Promulgação da Lei da Trapaça, por Pablo Neruda – 13/12/2016

Foi votada e aprovada hoje, em segunda votação no Senado Federal, a Proposta de Emenda Constitucional número 55 que, na prática, inviabiliza o cumprimento pelo governo, qualquer governo, por 20 anos, das cláusulas sociais constantes da Constituição Federal.

A Constituição será transformada, com esta emenda perversa, em uma colcha de retalhos incoerente, com artigos conflitantes. Por um lado declara como obrigatório o cumprimento de diversas cláusulas sociais e, por outro, nega os recursos – com as restrições aprovadas pela emenda 55 –  para atendimento destas cláusulas.

Como vai contra o espírito das cláusulas pétreas definidas pelos constituintes de 1988, a PEC 55 é, fundamentalmente, inconstitucional.

Como será impossível obter deste Supremo Tribunal Federal apequenado um gesto de coragem declarando sua inconstitucionalidade, bastará o Senado Federal promulgar a indigitada emenda e ela já estará valendo.

Emendas à Constituição não dependem de sanção presidencial. O ilegítimo não precisará sujar ainda mais suas mãos. Esta tarefa ficará para Renan Calheiros, que completará o trabalho sujo iniciado por Temer e seus ministros amestrados e pela Câmara Federal de Cunha e Rodrigo Maia.

Toda vez que o Congresso aprova, a toque de caixa, sem ampla discussão com a sociedade, leis que representam um estupro da Constituição de 88 fico indignado e me vem à memória o poema de Pablo Neruda intitulado “Promulgação da Lei da Trapaça”. Diz tudo. Leia abaixo:

Promulgação da Lei da Trapaça

Eles se declararam patriotas.
Nos clubes se condecoraram
e foram escrevendo a história.
Os Parlamentos ficaram cheios
de pompa, depois repartiram
entre si a terra, a lei,
as melhores ruas, o ar,
a Universidade, os sapatos.

Sua extraordinária iniciativa
foi o Estado erigido dessa
forma, a rígida impostura.

Foi debatida, como sempre,
com solenidade e banquetes,
primeiro em círculos agrícolas,
com militares e advogados.
Por fim levaram ao Congresso
a Lei suprema, a famosa,
A respeitada, a intocável
Lei da Trapaça.

Foi aprovada.

Para o rico a boa mesa.

O lixo para os pobres.

O dinheiro para os ricos.

Para os pobres o trabalho.

Para os ricos a casa grande.

O tugúrio para os pobres.

O foro para o grão-ladrão.

O cárcere para quem furta um pão.

Paris, Paris para os señoritos.

O pobre na mina, no deserto.

O senhor Rodríguez de la Crota
falou no Senado com voz
melíflua e elegante.

“Esta lei, afinal, estabelece
a hierarquia obrigatória
e, antes de tudo, os princípios
da cristandade.

Era tão necessária quanto a água.
Só os comunistas, chegados
do inferno, como se sabe,
podem combater este Código
da Trapaça, sábio e severo.

Mas essa oposição asiática,
vinda do sub-homem, é simples
refreá-la: todos na cadeia,
no campo de concentração,
assim ficaremos somente
os cavalheiros distintos
e os amáveis yanacones*
do Partido Radical.”

Vibraram os aplausos
dos brancos aristocráticos:
que eloquência, que espiritual
filósofo, que luminar!

E foi cada um encher correndo
Os bolsos com seus negócios,

Um açambarcando o leite,
outro dando o golpe no arame,
outro roubando no açúcar,
e todos se chamando em coro
patriotas com o monopólio
do patriotismo, consultado
também na Lei da Trapaça.

  • yanacones: índios araucanos, dóceis, a serviço dos conquistadores espanhóis.

Em, Canto Geral, Pablo Neruda
Tradução: Paulo Mendes Campos

A grande alegria, Pablo Neruda

A sombra que indaguei já não me pertence.

Eu tenho a alegria duradoura do mastro,

a herança dos bosques, o vento do caminho

e um dia decidido sob a luz terrestre.

 Não escrevo para que outros livros me

             aprisionem,

nem para encarniçados aprendizes de lírio,

mas para singelos habitantes que pedem

água e lua, elementos da ordem imutável,

escolas, pão e vinho, guitarras e ferramentas.

