Compartilho artigo do site publico.pt sobre a situação política atual da Europa. A situação europeia é importante e tem pontos de contato com a situação dos EUA , da América Latina e, em particular, do Brasil.
Tomei conhecimento do artigo pelo site publico.pt e por uma amiga de Facebook.
Em breve seremos 7,5 bilhões de seres humanos. Em 2050 seremos 10 bilhões. Pensando individualmente, seja em nível pessoal, seja em nīvel local dentro de cada país, ou mesmo, de país contra país, não vai dar para atender aos desafios de sustentar em condições de vida digna tanta gente.
O que a tendência global aponta é para o aumento da xenofobia, do individualismo e da rejeição das políticas de inclusão econômica e social. As crises políticas e a ascensão da extrema direita em importantes partes do mundo confirmam está tendência.
O fundo, a base, é comum. Os discursos é que diferem em alguns pontos. Lá, imigrantes que roubam empregos, aqui corrupção.
Paulo Martins
Duas votações, a última volta das presidenciais austríacas e o referendo italiano sobre as reformas constitucionais, voltam a pôr em causa a natureza política da Europa e terão consequências não apenas nos dois países mas nos equilíbrios geopolíticos do Continente. A política europeia é sempre “local”, no sentido de que é determinada em última análise pelo voto nas eleições nacionais.
Na Itália, os populistas de Beppe Grillo, a extrema-direita da Liga Norte e a maioria dos eleitores de Berlusconi — e ainda algumas correntes de esquerda — dizem “não” à reforma constitucional proposta pelo primeiro-ministro Matteo Renzi, ameaçando abrir uma crise política ou até uma situação de caos institucional, com reflexos na União Europeia. Mas o cenário catastrófico de uma saída da Itália do euro parece hoje excluído.
Na Áustria, Norbert Hofer ameaça ser o primeiro presidente da República de extrema-direita eleito na Europa do pós-guerra. Mais do que isso, poderia a seguir abrir caminho a uma conquista democrática do poder pelo Partido da Liberdade (FPÖ), de origem neo-nazi, que é hoje a força que ocupa o centro do tabuleiro político nacional. O resultado terá repercussões directas nos equilíbrios da Europa Central, onde populismo e nacionalismos estão em expansão. A vitória de Hofer significaria a “normalização” da extrema-direita, susceptível de aceder à área do poder.
O elo fraco
“Os eleitores são hoje o elo fraco da Europa”, escreveu o Financial Times, pois votam cada vez mais nos partidos anti-sistema e são atraídos pelos nacionalismos. Que se passa? Não se trata apenas, nem sobretudo, de uma adesão ideológica.
Antes de mais, domina um sentimento: “Já não entendo o mundo.” A frase é do sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015), numa entrevista de 2014. Não falava como cidadão comum, pois acabava de publicar um polémico livro, A Europa Alemã (Lisboa, Edições 70, 2013), mas punha-se na pele do eleitor. “Vivemos uma época em que toda a gente fala de catástrofes. (…) Sabemos o que acontece quando um automóvel avaria ou um computador rebenta, mas não sabemos o que acontece se o euro ou a União Europeia rebentam.”
Seria, até certo ponto, uma nova situação histórica. “Os cidadãos, as pessoas na rua, enfrentam situações que não entendem, não percebem o que se está a passar. ‘Eu já não entendo o mundo’ seria uma boa frase para definir como se sentem. Um pouco por toda a parte, a Europa está confrontada com uma situação para a qual os especialistas não têm resposta, os políticos não têm resposta e, consequentemente, as pessoas não têm resposta. E, por outro lado, a sociedade está mover-se ao mesmo tempo, pensando em todo o tipo de alternativas.”
Mais de 20 anos de debate
Passemos a alguns sintomas. Cresce a aversão à política, o Estado-nação está a perder soberania, o que gera mais insegurança, os trabalhadores sentem a “Europa” como ameaça. Grande parte disto não é novo. A crise de 2008 e as atribulações do euro fizeram crescer o eurocepticismo e mostraram uma UE dividida entre credores e devedores, entre Norte e Sul. Mas o coração do problema, a relação entre os cidadãos e a política ou entre os trabalhadores e o poder, estão em debate desde há mais de duas décadas.
