Foi votada e aprovada hoje, em segunda votação no Senado Federal, a Proposta de Emenda Constitucional número 55 que, na prática, inviabiliza o cumprimento pelo governo, qualquer governo, por 20 anos, das cláusulas sociais constantes da Constituição Federal.
A Constituição será transformada, com esta emenda perversa, em uma colcha de retalhos incoerente, com artigos conflitantes. Por um lado declara como obrigatório o cumprimento de diversas cláusulas sociais e, por outro, nega os recursos – com as restrições aprovadas pela emenda 55 – para atendimento destas cláusulas.
Como vai contra o espírito das cláusulas pétreas definidas pelos constituintes de 1988, a PEC 55 é, fundamentalmente, inconstitucional.
Como será impossível obter deste Supremo Tribunal Federal apequenado um gesto de coragem declarando sua inconstitucionalidade, bastará o Senado Federal promulgar a indigitada emenda e ela já estará valendo.
Emendas à Constituição não dependem de sanção presidencial. O ilegítimo não precisará sujar ainda mais suas mãos. Esta tarefa ficará para Renan Calheiros, que completará o trabalho sujo iniciado por Temer e seus ministros amestrados e pela Câmara Federal de Cunha e Rodrigo Maia.
Toda vez que o Congresso aprova, a toque de caixa, sem ampla discussão com a sociedade, leis que representam um estupro da Constituição de 88 fico indignado e me vem à memória o poema de Pablo Neruda intitulado “Promulgação da Lei da Trapaça”. Diz tudo. Leia abaixo:
Promulgação da Lei da Trapaça
Eles se declararam patriotas.
Nos clubes se condecoraram
e foram escrevendo a história.
Os Parlamentos ficaram cheios
de pompa, depois repartiram
entre si a terra, a lei,
as melhores ruas, o ar,
a Universidade, os sapatos.
Sua extraordinária iniciativa
foi o Estado erigido dessa
forma, a rígida impostura.
Foi debatida, como sempre,
com solenidade e banquetes,
primeiro em círculos agrícolas,
com militares e advogados.
Por fim levaram ao Congresso
a Lei suprema, a famosa,
A respeitada, a intocável
Lei da Trapaça.
Foi aprovada.
Para o rico a boa mesa.
O lixo para os pobres.
O dinheiro para os ricos.
Para os pobres o trabalho.
Para os ricos a casa grande.
O tugúrio para os pobres.
O foro para o grão-ladrão.
O cárcere para quem furta um pão.
Paris, Paris para os señoritos.
O pobre na mina, no deserto.
O senhor Rodríguez de la Crota
falou no Senado com voz
melíflua e elegante.
“Esta lei, afinal, estabelece
a hierarquia obrigatória
e, antes de tudo, os princípios
da cristandade.
Era tão necessária quanto a água.
Só os comunistas, chegados
do inferno, como se sabe,
podem combater este Código
da Trapaça, sábio e severo.
Mas essa oposição asiática,
vinda do sub-homem, é simples
refreá-la: todos na cadeia,
no campo de concentração,
assim ficaremos somente
os cavalheiros distintos
e os amáveis yanacones*
do Partido Radical.”
Vibraram os aplausos
dos brancos aristocráticos:
que eloquência, que espiritual
filósofo, que luminar!
E foi cada um encher correndo
Os bolsos com seus negócios,
Um açambarcando o leite,
outro dando o golpe no arame,
outro roubando no açúcar,
e todos se chamando em coro
patriotas com o monopólio
do patriotismo, consultado
também na Lei da Trapaça.
- yanacones: índios araucanos, dóceis, a serviço dos conquistadores espanhóis.
Em, Canto Geral, Pablo Neruda
Tradução: Paulo Mendes Campos