Passei três semanas no Amazonas, viajando sozinho. Se é que é possível dizer que viajei sozinho, pois sempre estive acompanhado de gente que me quer bem, amigos e familiares que encontrei pelo caminho. Gente que amo e que me constitui. Fui com dois propósitos nessa imersão solitária. O primeiro, visitar meu pai. Estar com ele por alguns momentos, já ciente da situação de saúde e cuidados na qual ele se encontrava. Depois, fui com o objetivo de iniciar uma reforma inadiável em nossa casa à beira do rio, em Freguesia do Andirá, no interior do município de Barreirinha, a quase 350 km de Manaus. Um dia de barco pra chegar até lá. A casa me pede zelo já há um tempo e estou há uns meses organizando uma campanha para arrecadar recursos para as obras. Consegui uma parte do dinheiro através da generosidade e da compreensão de muitos amigos e conhecidos, todos amantes da amizade, da poesia, da Amazônia e da obra literária de meu pai. Todos sonhadores como eu, que sabem, como meu pai, que arte e cultura geram evolução individual e progresso social. Embarquei no final de Dezembro para Manaus, sendo acolhido pela minha família amazonense que tanto quero bem. Fui ao apartamento de meu pai e Pollyanna. Ele já estava praticamente sem se levantar. Fui até o quarto. Quando ouviu minha voz, comentou: “voz bonita a do meu filho”. Com a memória dissolvida pelo tempo (do qual não se corre) e pelas neuropatias, perguntou meu nome e se eu tinha filhos. Disse que me chamava Thiago e que tinha duas filhas. Nossas mãos entrelaçadas num carinho suave e ancestral. “Mas então nós temos o mesmo nome”, ele notou. Falei que isso tinha sido invenção dele, pôr meu nome Thiago Thiago de Mello. No que ele, após um certo silêncio, falou baixinho: foi pra ficarmos juntos até mesmo no nome. “Cuida bem das suas filhas”. (Eu me emocionei muito nessa hora porque queria dizer a ele que se sou um bom pai é porque ele foi o melhor formador e educador que eu pude ter). Seguimos nossa conversa cheia de silêncios e respirações. Quis saber o que eu fazia da vida. “Canções e poemas”, não titubeei. Ele fez que sim com a cabeça e repetiu “canções e poemas, isso”. Perguntei se eu estava indo no caminho certo. “Certíssimo”, ele me disse com a voz grave de trovão adormecido. Comentei que estava indo para Barreirinha cuidar da nossa casa, pedi a sua benção (“Deus lhe abençoe”, me beijando a mão) e segui o meu caminho rumo ao rio Andirá, dos Saterês-maués. Fiquei semanas num país submerso, me nutrindo do passado, de banho de cheiro, tucumãs, ovas de curimatã, sombra de castanheira, amizades verdadeiras e caldeiradas de tucunaré e tambaqui. As obras começaram. Retiramos as vigas podres. Os esteios corroídos substituímos por madeira nova. Passamos óleo queimado para afugentar o cupim de terra traiçoeiro. Compramos tinta, cimento, ferro. Vieram os trabalhadores. As telhas chegaram de Parintins, presente de Antonio Beti, cuja doação jamais esquecerei. Recebi tanto em minha jornada pelas águas. Fiz um trabalho firme, aguentando o rojão sob chuva e sol quente. Barreirinha, onde meu umbigo está enterrado, me acolheu como sempre. Vi a felicidade nos olhos de gente simples, hospitaleira, contadora de histórias. É com meus irmãos e irmãs ribeirinhos que meu espírito se molda e evolui. Na verdade estava, sem saber, me preparando para um adeus após uma longa despedida. Fortaleci minha alma estando naquele lugar, berço meu, que aprendi a amar com meu pai e minha mãe desde que pra lá fui levado aos 6 meses de idade. Voltei pra Manaus e fui ao apartamento ver meu pai. Ele não me respondeu, já completamente dentro do seu próprio mundo, distante daqui. Pedi um violão e, então, comecei a tocar. As lágrimas caíram, eu sentado e ele deitado na cama. Tirei do baú as canções que sempre cantávamos juntos: “Azulão”, “Por que tu te escondes”, “Linda vida”, “Pai velho”, “Quem me levará sou eu”, “Faz escuro, mas eu canto”. Fiquei ali cantando por mais de trinta minutos, a primeira vez em nossas vidas que ele não cantou junto comigo. Foi um concerto de despedida. A nossa despedida tinha que ser com música e poesia, universo no qual sempre nos encontrávamos. Saí dali e fui comer um pacu assado de brasa em sua homenagem. Botei bastante pimenta murupi e tomei um suco de taperebá pra aliviar o peito. No dia seguinte, logo cedo pela manhã, papai atravessou o rio da vida. Morreu dormindo, bravo merecedor. Parece que estava só me esperando para seguir à Casa do Infinito. Sincronicidade astral, projeto dos deuses, dádiva da natureza. Ele foi em paz. Estamos de luto, mas em breve cantaremos com alegria, como ele sempre nos ensinou.”
