, a ascensão desses atores foi motivada pela justificativa do “anticomunismo preventivo”, mote para a atuação raivosa da mídia hegemônica nos últimos 12 anos: elemento de pressão para que o Partido dos Trabalhadores em suas gestões federais cumprisse os acordos acertados com a classe dominante e o imperialismo. O anticomunismo serviu como base ideológica comum para o espectro fascista da sociedade, um movimento organizador visando o acirramento da luta de classes, tendo como expectativa a crise aberta. O fascismo, como fenômeno surgido com o imperialismo, tem como função política e social primária reorganizar o bloco no poder de maneira brutal durante a crise aberta, para a manutenção e reprodução da sociedade de classes, o que denota seu caráter de organização visando a luta contra a classe trabalhadora e, de maneira geral, de luta contra qualquer avanço democratizante.

Intelectuais do conservadorismo

Intelectuais, colunistas e blogueiros conservadores disseminaram suas pautas por todo o campo político. Mas a atuação destes tem objetivos políticos mais profundos que o eleitoral, eles buscam a conformação cultural e ética de todo um modo de ser, visando prioritariamente a pequena e nova pequena burguesia. Existe uma série de marcos ideológicos que “pegaram”, tornaram-se referência para esses diferentes atores: a suposta existência de um movimento revolucionário de cunho gramsciano, corporificado no PT; que existiria a possibilidade da transformação automática de uma gestão presidencial sob a democracia burguesa em um regime de esquerda, o que remetem ao bolivarianismo; que as universidades e o conhecimento teria um filtro ideológico inevitável e que no caso brasileiro seria o de esquerda; que os diferentes movimentos de contestação ou de reconhecimento (caso das lutas pelo casamento LGBTs, por exemplo) possuem o mesmo sentido político comunista (conscientemente ou não). São variações sobre uma matriz anticomunista, que nem mesmo é original, já que é reprodução de discursos semelhantes estadunidenses ou europeus.

Sem resistência

O PT não cumpriu nenhum combate a esse tipo de discurso, inclusive, a partir de determinado momento, passou até a se apropriar dele de maneira pragmática, como elemento ideológico de distinção entre o seu programa e os demais, o que foi explorado amplamente na eleição. E por fim, a partir das Jornadas de 2013, há uma nova compreensão sobre as possibilidades da atuação do PT como gestor federal e mesmo sob os limites da democracia burguesa, o que se manifestou tanto na organização da esquerda quanto nos votos nulos e abstenções, abrindo espaços para a reação.

PT no governo

O PT das gestões federais é um partido que reivindica simbolicamente seu passado histórico como esquerda, bem longe de ter uma pauta ou um programa de esquerda. PT e CUT migraram para um projeto de ‘reforma dentro da ordem’ que evoluiu posteriormente para a ‘reprodução da ordem’ nos marcos do padrão de acumulação neoliberal e da autocracia burguesa reformada”. A “composição do blocão” tem a ver como o modo pelo qual o PT se conformou como gestor autorizado do Estado capitalista, ou seja, suas mudanças deram-se exatamente por sua institucionalização, seja nos marcos da democracia parlamentar-eleitoral ou pelo sindicalismo de Estado. Essa nova correlação de forças levou a ofensiva neoliberal a um novo padrão hegemônico, os limites que antes a esquerda balizava passaram a serem violentamente esgarçados. Mas é preciso deixar claro, somente a ascensão petista não explica a conformação desta “nova direita” fascista, sua emergência ocorre exatamente por ser o projeto histórico e social neoliberal incapaz de solucionar as suas crises.

Superdimensionamento

A questão da participação das igrejas neopentecostais na onda conservadora parece ter tido uma divulgação mais ampla que as demais, o que me parece que interessante, porque sua atuação é em relação às camadas mais empobrecidas da população brasileira (o subproletariado que falava Paul Singer já nos anos 80) em disputa direta com os mecanismos de transferência de renda federais, notadamente o Bolsa Família. Mas mesmo essas igrejas não atuam como bloco, pois a Igreja Universal colocou-se ao lado do PT em todo o processo eleitoral, o próprio Silas Malafaia participou ativamente das gestões de Lula com um discurso que até denunciava a Teologia da Prosperidade, que hoje reivindica (como já pode ser visualizado pela pesquisa em andamento de Jonas Koren).

Combustível neoliberal

O neoliberalismo serve como terreno que alimenta o fascismo. Se estes atores fascistas ainda não apresentam-se plenamente no Brasil é porque a conjuntura ainda não os fez “necessários”. Mas não podemos nos dar ao luxo de esperarmos, visto que a violência contra os que “não consentem” já está posta como prática política – e de maneira crítica, pois acumpliciada por um partido que se reivindica como “dos trabalhadores”. Não é preciso ir muito longe para visualizar o quadro terrível que já vivemos: no campo, a violência aberta contra indígenas, posseiros, movimentos sem-terra, militantes dos direitos humanos, etc.; nas cidades, a brutalidade do aparelho repressivo do Estado nas periferias, favelas, ocupações, remoções, manifestações, etc. Que os exemplos da Grécia, da Ucrânia e agora também do México sirvam como alerta.

Antecedentes da onda

Trabalho com a continuidade e transformações do fascismo durante os séculos XX e XXI, analisando este fenômeno como característico da fase imperialista do capitalismo, e que portanto, possui plena possibilidade de ressurgir. Eu entendo estes partidos e movimentos através de suas três “ondas” históricas, formulação de Jean-Yves Camus. A primeira onda histórica seria a do fascismo clássico. A segunda onda corresponde aos fascismos do Pós-Guerra, ou seja, o movimento de transformação exigido aos partidos e regimes (Portugal e Espanha) para sua manutenção, assinalando duas de suas maiores mudanças ideológicas: o abandono do corporativismo, típico da primeira onda, e a justificativa maior de sua existência marcada pelo anticomunismo preventivo, ou seja, a defesa de um modelo democrático altamente formal e restritivo, dentro da conjuntura geopolítica da Guerra Fria (o Tea Party remete sua origem a esta onda, cujo expoente naquele país foi o movimento macarthista).

Atualidade

A terceira onda ocorre durante e após os anos oitenta, quando os partidos fascistas passam a assumir o projeto econômico ultraliberal, assumindo uma postura de defesa “cultural” de cunho xenófobo. Embora estas peculiaridades assumam um formato “geracional”, na prática, isto não ocorre, pois, grupos com distintas características (assinaladas simplificadamente através das ondas) afloram no espectro fascista dentro de uma mesma temporalidade histórica. Em especial na contemporaneidade, cabendo a cada um destes grupos a atuação em uma frente específica, no “espectro” fascista da sociedade. Portanto, sua ascensão é de escala global e acompanha a crise estrutural do capital, onde o capital não oferece mais soluções para as questões estruturais globais, uma crise civilizacional.