Compartilho artigo de Deisy Ventura publicado na edição de julho/2016 da Revista Internacional de Direitos Humanos (sur.conectas.org).
DOSSIÊ SUR SOBRE MIGRAÇÃO E DIREITOS HUMANOS
IMPACTO DAS CRISES SANITÁRIAS INTERNACIONAIS SOBRE OS DIREITOS DOS MIGRANTES
Deisy Ventura
Fantasma do “estrangeiro que traz a doença” justifica medidas que restringem as migrações internacionais e fomenta violações de direitos humanos
RESUMO
O artigo oferece um panorama do impacto das crises sanitárias sobre os direitos dos migrantes. Demonstra que a repercussão da crise do Ebola sobre a mobilidade humana não é uma novidade: a associação entre o estrangeiro e a doença acompanha a história das epidemias e faz parte do processo de construção das identidades nacionais no Ocidente, mantendo na contemporaneidade o potencial de induzir ou justificar violações de direitos humanos. A seguir, sustenta que as restrições às migrações internacionais adotadas durante a crise do Ebola são ilícitas à luz do direito internacional da saúde, além de contraproducentes no combate à epidemia. Ademais, considera a abordagem securitária das migrações internacionais e da saúde como o germe de uma espécie de utopia totalitária, ao difundir a ilusão de que apenas os sistemas de vigilância são capazes de evitar a propagação internacional das doenças, sem que o direito à saúde seja assegurado em todas as regiões do mundo. Por fim, convida o leitor a refletir sobre a interface entre crise sanitária e migrações internacionais sob o prisma dos embates que animam o campo da saúde global.
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Em 2014, no auge da epidemia de Ebola na África Ocidental, diversos países, entre eles Austrália e Canadá, restringiram o ingresso em seu território de pessoas provenientes dos países mais afetados pela doença (Guiné, Libéria e Serra Leoa).1 Grandes companhias aéreas, como British Airways e Emirates Airlines, suspenderam total ou parcialmente seus vôos em direção à região mais atingida.2 Desprovidas de justificativas científicas ou de saúde pública plausíveis, essas medidas ignoraram a determinação categórica da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que não deveria haver restrição de deslocamentos, exceto para portadores da doença e seus contatos diretos, entre outras razões porque ela obstaculizaria a chegada de socorro aos países mais atingidos.3 Países contíguos ao epicentro da crise fecharam suas fronteiras terrestres. No caso da Costa do Marfim, por exemplo, essa medida impediu o repatriamento de milhares de refugiados marfinenses que se encontravam na Libéria.4
Além da restrição da mobilidade humana, a crise do Ebola causou também o recrudescimento da discriminação de migrantes negros, inclusive os oriundos de regiões em que a doença não existia, a exemplo do que ocorreu com os haitianos no Brasil.5 No mesmo sentido, foi denunciada a adoção de medidas discriminatórias em relação aos profissionais de saúde que haviam trabalhado na África Ocidental quando de seu retorno aos respectivos países de origem, como a Espanha, os Estados Unidos e o Reino Unido.6 A privacidade de pacientes ou de casos suspeitos, inclusive migrantes ou refugiados, foi em muitos casos exposta desnecessariamente.7
O presente artigo busca identificar, de forma geral e breve, o impacto das crises sanitárias sobre os direitos dos migrantes. Em sua primeira seção, demonstra que a repercussão da crise do Ebola sobre a mobilidade humana não é uma novidade: a associação entre o estrangeiro e a doença acompanha a história das epidemias e faz parte do processo de construção das identidades nacionais no Ocidente, mantendo na atualidade o seu potencial de induzir ou justificar violações de direitos humanos. A segunda seção demonstra que as restrições às migrações internacionais adotadas durante a crise do Ebola são ilícitas à luz do direito internacional da saúde, além de contraproducentes no combate à epidemia. A seguir, a terceira seção pondera que o fortalecimento da abordagem securitária das migrações internacionais e da saúde está construindo uma espécie de utopia totalitária, ao propagar a ilusão de que os sistemas de vigilância são suficientes para evitar a propagação internacional das doenças. Por fim, a conclusão convida o leitor a refletir sobre a interface entre crise sanitária e migrações internacionais sob o prisma dos embates que animam o campo da saúde global.
02O estrangeiro e a doença
Em seus estudos sobre a história do medo no Ocidente entre os séculos XIV e XVIII, Jean Delumeau elabora uma tipologia dos comportamentos coletivos em tempos de peste negra, concluindo que, diante da epidemia, o impulso primeiro e natural, tanto no plano individual como no coletivo, é o de nomear os culpados, como forma de tornar compreensível o que parece inexplicável. Assim,
os culpados potenciais, contra quem a agressividade coletiva pode se voltar, são em primeiro lugar os estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não são bem integrados a uma comunidade, seja porque eles não querem aceitar suas crenças – caso dos Judeus –, seja porque foi preciso jogá-los à periferia do grupo por evidentes razões – como os leprosos –, seja simplesmente porque eles vêm de alhures e a esse título são em alguma medida suspeitos.8
A desqualificação do estrangeiro em geral baseia-se na “síntese grosseira de informações incompletas” que forja tipos coletivos “ingenuamente esquemáticos”, capazes de “assombrar a imaginação popular”.9 Na Idade Média, um campo particular da xenofobia (aversão ao estrangeiro) fundado em razões culturais e políticas, fez com que a desqualificação de sarracenos ou bizantinos contribuísse para construir a identidade dos ocidentais em oposição aos “orientais”, e mais adiante a desqualificação de ibéricos e italianos contribuísse para salientar a diferença entre regimes políticos, como parte da idealização das figuras do homem ocidental e da monarquia francesa.10 Assim, ao longo da história, os exemplos de fundamentos identitários da repulsa aos estrangeiros corrobora a ideia de que “não existe estrangeiro em si; só se é estrangeiro diante de uma norma, de uma cultura, uma civilização. Em resumo, o estrangeiro só existe na sua relação com o outro”.11
Essa brevíssima remissão histórica corrobora a ideia contemporânea de que qualquer “cálculo racional” que se procure fazer a respeito do risco de contrair uma doença deverá fazer frente a um imaginário tecido por representações,12 incluindo tanto os fantasmas populares do imigrante como vetor das doenças como o discurso de especialistas que apontam as consequências epidemiológicas das migrações populacionais.13 Marco da história da saúde global, a epidemia de HIV/Aids que irrompeu nos anos 1980 fez renascer os medos arcaicos das grandes epidemias como a peste e a sífilis e, com eles, os meios mais repressivos de proteção, visando em primeiro lugar às populações mais estigmatizadas, como os homossexuais, os usuário de drogas, as prostitutas e os estrangeiros.14 Em um estudo sobre a resposta ao HIV/Aids na China, Évelyne Micollier revela que a “construção social da doença”, em especial nas campanhas de prevenção, articulou-se em torno da noção de “estrangeiro” que traz o risco de contaminação, na qual os chineses incluíam não somente os nacionais de outros Estados mas igualmente os chineses que não são da etnia Han.15
No Ocidente, nasceu o mito acusador de que os haitianos seriam os responsáveis pela origem e pela extensão da epidemia de HIV/Aids nos Estados Unidos, alimentado pela teoria dos grupos de risco conhecida como dos 4H (hemofílicos, haitianos, homossexuais e heroinômanos).16 Em uma obra fundamental sobre o tema, Paul Farmer demonstra que esse mito acusador constitui um processo de “responsabilização étnica” pelo qual se “acusa as vítimas”, que só pode ser compreendido tendo em conta as relações de dominação política, social e econômica entre o Haiti e os Estados Unidos.17 Não obstante, diversos episódios denotam a força desse amálgama. Em 1993, o Senado proibiu a imigração de portadores de HIV/Aids, com o apoio de 71% da população norteamericana, como resposta direta aos 219 refugiados políticos haitianos portadores de HIV/Aids que aguardavam na base naval de Guantanamo Bay (Cuba), há cerca de um ano, a autorização para entrar nos Estados Unidos.18
David Kracht
03
Passando ao Brasil contemporâneo, um estudo de caso sobre a migração haitiana em Tabatinga (Amazonas), revela que “a saúde foi sem dúvida o principal cristalizador do medo que os migrantes haitianos inspiraram na população local”, alimentado pela representação, promovida principalmente por vereadores e pela mídia local, de que uma migração “incontrolada e perigosa” traria grandes riscos sanitários.19 Todavia, os autores constataram que tamanho alarmismo contrastava com a realidade, pois a equipe da ONG Médicos sem Fronteiras que avaliou o estado geral de saúde dos migrantes considerou que não diferia do quadro geral da população local.
A repercussão da crise internacional do Ebola no Brasil, ainda que não se tenha registrado nenhum caso da doença, alimentou esse medo. É preciso compreender que a doença não é o evento que suscita a representação estigmatizadora do estrangeiro: ao contrário, ela vem a preencher um espaço de desqualificação pré-existente.20 É o que revela o estudo da cobertura jornalística da crise do Ebola no Brasil, que constatou o reforço da ideia de que a África é um lugar de risco para a saúde e de que os africanos são agentes disseminadores do Ebola, promovendo construindo “a africanidade como um fator de risco à saúde”.21
Entretanto, a abordagem que as mídias brasileiras fizeram da crise do Ebola não é uma exceção, e sim a regra. Os sete casos de Ebola notificados no Ocidente (quatro nos Estados Unidos e casos individuais na Espanha, na Itália e no Reino Unido), entre os quais apenas um óbito, tiveram repercussão vertiginosamente maior do que os milhares de casos e de óbitos ocorridos na Guiné, na Libéria e em Serra Leoa –22 totalizando 28.616 casos confirmados, prováveis ou suspeitos, e os 11.310 óbitos notificados à OMS até 5 de maio de 2016.23 Até que a OMS a declarasse uma Emergência Pública de Importância Internacional, em agosto de 2014,24 os surtos da doença ocorridos na África desde os anos 1970 haviam merecido escassa atenção. Por mais perigoso que possa ser, o vírus que não gera um mercado significativo, como foi o caso do Ebola, tende a permanecer negligenciado, o que explica a ausência de tratamentos e vacinas quando da eclosão da epidemia. Porém, “o mercado emerge quando o vírus sai de um país onde o Ocidente gostaria muito que ele ficasse”.25
Os determinantes econômicos da percepção da gravidade de uma doença corroboram, de certa forma, a ideia de que “a saúde significa ter as mesmas doenças que os nossos vizinhos”.26 Tal percepção parece ter se refletido na reação de uma parte da classe política e das mídias dos Estados Unidos que foi contrária ao repatriamento de profissionais de saúde norte-americanos que atuaram no combate à epidemia de Ebola, durante o auge da crise. Provavelmente a desqualificação prévia desses profissionais correspondia ao fato de “terem estado onde não deveriam estar”, isto é, não comungarem de uma indiferença essencial à saúde da maioria da população mundial para que as imensas distorções da atual governança da saúde global sejam mantidas.27 Assim, em plena campanha para as eleições de meio-mandato,28 houve uma instrumentalização política da crise sanitária nos Estados Unidos.29 O republicano Donald Trump atacou duramente o governo Obama, sustentando que pessoas infectadas por Ebola não deveriam ser repatriadas pois, embora seja fantástico prestar ajuda em lugares distantes, elas deveriam assumir as consequências de seus atos.30
A seguinte série de charges de Patrick Chappatte, cujos direitos de uso foram gratuitamente cedidos para a presente publicação, é de grande valia para compreender alguns elementos da complexa repercussão do Ebola no Ocidente.
Figura 1 – Lidando com Ebola31
Figure1 Tradução: Você está sob quarentena…para seu próprio bem.
Figura 2 – Poderia ser Ebola? 32
Figure2 Tradução: Suor, náusea, tremores, ele tem todos os sintomas. De ter assistido o noticiário recentemente.
Figura 3 – O boletim sobre Ebola do Centro de Controle de Doenças (CDC na sigla em inglês)33
Figure3 Tradução: Ebola pode ser transmitido por fluidos corporais, sangue, gafes e equívocos.
MFigura 4 – O ano para Ebola 34
Figure4 Tradução: Marco de 2014 a 2015: Primeiros alertas, um americano fica doente, medo, pânico, casamento do George Clooney, sonda aterriza em cometa.
Em síntese, uma doença negligenciada como foi o Ebola, que no epicentro da epidemia mereceu uma resposta internacional unanimemente considerada como deficiente,35 paradoxalmente passou a ser exacerbada fora de seu epicentro por uma narrativa que imbricava as noções de segurança e crise, sustentadas por um espetáculo político e midiático.36 No entanto, o potencial impacto dessa encenação sobre os direitos humanos alcançou o Poder Judiciário. Merece especial atenção a sentença que considerou lícitas as restrições inusitadas, impostas pelo governo do Estado do Maine a uma enfermeira norte-americana repatriada da África Ocidental, entre elas a determinação de guardar distância de um metro em relação a outras pessoas.37 Embora reconheça a ausência de base científica para sua decisão, o juiz a fundamenta no reconhecimento de que as pessoas têm medo e que, seja ele racional ou não, este medo é “presente e real”.
04Restrições ilícitas à mobilidade humana
Durante a crise do Ebola, pressionados pela vertiginosa disseminação do pânico, mais de 40 Estados desrespeitaram as recomendações da OMS sobre o tráfego de pessoas e o comércio; poucos países notificaram a OMS a respeito das medidas adotadas, e alguns deles, quando questionados a respeito, sequer responderam à organização.38 Isto levou David Fidler a identificar uma outra epidemia: a de descumprimento de normas, em especial do Regulamento Sanitário Internacional (RSI).39 Vigente em 196 países, o RSI estipula que a prevenção e a resposta à propagação internacional de doenças será feita de maneira proporcional, evitando interferências desnecessárias na circulação de pessoas e mercadorias (artigo 2º), garantido o “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas” (artigo 3º).40 Em virtude do artigo 42 do mesmo Regulamento, qualquer medida deveria ser adotada de maneira transparente e não discriminatória.
Na avaliação de Khalid Koser,41 as restrições de viagens podem ser mais prejudiciais do que os problemas que pretendem resolver, por ao menos três razões. Em primeiro lugar, a experiência das crises sanitárias precedentes revela que elas raramente resultam em incremento da mobilidade humana; quando isto ocorre, os deslocamentos tendem a ser internos, para longe do epicentro do surto, e temporários, até que possam ter informações mais precisas sobre a doença. Em segundo lugar, as restrições são ineficazes diante da atual dinâmica de transmissão das doenças infectocontagiosas, que podem ser disseminadas em todo o mundo em poucos dias, diante da vertiginosa velocidade do tráfego de pessoas e do comércio internacional. Por essa razão, o RSI concentra-se em medidas de saúde pública para controle de vetores nos pontos de entrada por via aérea, marítima ou terrestre, além da ativação dos canais de comunicação entre os Estados, e não na restrição da circulação de pessoas. Por fim, as restrições de viagens e a imposição de medidas de isolamento quando do retorno, prejudica o fluxo de pessoal da saúde para as regiões mais atingidas justamente quando ele é mais necessário, afetando ainda o fornecimento de material médico e de assistência humanitária. De modo mais amplo, há prejuízo significativo para a economia da região afetada, interrompendo os fluxos comerciais, e igualmente prejuízo da capacidade dos governos para gerir a crise.
Cabe acrescentar a esse diagnóstico que a limitação do ingresso regular nos países de destino favorece a migração em situação irregular, esta sim capaz de favorecer a propagação de doenças pela absoluta ausência de controle de sua presença em determinado território. Ademais, o ambiente de rechaço à presença de pessoas de uma dada origem pode levá-las a não buscar tratamento, por temor a medidas que tenham impacto sobre sua situação migratória.
Uma comissão de especialistas independentes sugeriu que, diante da experiência da crise do Ebola, a OMS deveria ser dotada do poder de sancionar os Estados que não cumprissem suas regras, eis que restrições indevidas causam graves prejuízos sociais, econômicos e políticos aos países mais atingidos.42 Em oposição a essa sugestão, porém, argumentou-se que as graves falhas da OMS na resposta ao Ebola teriam encorajado os Estados a ignorar as recomendações da organização, como se o cumprimento do RSI fosse uma “barganha política” na qual os Estados só poderiam ser cobrados se a própria OMS e os Estados mais atingidos não tivessem falhado em relação às suas próprias obrigações.43 De todo modo, o fato de que países como a Austrália e o Canadá tenham adotado restrições impunemente revela que os países desenvolvidos possuem capital político suficiente para não cumprir suas obrigações.44 45
Por outro lado, a eventual capacidade de impor sanções não resolveria o maior obstáculo ao cumprimento do RSI, que é a incapacidade de numerosos Estados, inclusive os países mais atingidos pela crise, de cumprir as obrigações assumidas por meio do Regulamento, devido às suas limitações econômicas e políticas.46 É preciso reconhecer que a plena aplicação do RSI nos países da África Ocidental, por exigir melhora significativa das políticas e dos serviços de saúde que são indispensáveis a uma vida digna, teria sido muito mais efetiva em matéria de enfrentamento das causas de uma parte significativa das migrações internacionais do que as restrições da circulação de pessoas adotadas durante a crise do Ebola.47
Theen Moy
05Uma utopia totalitária em construção
Em setembro de 2014, destituindo a OMS de sua função de coordenadora da ação internacional no campo da saúde, o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) criou a primeira missão sanitária de urgência da história, a Missão das Nações Unidas para a Ação de Urgência Contra o Ebola (MINAUCE),48 com o beneplácito do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral. A epidemia de Ebola foi então considerada uma ameaça à paz e à segurança mundiais. Desde então, prospera o enfoque de que a resposta internacional às crises sanitárias, a partir das “lições do Ebola”, seja pautada sob a perspectiva da “segurança global da saúde”.49 Contudo, combater a propagação internacional das epidemias pela via do fortalecimento dos sistemas de vigilância e, quando necessária a resposta internacional, de missões da ONU focadas na contenção e na militarização, parece constituir uma espécie de utopia totalitária.
Totalitária, em primeiro lugar, porque justifica regimes jurídicos de exceção (tais como as chamadas leis anti-Ebola adotadas nos países mais atingidos pela epidemia) que erodem a democracia e o Estado de Direito, além de patrocinar violações de direitos humanos que excedem largamente as limitações do exercício das liberdades que poderiam ser exigíveis para evitar a propagação das doenças (como é o caso do fechamento de fronteiras, reais ou políticas).
É totalitária, ainda, porque ao negligenciar graves problemas de saúde em escala mundial – tais como a malária, a tuberculose, a saúde da mulher e dos indígenas, entre tantos outros – para privilegiar a doutrina da segurança da saúde global e o combate a doenças construídas socialmente como mais perigosas, a resposta internacional que foi dada à crise do Ebola contribui para aprofundar as desigualdades no plano mundial.
Em segundo lugar, trata-se de uma utopia. Sem adentrar o vasto debate sobre o seu conceito, essa expressão é aqui referida simplesmente como “representação fantasmática de uma sociedade necessária e impossível”.50 A estratégia de contenção de doenças por isolamento do território está fadada ao fracasso. Por maiores que sejam os investimentos em recursos humanos e financeiros para vigilância, toda a barreira física pode ser potencialmente rompida. Do mesmo modo, a estratégia da “bala mágica” – 51 a busca de tratamentos e vacinas que buscam a eliminação da doença sem enfrentar os determinantes sociais que, a depender do caso, potencializam tanto sua origem como o alcance de sua propagação – é impotente diante da constante mutação dos agentes causadores das doenças infectocontagiosas.
Uma vasta literatura demonstra a complexidade da origem das epidemias. As mudanças de equilíbrio entre o homem e a fauna selvagem, as modificações dos ecossistemas e o aumento das trocas entre zonas rurais e urbanas, assim como as trocas internacionais, são fatores que contribuem à emergência de novas doenças. Logo, as conexões entre as esferas ecológica, epidemiológica e sócio-econômica são indispensáveis: é preciso abordar a doença e as epidemias sob um prisma ecológico integrado, tendo o homem como elemento indissociável de um sistema complexo e interativo.52
Por tudo isto, ainda que possa ser adotada excepcionalmente de forma legítima pelas autoridades sanitárias (e não outras), com embasamento científico e procurando reduzir o seu impacto negativo sobre os direitos humanos,53 a restrição da mobilidade humana está longe de constituir uma resposta eficaz à propagação internacional de doenças. Restaria, à guisa de conclusão, questionar: qual seria essa resposta?
06Conclusão
Não há dúvidas de que os riscos da circulação de pessoas seriam radicalmente reduzidos se os Estados enfrentassem prioritariamente as causas da persistência e/ou da rápida propagação das doenças, tornando-se capazes tanto de prevenir como de oferecer respostas nacionais consistentes aos surtos quando eles são declarados.
Neste sentido, os recursos provenientes da cooperação internacional deveriam ter como prioridade não apenas os sistemas internacionais de vigilância ou os programas de combate a doenças específicas. São sobretudo os sistemas nacionais de saúde, de acesso universal e gratuito, que exigem massivos recursos para prevenção e atenção básica à saúde, em infra-estruturas sanitárias e no recrutamento de profissionais de saúde bem formados, de carreira estável e bem remunerada.54
Para falar a sério sobre a segurança da saúde global, e não sobre a segurança específica de alguns Estados desenvolvidos, não se pode deixar de mencionar outros fatores decisivos, como: a mudança urgente e profunda da regulação da produção de alimentos e de medicamentos, capaz de submeter estas indústrias aos imperativos do fortalecimento das normas e das políticas de saúde pública; a restrição absoluta da fabricação e da comercialização de armas que viabilizam os conflitos armados em curso, responsáveis por grande parte da desolação do Estado de Direito e via de consequência dos sistemas de saúde dos países mais pobres, como foi o caso da Libéria e de Serra Leoa; além da ação internacional prioritária em relação aos determinantes sociais da saúde, especialmente saneamento básico, alimentação, moradia e educação.
Logo, a dicotomia que caracteriza a interface entre migrações internacionais e saúde – de um lado, a representação do migrante como uma “ameaça” à saúde, e de outro lado, o reconhecimento da vulnerabilidade da saúde do migrante, amiúde exposto a difíceis condições de trabalho com limitado acesso a direitos e políticas inclusivas – 55 precisa ser superada com urgência. A abordagem internacional da saúde do migrante e do refugiado deve ser pautada pelos embates que estão em jogo na formulação de políticas migratórias nacionais e regionais, mas igualmente nas grandes disputas que se travam no campo da saúde global,56 em especial no que atine às desigualdades que hoje tornam impossível para milhões de pessoas ter uma vida digna no lugar em que nasceram.
Deisy Ventura – Brasil
Deisy Ventura é professora do Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Publicou, entre outros livros, Direito Global – o caso da pandemia de gripe AH1N1 (São Paulo: Expressão Popular/Dobra Editorial, 2013). Desde 2009, atua em projetos de extensão universitária relacionados aos direitos dos migrantes na cidade de São Paulo (SP). Participou da Comissão de Especialistas criada pelo Ministério da Justiça do Brasil que apresentou o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, em 2014.
contato: deisy.ventura@usp.br
Recebido em maio de 2016
Original em português.