Deixe-os comer a poluição, por James K. Boyce

A trágica crise em Flint, Michigan, onde os moradores foram envenenados por contaminação por chumbo, não é apenas sobre água potável. E não é apenas sobre Flint. É sobre etnias e classes econômicas, e sobre a contradição gritante entre o sonho americano da igualdade de direitos e oportunidades para todos e o pesadelo americano de desigualdade de riqueza e poder.

Publicado no Institute for New Economic Thinking e no Triple Crisis

A ligação entre a qualidade ambiental e a desigualdade econômica foi explicitada mais de duas décadas atrás, em um memorando assinado por Lawrence Summers, então economista-chefe do Banco Mundial, trechos do qual apareceram em The Economist, sob o título provocativo, “Deixe-os comer a poluição.

Partindo da premissa de que os custos da poluição dependem dos “ganhos não cobrados de aumento da morbidade e mortalidade “, Summers concluiu que “a lógica econômica de despejar uma carga de lixo tóxico no país de mais baixos salários é impecável e devemos enfrentar essa realidade”.

Nota do tradutor: (Explicando a lógica absurda do Sr. Summers: como os custos da poluição em termos de doenças e mortes são calculados em termos do valor de uma vida humana e, seguindo essa lógica perversa, a vida de pessoas pobres, vivendo em países menos desenvolvidos, vale menos, os custos da poluição calculados com base nessa premissa absurda seriam menores. As pessoas que ficariam doentes ou morreriam seriam mais “baratas” – sem duplo sentido – do que os americanos ricos). 

Lógica diferente é suposta para as políticas ambientais dos EUA. A Lei Federal de Controle da Poluição da Água determina que os padrões de qualidade da água devem “proteger a saúde pública” – ponto. O seu objetivo, como o ex-administrador da EPA Douglas Costle afirmou uma vez, é “a proteção da saúde de todos os americanos.”

Segundo a lei, a água limpa é um direito e não algo a ser fornecido apenas na medida justificada pelo poder de compra da comunidade em questão.

Mesmo quando os cálculos de custo-benefício são exercidos sobre a política ambiental, a EPA usa um “valor de uma vida estatística” uniforme – atualmente cerca de US $ 8,7 milhões de euros – para cada pessoa no país, em vez de diferenciação entre os indivíduos com base em rendimentos ou outros atributos.

Na prática, porém, o papel dos custos e benefícios na formação de políticas públicas depende muitas vezes do poder daqueles a quem se refere. Quando aqueles no fim da linha são pobres, os seus interesses – e suas vidas – muitas vezes contam para menos, tanto quanto o memorando de Summers recomendou. E quando eles são minorias raciais e étnicas, o processo político, muitas vezes, desconta o seu bem-estar ainda mais.

Foi assim que Flint – a cidade com a segunda maior taxa de pobreza no país (superado apenas por Youngstown, Ohio), onde mais de metade da população é negra – acabou com chumbo em seu abastecimento de água até 866 vezes acima do limite legal . Os níveis em casas de alguns moradores foram altos o suficiente para a EPA classificar a água como “lixo tóxico”.

A contaminação foi o resultado de medidas de corte orçamentário impostas pela “gestão de emergência” da cidade, que foi instalada pelo governador de Michigan Rick Snyder, com poder para substituir o conselho municipal eleito.

Para economizar dinheiro, o abastecimento de água da cidade foi mudado em 2014 para o Rio Flint, fortemente poluído. Ao mesmo tempo, as autoridades pararam de adicionar produtos químicos de tratamento para controlar a corrosão nos velhos canos de chumbo do sistema. Quando os moradores se queixaram da água descolorida e do mau-cheiro que sai de suas torneiras, e os pesquisadores encontraram evidências de contaminação por chumbo, as suas preocupações foram deixadas de lado pelos agentes públicos.

O Governador Snyder nega que o racismo ambiental tenha alguma coisa a ver com a situação dos moradores de Flint. Há ainda algumas pessoas que vão dizer-lhe que a Terra é plana, também.

Em um editorial principal, o New York Times acusou o governo de “indiferença depravada” em relação aos residentes de Flint. Mas as raízes da tragédia são mais profundas do que as falhas de políticos ou funcionários individuais. O que estamos vendo hoje em Flint é um resultado das desigualdades depravadas – desigualdades que estão corroendo o corpo político em âmbito nacional, juntamente com os tubos de água em Flint.

Flint não foi sempre assim. Quando eu morava lá como uma criança no início de 1950, os seus trabalhadores ganhavam os maiores salários industriais no país. O sonho americano estava vivo. Mas, nas décadas que se seguiram a cidade foi detonada por políticas macroeconômicas que dizimaram as indústrias de manufatura dos Estados Unidos: a incapacidade de construir um sistema nacional de saúde para aliviar os empregadores dos custos crescentes de seguros privados e as debilitantes políticas raciaisd e fiscais de segregação metropolitana.

O que vemos em Flint é apenas um pequeno passo no surgimento de “zonas de sacrifício” nos recônditos da América, com o alargamento dos abismos econômicos e políticos e a violação sistemática do direito a um ambiente limpo.

Não é o suficiente aprovar um a legislação para proteger a saúde pública de todos os americanos. Boas leis que não são aplicadas não são mais do que boas intenções.

Para um governo funcionr – e mesmo, ao que parece, para um sistema de água funcionar – precisamos de uma democracia em funcionamento.

O envenenamento de Flint é um sintoma da profunda crise da desigualdade que afeta a todos nós. E é uma oportuna chamada de atenção à medida em que estamos na época da eleição de 2016 para presidente da República nos EUA.

James K. Boyce é professor de economia na Universidade de Massachusetts-Amherst.

Tradução: Paulo Martins

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