Compartilho texto do Facebook de Alexandre Valadares. A escolha do título e a seleção da foto que ilustra o texto foram feitas por mim, sem consultar o autor do texto. Vale a leitura atenta.
Paulo Martins
A seguir, o texto de Alexandre.
Comecei faz pouco tempo, como atividade recreativa, a seguir mais frequentemente as discussões nos sites de direita e, embora lamente consagrar a essa tarefa aborrecida uma parte preciosa da minha insônia, hoje estou convencido de que se trata de um masoquismo necessário. Tem circulado por aí notícias sobre a inimizade crescente entre os principais intelectuais orgânicos da direita – opondo, por exemplo, olavo de carvalho a reinaldo azevedo e rodrigo constantino –, e creio que é plausível presumir que o objeto em disputa, que eles afirmam não cobiçar, é a direção espiritual da militância de direita, sobretudo da juventude, organizada em movimentos como o mbl e o vem pra rua.
À superfície esse antagonismo se faz passar todavia por uma divergência teórica, que supostamente dividiria liberais e conservadores, estes mais devotados à figura de olavo, aqueles alinhados à turma da veja. Não me parece supérfluo sublinhar que, no contexto socioeconômico brasileiro, tal distinção não representa qualquer implicação prática. O liberalismo, aqui, é apenas uma defesa dissimulada, mais ou menos consciente, do imobilismo e da conservação da hierarquia social que nos caracteriza: as desigualdades de patrimônio, renda e oportunidades entre nós são tão profundas e a disparidade das condições de “competição” tão acentuadas que é praticamente impossível que a “livre corrida dos talentos” produza outro resultado senão a continuidade do mesmo.
A “meritocracia” funciona menos como um mecanismo legítimo de ascensão social que como uma justificativa ideológica para casos excepcionais de indivíduos pobres que, partindo de patamares desfavoráveis, alcançam notáveis êxitos profissionais – e cujas histórias de vida, em vez de serem apresentadas como exceção à regra geral, são generalizadas como exemplo da regra de que todos podem chegar lá. Do ponto de vista liberal, a trajetória das pessoas não tem qualquer relação com seu lugar de partida – expressão da desigualdade de condições materiais –, mas apenas com sua vontade – expressão da igualdade formal ou da desigualdade natural dos indivíduos. As analogias com a narrativa da superação individual no esporte e a promoção de personagens como fernando holiday são recursos ideológicos importantes para a naturalização dessa visão de mundo. (O caso de holiday me faz lembrar a estratégia da política externa norte-americana na Guerra Fria de investir maciçamente em países vizinhos de estados comunistas a fim de promover o capitalismo por contraste).
A militância do mbl e do vem pra rua cresce em torno da propaganda difusa desses valores liberais, mas sua forma de atuação é definitivamente pró-conservação. Esses movimentos sabem, de resto, que a distinção entre liberais e conservadores é irrelevante (no contexto socioeconômico brasileiro, repito). Sua razão de ser é destruir a esquerda como campo político, na medida em que esta tarefa é, da perspectiva da luta ideológica, anterior em relação às suas eventuais divergências teóricas (Aliás, um exemplo interessante para movimentos de esquerda que, não raro, se concentram mais nessas divergências fratricidas que na compreensão de sua posição no campo político, contrariando a máxima segundo a qual a política é a arte de escolher seus inimigos).
O que iguala o mbl e o vem pra rua é menos sua militância de direita que sua militância antiesquerda. É, a bem da verdade, uma alternativa inteligente, e eu diria que esses movimentos têm criado táticas muito eficazes, especialmente do ponto de vista comunicacional, para atingir seus objetivos. Nessa etapa destrutiva, que serve ao mesmo tempo para atrair simpatizantes, a reverência meio risonha e debochada à figura de bolsonaro, da qual olavo e reinaldo se afastaram, desempenha uma função essencial: o discurso fascista, que atribui as mazelas sociais a um inimigo interno, é eficiente porque identifica uma causa “visível” para os efeitos ampliados e difusos (mas sentidos individualmente) de uma dinâmica socioeconômica que tem produzido aumento da pobreza, desemprego e exclusão. Não me parece uma hipótese absurda sugerir que, nas eleições de 2018, bolsonaro disputará o eleitorado de Lula.
A velha legenda do Segundo Reinado – não há nada mais conservador que um liberal no poder, não há nada mais liberal que um conservador na oposição – faz todo sentido para os tempos que vivemos. Os dois partidos, na longa segunda metade do séc. XIX, se notabilizavam mais por seus consensos – em torno da monarquia e da escravidão – que por suas diferenças. Francisco de Oliveira afirmou certa vez que a elite brasileira usa o atraso como técnica de dominação, e demonstrou seu ponto aludindo às sucessivas leis – do Sexagenário, do Ventre Livre etc. – que, a pretexto de fazer a “transição segura” à ordem social livre, serviam, de fato, ao objetivo estratégico de adiar ao máximo possível a abolição da escravatura.
Guardadas as proporções históricas – aqueles que defendem hoje no congresso a jornada de doze horas de trabalho sem horas extras, a flexibilização de férias e horário de almoço e o fim da lista suja de empresas que exploram trabalho análogo ao escravo certamente reconhecem a Lei Áurea como uma conquista civilizacional –, os liberais e conservadores de nossa época parecem divergir pouco dos seus correligionários do império. E é precisamente sua inveterada defesa comum do atraso, sempre sob o lema da “modernização”, que permite, para efeitos de simplificação de linguagem, chamá-los todos de reacionários.