Dois exemplos. O historiador italiano Giovanni Orsini acaba de publicar um ensaio —”Como nasce a antipolítica” (jornal Il Foglio, 14 de Novembro) — em que analisa o surto populista italiano na crise de 1992-93, em que o velho sistema político desabou por iniciativa dos juízes com a maciça aprovação da opinião pública. Orsini sublinha uma série de factores, de que cito alguns: a evolução do sistema mediático, a insatisfação económica, a nova relação entre o poder judicial e os partidos em perda de representatividade, a ineficiência de um sistema constitucional mais concebido para garantir do que para decidir, provocando o bloqueio político, a corrupção e a explosão da dívida. Segue-se a ascensão do populismo mediático de Silvio Berlusconi.
Note-se que, antes disso, a Itália conhecia desde o fim dos anos 1980 um virulento populismo, o da Liga Lombarda, depois Liga Norte, de Umberto Bossi, uma “insurreição” do Norte rico contra a “Roma Ladrona” e o centralismo administrativo. Hoje, afastado Bossi, a Liga foi “lepenizada” por Matteo Salvini e disputa a Berlusconi a hegemonia da direita.
Passando a França e à relação entre povo e política, resumia em 1997 (La Faute aux élites), o historiador e jornalista Jacques Julliard: desmoralizado e abandonado pelas elites, o povo perdeu a sua bússola e a sua identidade para mergulhar no populismo. Julliard acusava as elites políticas e tecnocráticas da esquerda — e também aqueles revolucionários “que mudaram de proletariado nos anos que se seguiram a 1968. Substituíram os operários pelos imigrantes e passaram para estes o duplo sentimento de temor e de compaixão que o proletário geralmente inspira.”
Concluía: “As classes populares não são por natureza mais conservadoras ou repressivas; são as mais expostas, eis tudo”. Cinco anos depois, Jean-Marie Le Pen batia o socialista Lionel Jospin na primeira volta das presidenciais.
O que provoca perplexidade é a indiferença a um problema tão fundo, seguindo o velho princípio de que não há questão que o tempo não resolva: para explodir depois.
“Lepenização” da Europa
A crise de 2008, os constrangimentos da dívida e as desventuras do euro multiplicaram a potência dos populismos. A crise não só alimenta o populismo como amplifica os sentimentos de insegurança e medo. “Aparentemente, é o cocktail entre a crise do desemprego e o medo do ‘outro’, frequentemente encarado como terrorista mesmo antes de [ser visto como] imigrante, o elemento que marca a ascensão populista dos últimos anos a um ritmo vertiginoso”, anota o politólogo italiano Luca Ricolfi. A onda alastrou a países do Norte, sem desemprego, como resposta à vaga dos refugiados. Aos populismos junta-se agora uma onda de nacionalismo, que poderá ser potenciada pela nova América de Trump.
Na França, Marine Le Pen explora com sucesso a insegurança dos cidadãos. “A base programática da FN é sempre a ‘preferência nacional’: reservar os empregos, os alojamentos, as prestações sociais aos franceses”, escreve a politóloga Nonna Mayer. A xenofobia concentra-se no árabe. O islão torna-se o inimigo principal. Os atentados jihadistas fazem o resto. Mas esta extrema-direita soube tornar-se “democrato-compatível”. A islamofobia passa ser justificada em nome dos valores laicos e republicanos.
A sua inteligência política não deve ser subestimada. A extrema-direita não conquistou (ainda) o poder em nenhum país europeu. A sua grande vitória é ter imposto a sua agenda política, os novos temas de debate, da denúncia do establishment ao tema da imigração, passando a condicionar os governos. Aqui reside a “lepenização” da Europa.
