Em panfleto publicado na Folha de São Paulo no dia 3/7/2016, dois procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato debocham da decisão do ministro Dias Tofolli de conceder habeas corpus ao ex-ministro Paulo Bernardo e apresentam informação parcial em seu texto.
Omitem informações relevantes deliberadamente ou as desconhecem, o que considero mais provável.
Temos hoje, no Brasil, procuradores militantes, especialistas em utilizar meios de comunicação cúmplices para vazamentos seletivos, operações quasi- militares espalhafatosas, entrevistas bombásticas e artigos de jornal que aumentam a ignorância e disseminam o ódio.
Não nutro nenhuma simpatia, nem política, nem intelectual, seja pelo ministro Dias Toffoli, seja pelo ex-ministro Paulo Bernardo. E, convenhamos, a falsa erudição ensaboada do ministro Dias Toffoli não o faz carismático nem para os fanáticos. O ex-ministro Paulo Bernardo não fica atrás na falta de carisma. Entretanto, aceitar sem discutir a forma de operação dos procuradores da Lava Jato é um perigo muito grande para nossa frágil democracia.
Não precisamos de novos Marats, novos L’Ami Du Peuple, listas de condenados pela imprensa e prisões preventivas irregulares.
A Lava Jato não precisa da mídia e dos holofotes para atuar com correção e dentro da lei e das regras. Ao contrário.
Uns justiceiros tomam decisões discutíveis, outros pedem prisão espalhafatosa com peças de acusação copiaecola, outros vazam gravações ilegais e outros escrevem panfletos nos jornais.
Na minha simples e humilde opinião o que os Srs. procuradores da Lava Jato estão fazendo, para utilizar a mesma imagem que eles usaram em seu artigo, é um espetáculo digno de uma cerimônia de abertura de Jogos Olímpicos.
Procuradores e juízes deveriam falar somente nos autos do processo. Procuradores e juízes estrelas, amigos da grande mídia empresarial, em flerte e promiscuidade com o mundo político, concorrem para denegrir ainda mais a imagem da justiça.
Compartilho, a seguir, o artigo de Alberto Zacharias Toron, defendendo o habeas corpus concedido pelo ministro Toffoli e, logo abaixo, o panfleto publicado na Folha de São Paulo pelos procuradores Carlos Fernando, já famoso, e Diogo Castor.
Paulo Martins
OPINIÃO
Habeas Corpus de ofício não é ginástica, mas garantia processual
4 de julho de 2016, 10h27
Por Alberto Zacharias Toron
Quem leu o instigante artigo “Medalha de ouro para o habeas corpus” (Folha de S.Paulo deste domingo, 3 de julho), assinado por dois festejados Procuradores da República, membros da força-tarefa da Lava Jato, não teve dúvidas: a concessão do habeas corpus para o ex-ministro Paulo Bernardo na Reclamação 24.506 representou uma ginástica olímpica (no mau sentido); verdadeira mágica; fato inédito e inacessível para brasileiros comuns (ordinary people).
Argutamente, o artigo não fala dos fundamentos que levaram o ministro Dias Toffoli a conceder a medida liberatória. Critica a forma, dando a entender que houve privilégio para o marido da senadora e que as instâncias anteriores (TRF e STJ) não se manifestaram. Erra nas duas pontas.
Primeiro: juízes e tribunais podem conceder habeas sempre “que verificarem que alguém sofre coação ilegal”. Não há necessidade de pedido da parte. Está no Código de Processo Penal promulgado em pleno Estado Novo, portanto há mais de 70 anos! Aliás, disso já cuidava o artigo 342 do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, ainda ao tempo do Império.
Trata-se de um dever do magistrado zelar pela liberdade do cidadão, como assinala Guilherme Nucci no seu Habeas Corpus[1], também citado pelo ministro Toffoli na sua bem cuidada decisão. Mais importante: o deferimento da ordem de ofício, que se reputa uma espécie de “mágica”, vem apoiado em inúmeros precedentes da própria Suprema Corte que, também em Reclamações, procederam da mesma maneira. São citados: Rcl 2.636/RJ, Pleno, relator o ministro Gilmar Mendes, DJ de 10/2/06; Rcl 21.649/SP-AgR, Segunda Turma, de minha relatoria DJe de 18/3/16; Rcl 1.047/AM-QO, Pleno, relator o ministro Sidney Sanches, DJ de 18/2/2000; e Rcl 412/SP, Tribunal Pleno, relator o ministro Octavio Gallotti, DJ de 26/2/93.
Portanto, sob o aspecto estritamente formal, não houve nenhuma ginástica olímpica e, tampouco “mágica” na concessão da ordem do habeas corpus de ofício. A medida é possível e tem sido concedida. Para o leitor comum ___ que não tem afinidade com a técnica do processo ___ é preciso esclarecer que o que foi apontado como uma ginástica, supostamente inacessível ao homem comum, é mais frequente de ocorrer do que se possa imaginar.
É bom lembrar que a 1ª Turma do STF, pela voz dos ministros Roberto Barroso e Luiz Fux, cujas posições restritivas ao writ são de todos conhecidas, concedeu a mesma medida sem que as instâncias anteriores houvessem apreciado as matérias. No primeiro caso para absolver um deputado não reeleito, mesmo quando a Corte já não detinha competência para julgá-lo (Ação Penal 568) e, no segundo, para colocar em liberdade uma presa com excesso de prazo (HC 120.436).
O artigo dos procuradores da República, pesa constatar, lança uma espécie de suspeição sobre a decisão e, pior, instila o veneno do ódio aos que não são pobres ou estão na miséria, ao dizer que só um privilegiado consegue tal benefício. Com isso, esconde a discussão sobre a ilegalidade praticada pelo juiz de primeiro grau. É como se os desmazelos que recaem sobre a população carcerária mais pobre devessem se repetir sobre os novos personagens do mundo do crime porque “sempre foi assim”. Uma espécie de isonomia perversa, justo quando as Defensorias Públicas dos estados e da União começam, com vigor, a agir em prol dos desvalidos. Na verdade, quer-se a prisão a qualquer custo; como forma de punição antecipada, com roupagem de prisão preventiva.
Se, pela forma, vê-se que a decisão questionada não ostenta nenhum ineditismo, o seu conteúdo revela pleno acerto. É que o magistrado de primeiro grau justificou a prisão preventiva com base na ideia de não ter sido localizada “expressiva quantia em dinheiro desviada dos cofres públicos”, o que representaria “risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira, a qual certamente é agravada pelos desvios decorrentes de cumulados casos de corrupção”.
Ocorre —disse o ministro Dias Toffoli — que a prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento para compelir o imputado a restituir valores ilicitamente auferidos ou a reparar o dano. Para isso há outras medidas cautelares de natureza real, como o sequestro ou arresto de bens e valores que constituam produto do crime ou proveito auferido com sua prática. Tampouco serve para punir antecipadamente, sem o devido processo. Daí a lembrança, na decisão de antigo ensinamento do decano da Corte, ministro Celso de Mello, no sentido da impossibilidade de se utilizar a prisão preventiva como instrumento de antecipação de pena:
“Impõe-se advertir, no entanto, que a prisão cautelar (“carcer ad custodiam”) – que não se confunde com a prisão penal (“carcer ad poenam”) – não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar “em benefício da atividade desenvolvida no processo penal” (BASILEU GARCIA, “Comentários ao Código de Processo Penal”, vol. III/7, item n. 1, 1945, Forense), tal como esta Suprema Corte tem proclamado:
“A PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR – NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU.
- A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia.
A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal.”
(RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
A ilegalidade era manifesta na decretação da prisão. Deveria o juiz da Suprema Corte, por amor ao juiz de primeiro grau, manter a preventiva? Deveria, por apego ao espírito burocrático, deixar o sujeito preso até que as instâncias inferiores se pronunciassem? A resposta parece intuitiva.
Todavia, como em geral a grande população não distingue entre ‘prisão-castigo’ e ‘prisão-processual’, cria-se um alarde em torno da soltura, que parece ser uma declaração de inocência, quando não é! No mensalão a totalidade dos acusados ficou solta durante o processo, mas a maioria veio a ser condenada e, após o trânsito em julgado da condenação, cumpriu pena (alguns ainda cumprem).
Ao criticar o excesso de prisões preventivas, o colunista da Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman (Constrangimento prisional, 2/7) advertiu que boa parte destas não atendem, “senão sob interpretação forçada, as hipóteses em lei”. É o caso da prisão revogada em boa hora.
[1] Rio de Janeiro: ed. Forense, 2014, p. 160.
Alberto Zacharias Toron é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, ex-diretor do Conselho Federal da OAB; ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (95/96); membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e professor de Processo Penal da Faap.
Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2016, 10h27
Abaixo, o artigo dos procuradores da Força-Tarefa da Operação Lava Jato, contestado pelo Dr. Toron:
CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA E DIOGO CASTOR DE MATTOS
Medalha de ouro para o habeas corpus
03/07/2016 02h00
Talvez em razão da proximidade do início dos Jogos Olímpicos no Brasil, a recente decisão do ministro do STF Dias Toffoli, que determinou a soltura do ex-ministro Paulo Bernado, nos fez relembrar Daiane dos Santos, grande ginasta brasileira que representou honrosamente o Brasil nos Jogos de Atenas, Pequim e Londres.
Daiane notabilizou-se mundialmente por criar e executar com perfeição o duplo twist carpado, uma variação do salto twist (popularmente conhecido como uma pirueta de giro em torno de si) seguido de um mortal duplo.
E por qual motivo nos veio à mente uma relação tão pouco usual? Quem sabe pela ginástica jurídica que motivou a decisão, verdadeiro habeas corpus duplo twist carpado, libertando o ex-ministro dos governos Lula e Dilma, preso preventivamente pela Justiça Federal de São Paulo com base em provas do recebimento de cerca de R$ 7 milhões em propina.
Segundo a Constituição Federal, o remédio jurídico contra essa prisão é a interposição de habeas corpus perante o Tribunal Regional Federal da Terceira Região, no qual o juiz naturalmente competente irá analisar o caso.
Se o Tribunal mantivesse a prisão, caberia, ainda segundo o texto constitucional, recurso em única e última instância ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). Entretanto, isso parece valer somente para os brasileiros comuns, isto é, aqueles que não estão protegidos pelo foro privilegiado.
Por isso a defesa de Paulo Bernardo preferiu trilhar outro caminho. Ajuizou diretamente uma reclamação constitucional no STF (Supremo Tribunal Federal), alegando que a investigação invadiu a competência da Suprema Corte, já que os fatos envolvendo Paulo Bernardo estariam umbilicalmente ligados à senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), sua mulher.
O detalhe, contudo, é que foi o próprio ministro Toffoli quem cindiu as investigações do casal, mantendo na Corte Suprema apenas o inquérito da senadora, com o envio da investigação contra Paulo Bernardo, que não tem foro privilegiado, para a primeira instância de São Paulo (apesar de a origem das investigações ter-se dado na Operação Lava Jato, em Curitiba).
Dessa forma, o que a defesa fez foi pedir uma “des-cisão” sobre a separação já realizada pelo próprio STF, pedido que foi indeferido pelo relator.
Entretanto, na mesma decisão, o ministro Dias Toffoli, em apenas dois dias (segundo a Fundação Getulio Vargas do Rio, o mesmo ministro leva em média 29 dias para analisar pedidos liminares), sem oitiva do procurador-geral da República, concedeu habeas corpus em favor de Paulo Bernardo.
Aplicou um salto duplo twist carpado nas duas instâncias inferiores, os juízes naturais competentes, e nos inúmeros outros habeas corpus das pessoas “comuns” que esperam um veredito há muito mais tempo.
Uma verdadeira ginástica jurídica, digna da medalha de ouro que nossa Daiane dos Santos não conseguiu obter. Em outras palavras, criou-se o foro privilegiado para marido de senadora.
Essa decisão, infelizmente, mina a confiança da população na Justiça criminal, pois, não bastasse a própria regra não republicana do foro privilegiado, ainda demonstra o pouco apreço que se tem por aqueles que estão realmente próximos dos fatos, neste caso o juiz da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, Paulo Bueno de Azevedo, bem como pelo regular processamento dos recursos pelas instâncias superiores.
Fiquemos atentos. A Operação Lava Jato continua sendo um ponto fora da curva.
CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA, procurador regional da República, é mestre em direito pela Universidade Cornell (EUA) e membro da força-tarefa da Operação Lava Jato
DIOGO CASTOR DE MATTOS, procurador da República em Curitiba, é mestre em direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná e membro da força-tarefa da Operação Lava Jato