É pavoroso ver armas dentro da escola, apontadas para crianças e adolescentes

É pavoroso ver armas dentro da escola, apontadas para crianças e adolescentes
Roberto Tardelli
Advogado

Quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Publicado em justificando.com

Vê se entende meu grito de alerta. Era assim que começava uma linda canção de Gonzaguinha, que nos animava naqueles tempos em que o máximo que conseguíamos pagar era uma linguiça fritada na pinga.

Um grito de socorro, lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado. Um grito que vem das escolas ocupadas. Durante décadas, educadores e pedagogos queimaram seus neurônios na busca de uma verdade encoberta: como manter os alunos na escola? Como fazer de um prédio público, sem cores nas paredes, cheios de regras e horários, chefetes por todos os lados, chamadas, provas, matérias imbecis sendo vomitadas por professores alienados e exaustos, um lugar acolhedor?

Eu tinha dezesseis anos e a Tabela Periódica. Um horror, por que raios eu tinha que decorar uma coisa chamada valência de outra coisa chamada astatínio, nunca me foi dito. Apenas eu tinha que decorar e por não ter decorado, perdi minhas férias de verão, na segunda época, nome que se dava à recuperação, nos idos daquela pré-história de minha vida. Aos quinze, tive que ler A Moreninha, chatíssimo, bocó. Se não houvesse lido, teria sido reprovado em literatura, sem que ninguém se desse conta do absurdo que é alguém ser reprovado em literatura, levar nota baixa por ter odiado A Moreninha.

Quarenta anos se passaram e ainda hoje os alunos são submetidos à maldita tabela de Linus Pauling que o diabo o carregue para as aulas de doutoramento em Química e ainda os vestibulares da vida se interessam pela A Moreninha . Nos anos de chumbo, as aulas de História eram sequências meio amalucadas de datas, que misturavam invasão da Criméia e a fundação de uma cidade do outro lado do planeta.

Em comum: a data. Inesquecível, determinar o sujeito de Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante. Odeio o Hino Nacional, demorei meses para entender que nada mais era que As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico ou o brado heroico de um povo retumbante, dane-se, tirei, dois na prova. Dois. Maldito hino, único lugar do idioma onde ele existe, lábaro.

O mundo mudou seu desenho centenas de vezes nesses anos todos e a maldita tabela periódica ainda paira sobre os alunos. Inacreditável. Com tantos autores maravilhosos, A Moreninha ainda tem seu público entre os professores de português.

Quarenta anos! Nunca perguntaram aos alunos que raios de escola eles esperam ter. Burocratas mal humoradas e mal humorados, canetadores de plantão.

Conseguiram os governantes e seus áulicos promotores e juízes e delegados e policiais e o raio que os partam fazer algo incrível: expulsar os alunos das escolas! Os alunos, destinatários da educação, foram considerados invasores das próprias escolas onde estudam, invasores de suas próprias casas. Expulsar os alunos da escola equivale a expulsar os doentes que estão na fila do hospital.

À maior demonstração de amor pela escola, que deram ao ocupa-las, deveria corresponder um gesto de amor pelo ensino; jamais armas, polícias, promotores, mas apenas educados educadores, que se sentassem nos pátios das escolas e conversassem e, principalmente, ouvissem, de ouvidos abertos, o que essa geração tem a dizer e a reivindicar.

É pavoroso ver armas dentro da escola, apontadas para crianças e adolescentes desarmados, sentados no cimento duro. É uma cena chocante, tão chocante que parece ser natural. É pavoroso ver promotor engravatado algemando a molecada. É pavoroso ver um juiz de direito, medíocre e tolo, alienado e estúpido, autorizar a utilização de métodos degradantes para desocupação. É pavoroso ver gente aplaudindo essa brutalidade obscurantista nas redes sociais.

Os meninos e meninas do Brasil amam nossas escolas muito mais que seus professores, que, em boa parte deles, as odeiam, porque ganham pouco, porque as salas são lotadas, porque os alunos são respondões, porque estão cagando para os professores, porque a vida é uma merda.

A deles, não. É uma festa. Que invadam mais prédios, fóruns, repartições, bancos, estatais, escritórios, estádios, invadam, tragam a nós o que nós perdemos.

Mas, que eles têm de sobra.

Roberto Tardelli é advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.

Foto: Alicia Esteves/Revista Vaidapé

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