Não tendo responsabilidades de governo, este populismo simplifica os problemas ao extremo, o que lhe permite fazer propostas simples e sedutoras. Daí decorre, a par da capitalização das “cóleras” populares, a sua capacidade de mobilização. Face aos partidos tradicionais os populistas surgem como o “novo”. Conclui Meyer: “Paradoxalmente, estes partidos da extrema-direita são os últimos a vender sonhos…”
Como conter o populismo? O politólogo espanhol Javier Redondo anota que estão em competição duas estratégias. Uma, defensiva e dominante, aposta na recuperação económica. Outra, ofensiva, joga no terreno político do populismo para o neutralizar. O exemplo seria Renzi. Conquistou o Partido Democrático e ascendeu ao governo sob o lema de “destruir” o antigo sistema político e a “velha casta”. No poder, trocou esse retrato pelo de “homem de Estado”. Regressou à velha postura nas últimas três semanas, tentando mostrar que é ele e não Grillo quem quer e quem pode reformar a Itália e que votar contra as reformas significa consolidar o statu quo. Corre o risco de ter regressado tarde à imagem de origem.
Acrescente-se que há uma terceira exigência relativa ao frustrante funcionamento dos partidos políticos, distantes dos eleitores e viciados na lógica mediática. Isto estimula a ideologia referendária, em que os eleitores exigem que o poder de decidir lhe seja devolvido. O risco da legítima pulsão referendária é que os eleitores não respondam à questão posta, mas que a utilizem para exprimir o mero protesto. O voto de hoje na Itália não é, de facto, sobre a reforma constitucional mas a favor de Renzi ou contra Renzi.
UE e nacionalismos
Muito se tem escrito sobre o regresso das nações, em contraponto ao centralismo ou à ineficácia das instituições comunitárias. É uma realidade. Mas merece uma primeira nota. Uma parte da impotência comunitária deve-se à ocultação de um mecanismo fundamental: o que passa por ser a “decisão da UE” resulta da negociação entre políticos que encarnam aberta ou disfarçadamente “28 interesses nacionais”.
Em segundo lugar avisa Mario Monti, ex-primeiro-ministro italiano: “Alguns poderes hoje exercidos em comum e com determinadas regras da UE, seriam devolvidos aos Estados. Mas cuidado: em geral, esses poderes foram transferidos para a esfera comunitária precisamente porque os Estados constatavam que já não os podiam exercer, porque a globalização estava a transferir, de facto, esses poderes nacionais para os mercados, para as multinacionais e para as grandes potências extra-europeias.” O risco “é um momento de breve excitação seguido de uma permanente impotência.”
Os nacionalismos estão em ascensão. Volta a prevenir Monti: “Numa Europa sem a União Europeia, os nacionalismos tenderiam a entrar em choque entre si.” A Europa tornar-se-ia uma “selva”. E pergunta: pensam Marine Le Pen ou Beppe Grillo que os seus países se tornariam mais fortes se a França e a Itália regressassem ao franco e à lira ou a Alemanha ao marco?
Um dos problemas da política europeia é que os líderes políticos não aprenderam a falar ao povo, aos eleitores e às nações para explicar estas coisas “triviais”.
A visão apocalíptica
Falta conhecer os resultados da Itália e da Áustria. Mas antevêem-se reacções catastrofistas, sobretudo no caso da Áustria. Pensando nos Estados Unidos e em Donald Trump, adverte a politóloga Alison McQueen, da Universidade de Stanford: “Uma visão do mundo apocalíptica, que tem um longo historial na política dos EUA, leva a posições extremamente perigosas. A primeira é abandonar a participação política (…) A segunda postura é a resignação.”
A propósito das dificuldades da construção europeia, dizia Étienne Davignon, antigo vice-presidente da Comunidade: “As verdadeiras derrotas são apenas as que se aceitam sem reagir.”
jorge.almeida.fernandes@publico.pt
Atualização:
“O candidato independente, Alexander Van der Bellen, consegue 53,6 dos votos contra 46,4% do candidato da extrema-direita, Norbert Hofer, que já felicitou o seu adversário através do Facebook”.
“Matteo Renzi apresenta demissão após derrota no referendo italiano”.