Escrevo para o povo ainda que ele não possa

ler a minha poesia com seus olhos rurais.

Virá o instante em que uma linha, a aragem

que removeu a minha vida, chegará aos seus

             ouvidos,

e então o labrego levantará os olhos,

o mineiro sorrirá quebrando pedras,

o caldeireiro limpará a fronte,

o pescador verá melhor o brilho

dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,

o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio

do aroma do sabão, olhará meus poemas,

e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.

 Isso é bastante, essa é a coroa que quero.

 Quero que à saída da fábrica e das minas

esteja a minha poesia aderida à terra,

ao ar, à vitória do homem maltratado.

Quero que um jovem ache na dureza

que construí, com lentidão e com metais,

como uma caixa, abrindo-a, cara a cara, a vida,

minha alegria, nas alturas tempestuosas.

A Areia Traída – Pablo Neruda


Talvez o olvido sobre a terra como uma capa
possa desenvolver o crescimento e alimentar a vida
(pode ser) como o húmus sombrio no bosque.

 Talvez, talvez o homem como um ferreiro acuda
à brasa, aos golpes de ferro sobre o ferro,
sem entrar nas cegas cidades do carvão,
sem fechar os olhos, precipitar-se abaixo
em fundições, as águas minerais, catástrofes.

 Talvez, porém meu prato é outro,
meu alimento é diverso:
meus olhos não vieram para morder olvido;
meu lábios se abrem sobre todo o tempo, e todo o tempo
não só uma parte do tempo
gastou as minhas mãos.

 Por isso te falarei destas dores que quisera afastar,
te obrigarei a viver uma vez
mais entre suas queimaduras,
não para nos determos como numa
estação, ao partir,
nem tampouco para golpear com o rosto a terra,
nem para enchermos o coração de água salgada,
mas para caminhar conhecendo,
para tocar a retidão com decisões infinitamente carregadas de sentido,
para que a severidade seja uma condição da alegria,
para que assim sejamos invencíveis.

Promulgação da Lei da Trapaça – Pablo Neruda

Eles se declararam patriotas.
Nos clubes se condecoraram
e foram escrevendo a história.
Os Parlamentos ficaram cheios
de pompa, depois repartiram
entre si a terra, a lei,
as melhores ruas, o ar,
a Universidade, os sapatos.

Sua extraordinária iniciativa
foi o Estado erigido dessa
forma, a rígida impostura.
Foi debatida, como sempre,
com solenidade e banquetes,
primeiro em círculos agrícolas,
com militares e advogados.
Por fim levaram ao Congresso
a Lei suprema, a famosa,
A respeitada, a intocável
Lei da Trapaça.
Foi aprovada.

Para o rico a boa mesa.

O lixo para os pobres.

O dinheiro para os ricos.

Para os pobres o trabalho.

Para os ricos a casa grande.

O tugúrio para os pobres.

O foro para o grão-ladrão.

O cárcere para quem furta um pão.

Paris, Paris para os señoritos.

O pobre na mina, no deserto.
O senhor Rodríguez de la Crota
falou no Senado com voz
melíflua e elegante.
“Esta lei, afinal, estabelece
a hierarquia obrigatória
e, antes de tudo, os princípios
da cristandade.
Era tão necessária quanto a água.
Só os comunistas, chegados
do inferno, como se sabe,
podem combater este Código
da Trapaça, sábio e severo.
Mas essa oposição asiática,
vinda do sub-homem, é simples
refreá-la: todos na cadeia,
no campo de concentração,
assim ficaremos somente
os cavalheiros distintos
e os amáveis yanacones*
do Partido Radical.”

Vibraram os aplausos
dos brancos aristocráticos:
que eloquência, que espiritual
filósofo, que luminar!
E foi cada um encher correndo
Os bolsos com seus negócios,
Um açambarcando o leite,
outro dando o golpe no arame,
outro roubando no açúcar,
e todos se chamando em coro
patriotas com o monopólio
do patriotismo, consultado
também na Lei da Trapaça.

  • yanacones: índios araucanos, dóceis, a serviço dos conquistadores espanhóis.

Em, Canto Geral, Pablo Neruda
Tradução: Paulo Mendes Campos