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Thiago de Mello
Por Eric Nepomuceno (jornalista e escritor)
Um adeus: Thiago de Mello
Uma homenagem ao poeta Thiago de Mello, falecido nesta sexta-feira (14).
Na manhã desta sexta-feira, 14 de janeiro, sou massacrado pela notícia de que um dos maiores e mais generosos corações que conheci na vida, o do poeta Thiago de Mello, parou de bater.
Amarga coincidência: também num 14 de janeiro, o de 2014, que caiu numa terça-feira, foi-se embora meu irmão Juan Gelman, o argentino que permanece como um dos maiores poetas do idioma castelhano dos últimos pelo menos 80 anos.
A última notícia que tive de Thiago de Mello foi através de um amigo que era parente próximo dele. Contou que sua memória, que sempre considerei infinita, estava indo embora rapidamente. E que isso acontecia justamente quando Thiago estava trabalhando num livro de memórias.
Pois agora essa memória se foi de vez.
Conheci Thiago de Mello em Buenos Aires, por onde ele passou rapidamente depois do golpe sangrento que liquidou Salvador Allende e a democracia no Chile, onde ele vivia exilado pela ditadura instalada em 1964 aqui no Brasil. Quem me levou para conhecer Thiago foi, sempre ele, o irmão mais velho que a vida me deu, Eduardo Galeano.
Lembro de um homem angustiado, indignado, mas cheio de fé na vida. Falamos do Brasil distante e de seus tempos chilenos, de sua amizade muito próxima com Pablo Neruda e Violeta Parra. De como foi ter traduzido Neruda para o português do Brasil e ter sido por Neruda traduzido para o castelhano. Falamos da sua dor por ter visto sua pátria adotiva ser destroçada.
Pouco depois ele foi para Lisboa, onde tornei a encontrá-lo em 1976, quando foi a minha vez de me refugiar de outro golpe sangrento, o do general Jorge Videla, que mergulhou a Argentina no breu.
A partir desse reencontro nos aproximamos para sempre. Mesmo quando passávamos um longo tempo sem nos ver, quando nos encontrávamos era sempre como se tivéssemos estado juntos domingo passado. Assim foi em Cuba, no México, em Manaus, no Rio, onde fosse.
Thiago de Mello foi figura crucial para a minha e muitas outras gerações, e não só no Brasil. Aliás, tenho a sensação de que ele foi e é muito mais incensado lá fora, na América Hispânica, do que aqui.
Tenho, sim, oceanos e cordilheiras de cálidas lembranças desse bom, generoso e solidário amigo.
Uma, porém, tem especial espaço na minha memória.
Foi em Lisboa, em meados de 1978. Tivemos uma longa e dolorosa conversa no modesto apartamento em que Thiago vivia.
Ele me contou, pedindo segredo, que ia voltar para o Brasil. Ainda não havia lei de anistia, e Thiago era odiado – com razão – pela ditadura.
Eu disse a ele que era uma loucura. Ele respondeu dizendo que naquela loucura havia dignidade e o direito de voltar ao seu país.
E então fez uma pergunta direta: “Vou chegar e vão me prender. Levo comigo minha caderneta de telefones e endereços. O seu nome está nela. Quer que eu borre?”.
Respondi que de jeito nenhum. Eu estava fora, não podia voltar, não podiam fazer nada comigo.
“Pense no seu pai, na sua família”, advertiu Thiago. Mantive minha resposta. Da mesma forma que mantive com ele minha amizade, e da mesma forma que agora, com sua partida, mergulho numa saudade amazônica.
Adeus, poeta. Matéria do 247
Thiago de Mello: homenagem do Quinho

Thiago de Mello – Parte 2
Thiago de Mello – Parte 1
39 Anos de um Cidadão Brasileiro, Thiago de Mello
39 Anos de um Cidadão Brasileiro
Pois aqui estou
cara a cara
com a vida
Dia 31 de março,
confiro meus documentos.
Cidadão brasileiro,
legítimo: sei que a lei
mudou, mas não mudou tanto.
Alguma coisa ainda vale
no chão amado da infância,
chão com cheiro de marirana
e flor de cajueiro,
chão por onde hoje campeia,
solta e grossa,
a botina rombuda.
Está na certidão:
natural do Amazonas,
barrancos do Bom Socorro.
(Um dia achei no capinzal
um canudo enferrujado
e fiquei sabendo que meu avô
tinha sido coronel, era um diploma,
eram os tempos da Guarda Nacional,
meu avô nem se lembrava, mas gostava do rei.)
Pois brasileiro, caboclo,
39 Anos. Feitos ontem.
É. Mas não chegou ninguém,
remando de canoa. Ninguém veio
pelas águas dos remansos,
- curimatãs, tucumãs –
ninguém chegou lá de longe
varando a noite do vento
para amanhecer na festa
do meu dia aniversário.
É. São 39 anos.
Casado mais de uma vez,
mas a lei diz que é uma só;
não vou dizer o contrário,
vou vivendo a lei da vida
pela mão da companheira,
que sabe muitas magias,
de ternura faz estrelas,
disfarça flor em canção,
cada dia é mais menina,
como a estrela matutina.
Pois brasileiro casado,
e pai de dois filhos homens,
O menor ficou tão longe,
nem sabe o lugar que tem
no fundo azul do meu peito.
O outro vem vindo comigo:
é o bem maior de uma vida
que se acabou já faz tempo,
nem parece que passou.
Com este menino conto,
todos podemos contar.
Seu perfil já vai no rumo,
vai ser brasa de mandar.
Dói não poder dar mais,
e amor que sobra dói,
mas é amor, nunca se estraga.
Folha corrida não há.
A de serviços é pouca,
nem sei se vale. O que vale
é este papel esquecido,
todo comido de tempo,
que só me acende desgostos
e durezas dos meus dias
de serviço militar.
Provo que sou reservista,
dei muito tiro no muro,
desmontei muito fuzil,
decorei o regulamento,
bom mesmo era rastejar
no cheiro fresco da lama.
Fiz meias-voltas, volver,
fiz tudo para entender
a alma daquele tenente:
estava sempre engomado,
limitava-se ao comando,
nunca nenhuma palavra
de gratuita convivência.
Às vezes vinha a cavalo,
solene e só, silencioso
na altura do seu desprezo.
Foi o ser mais solitário,
o mais feroz que eu já vi.
Aqui tenho o documento.
Reservista. De segunda,
como convém, se convém.
Reservista é casado,
brasileiro do Amazonas.
De eleitor, além do título
— que de repente se ameaça
de nenhuma serventia —
guardo a alegria de sempre
ter escolhido sozinho,
mas guardo a pena de nunca
ter dado o amor do meu voto
a um homem do povo e ao povo
num homem: assim como Arraes.
A profissão é a de poeta
ou de empinador de papagaios
o que vem a dar no mesmo.
Podia dar outros títulos
que me deram para usar
nos meus trabalhos de vida.
Mas cara a cara, defronte
do espelho enxuto, a poesia
mais que ofício é contingência
da minha vida de homem.
Nem por isso tenho muito
para o final deste rol.
Algumas canções de rua,
mas as moças se esqueceram,
umas canções de acalanto,
que uns meninos ainda sabem.
O resto é a literatura:
oito livros publicados,
dos quais, tirante os cantares,
uns de amigo, outros de amor
- tudo o mais são geometrias
perguntando pelo ser.
Pois deixei de perguntar
e o ser vai muito bem,
vai sendo simplesmente
o que é, sem se indagar,
tratando de ser bom,
de ser também um pouco
para os outros que vão
sendo ao lado o que são;
o ser vai trabalhando
para que todos sejam
capazes da alegria
que deve ser geral.
Deixando o ser livre limpo,
chegaram os cantos que eu amo.
De todos os que mais valem,
são os poemas sobre a rosa
na parede da prisão,
é a canção da rebeldia
dos fonemas da alegria,
é o canto companheiro
chegando do ao coração,
é a toada pro menino
que vai levando o pendão.
Por isso estou aqui com a minha vida,
na cordilheira longe do meu povo,
do qual jamais tão perto estive tanto.
Cidadão brasileiro,
natural do Amazonas,
39 anos, casado,
eleitor e reservista,
pai de dois filhos e poeta,
que ficou desempregado.
Nunca no entanto tive tanto trabalho,
trabalho o tempo inteiro e não me canso
porque trabalho cantando
na construção da manhã:
manhã geral de amor que vai chegar.
Santiago do Chile,
31 de março de 1965
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).
4.a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira