39 Anos de um Cidadão Brasileiro
Pois aqui estou
cara a cara
com a vida
Dia 31 de março,
confiro meus documentos.
Cidadão brasileiro,
legítimo: sei que a lei
mudou, mas não mudou tanto.
Alguma coisa ainda vale
no chão amado da infância,
chão com cheiro de marirana
e flor de cajueiro,
chão por onde hoje campeia,
solta e grossa,
a botina rombuda.
Está na certidão:
natural do Amazonas,
barrancos do Bom Socorro.
(Um dia achei no capinzal
um canudo enferrujado
e fiquei sabendo que meu avô
tinha sido coronel, era um diploma,
eram os tempos da Guarda Nacional,
meu avô nem se lembrava, mas gostava do rei.)
Pois brasileiro, caboclo,
39 Anos. Feitos ontem.
É. Mas não chegou ninguém,
remando de canoa. Ninguém veio
pelas águas dos remansos,
- curimatãs, tucumãs –
ninguém chegou lá de longe
varando a noite do vento
para amanhecer na festa
do meu dia aniversário.
É. São 39 anos.
Casado mais de uma vez,
mas a lei diz que é uma só;
não vou dizer o contrário,
vou vivendo a lei da vida
pela mão da companheira,
que sabe muitas magias,
de ternura faz estrelas,
disfarça flor em canção,
cada dia é mais menina,
como a estrela matutina.
Pois brasileiro casado,
e pai de dois filhos homens,
O menor ficou tão longe,
nem sabe o lugar que tem
no fundo azul do meu peito.
O outro vem vindo comigo:
é o bem maior de uma vida
que se acabou já faz tempo,
nem parece que passou.
Com este menino conto,
todos podemos contar.
Seu perfil já vai no rumo,
vai ser brasa de mandar.
Dói não poder dar mais,
e amor que sobra dói,
mas é amor, nunca se estraga.
Folha corrida não há.
A de serviços é pouca,
nem sei se vale. O que vale
é este papel esquecido,
todo comido de tempo,
que só me acende desgostos
e durezas dos meus dias
de serviço militar.
Provo que sou reservista,
dei muito tiro no muro,
desmontei muito fuzil,
decorei o regulamento,
bom mesmo era rastejar
no cheiro fresco da lama.
Fiz meias-voltas, volver,
fiz tudo para entender
a alma daquele tenente:
estava sempre engomado,
limitava-se ao comando,
nunca nenhuma palavra
de gratuita convivência.
Às vezes vinha a cavalo,
solene e só, silencioso
na altura do seu desprezo.
Foi o ser mais solitário,
o mais feroz que eu já vi.
Aqui tenho o documento.
Reservista. De segunda,
como convém, se convém.
Reservista é casado,
brasileiro do Amazonas.
De eleitor, além do título
— que de repente se ameaça
de nenhuma serventia —
guardo a alegria de sempre
ter escolhido sozinho,
mas guardo a pena de nunca
ter dado o amor do meu voto
a um homem do povo e ao povo
num homem: assim como Arraes.
A profissão é a de poeta
ou de empinador de papagaios
o que vem a dar no mesmo.
Podia dar outros títulos
que me deram para usar
nos meus trabalhos de vida.
Mas cara a cara, defronte
do espelho enxuto, a poesia
mais que ofício é contingência
da minha vida de homem.
Nem por isso tenho muito
para o final deste rol.
Algumas canções de rua,
mas as moças se esqueceram,
umas canções de acalanto,
que uns meninos ainda sabem.
O resto é a literatura:
oito livros publicados,
dos quais, tirante os cantares,
uns de amigo, outros de amor
- tudo o mais são geometrias
perguntando pelo ser.
Pois deixei de perguntar
e o ser vai muito bem,
vai sendo simplesmente
o que é, sem se indagar,
tratando de ser bom,
de ser também um pouco
para os outros que vão
sendo ao lado o que são;
o ser vai trabalhando
para que todos sejam
capazes da alegria
que deve ser geral.
Deixando o ser livre limpo,
chegaram os cantos que eu amo.
De todos os que mais valem,
são os poemas sobre a rosa
na parede da prisão,
é a canção da rebeldia
dos fonemas da alegria,
é o canto companheiro
chegando do ao coração,
é a toada pro menino
que vai levando o pendão.
Por isso estou aqui com a minha vida,
na cordilheira longe do meu povo,
do qual jamais tão perto estive tanto.
Cidadão brasileiro,
natural do Amazonas,
39 anos, casado,
eleitor e reservista,
pai de dois filhos e poeta,
que ficou desempregado.
Nunca no entanto tive tanto trabalho,
trabalho o tempo inteiro e não me canso
porque trabalho cantando
na construção da manhã:
manhã geral de amor que vai chegar.
Santiago do Chile,
31 de março de 1965
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).
4.a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira