Um efeito colateral de ser o administrador solitário deste blog é a descrença nas informações veiculadas pela grande mídia e seus “jornalistas amestrados”.
Desde o início deste blog, em 04 de novembro de 2014, venho aprendendo a separar informação e opinião, manipulação e verdade, chute e conhecimento, torcida e fato.
Venho, dia-a-dia, aprendendo ler nas entrelinhas, nas escolhas dos verbos e adjetivos e, com a experiência, já sei quem são os amigos que a grande mídia e seus “jornalistas amestrados” pretendem esconder e proteger e quem são os inimigos – os de sempre e os da vez – que eles pretendem detonar.
Se você me apresentar um fato político ou econômico e os atores envolvidos, eu posso quase adivinhar a linha geral dos comentários dos “jornalistas amestrados” de política, de economia e dos jornalistas “genéricos”, considerados pelos grandes barões da mídia como “paus para todas as obras”.
Esta semana ouvi um desses “jornalistas amestrados” informar que a reforma da previdência no Chile foi um sucesso e que nem Bachelet, presidente eleita pela oposição, queria mexer em algo que estava dando tão certo.
Como acompanho – com uma certa distância, é verdade – os acontecimentos no Chile, onde estive em 2016, sei que se trata de um chute, ou manipulação, ou torcida ou mera opinião, muito comum em jornalistas nacionais que são muito bem pagos para fazerem isto mesmo: venderem um modo de pensar neoliberal, mesmo se sua opinião se choca frontalmente com a realidade.
O advogado chileno Carlos Rivadeneira Martínez escreveu um livro sobre o desastre da reforma da previdência no Chile, intitulado “Aqui se Fabricam Pobres”. No artigo a seguir, Joana Vasconcelos analisa alguns pontos abordados no livro. Trata-se de um contraponto ao que a grande mídia e os seus “jornalistas amestrados” repetem diariamente. Por favor, leia e tire as suas próprias conclusões.
Paulo Martins
‘Aqui se Fabricam Pobres’: a previdência chilena como antimodelo
Joana Salém Vasconcelos, de Santiago do Chile
Publicado em correiocidadania.com.br
18/04/2017
“Aqui se Fabricam Pobres”: esse é o título do livro do advogado Carlos Rivadeneira Martínez, que acaba de ser lançado em Santiago do Chile. Nele, o autor analisa o funcionamento e as consequências sociais do sistema previdenciário chileno, criado pela ditadura e vigente até hoje. Esse sistema tem sido rejeitado massivamente em protestos da cidadania chilena, que no ano passado alcançaram a marca de 2 milhões de pessoas convocadas pelo movimento No + AFP. As AFP (Administradoras de Fundos de Pensões) são empresas privadas que recebem 10% do salário de todos os chilenos para gerenciar suas aposentadorias no mercado financeiro.
Nos últimos tempos, brasileiros e chilenos foram às ruas por motivações parecidas: defender o direito a uma aposentadoria pública e digna para todos os cidadãos. Enquanto os brasileiros buscam barrar a Reforma da Previdência do governo Temer, os chilenos rejeitam o sistema de aposentadorias do seu país, que é totalmente privado.
Para Rivadeneira, as AFP se converteram em “fábricas de pobres”. Segundo uma pesquisa da Faculdade de Administração e Economia da Universidade de Santiago do Chile, 60% dos chilenos são favoráveis à substituição do atual sistema por uma previdência pública e solidária, enquanto 22% defendem a criação de uma previdência estatal complementar e apenas 5% consideram o atual sistema “apropriado”.
Nesse cenário, tudo indica que brasileiros e chilenos estejam vivendo distintos momentos da mesma luta. A coincidência fortalece a tese de que o Brasil estaria sendo submetido a um novo ciclo histórico da chamada “doutrina do choque”. Tal como analisado por Naomi Klein, trata-se de uma espécie de blitzkrieg econômica, com pacotes de reformas pró-mercado impostos simultaneamente e a uma velocidade incompatível com o sistema democrático. Estaria o governo brasileiro inspirado pelo modus operandi econômico de Augusto Pinochet? Nessas circunstâncias, o que nós, brasileiros, podemos aprender com o sistema previdenciário chileno?
Como funciona a previdência chilena?
O atual sistema de pensões chileno foi formulado em 1981 por José Piñera, ministro do trabalho de Pinochet e irmão do ex-presidente Sebastián Piñera. Junto com a Reforma Laboral de 1979, foi o carro chefe da “doutrina do choque” aplicada ao país pelos Chicago Boys, no condensado período de três anos. Desde então o sistema não sofreu modificações, apenas alguns ajustes que não alteraram sua estrutura original. Em que consiste o sistema das AFP?
Primeiramente, todos os chilenos são obrigados a entregar 10% do seu salário para uma empresa privada (AFP), além de arcar com uma taxa de serviço que varia em torno da média de 1,9%. No início, eram mais de 20 AFP, incluindo companhias de capital nacional e estrangeiro. Passadas três décadas de falências, fusões e aquisições, hoje restam somente seis: a Habitat (com 27% do mercado); a Provida (26%); a Cuprum (20%); a Capital (20%); a PlanVital (3,5%); e a Modelo (3,5%), segundo dados da Superintendência de Pensões.
O dinheiro que os chilenos entregam às AFP é automaticamente investido no mercado de capitais. Segundo a Superintendência de Pensões, em agosto de 2016 o total de clientes das AFP chegou a 10.138.374 pessoas, que devem optar entre cinco modalidades de investimento (A, B, C, D, E). As modalidades implicam em diferentes riscos financeiros. Em outras palavras, cada assalariado chileno é obrigado por lei a entregar seu dinheiro para seis empresas especularem no mercado financeiro.
Foi dessa forma que o sistema previdenciário chileno deu origem a um robusto mercado de capitais, antes inexistente no país. Mais que isso, estruturou um negócio seguro e barato ao empresariado das AFP, já que a injeção de dinheiro novo é garantida e a massa assalariada do país foi amarrada na base de sustentação do sistema.
Previdência e mercado financeiro
E o que acontece quando os mercados geram rendimentos negativos? Alicerçados na ideologia liberal, segundo a qual cada cliente “escolheu livremente” seu nível de risco, quem deve arcar com as consequências dessa escolha são os próprios aposentados. Ou seja, rendimentos negativos significam redução do valor das aposentadorias. As AFP não se comprometem com nenhum limite mínimo para o valor das pensões e, portanto, uma bolha especulativa pode arruinar a aposentadoria de uma geração inteira de trabalhadores.
Outra característica importante é que, à diferença do Brasil, o empregador não contribui com a aposentadoria do seu empregado. O aporte individual de cada assalariado será a única fonte para seu futuro, submetido a cálculos tecnicamente controlados pelas AFP. Isso porque a essência do sistema é individualista e reprodutora de desigualdades. A trajetória individual vai determinar o valor da pensão. Ou, como dizem os chilenos, “cada quien se rasca con sus uñas”.
No Brasil, ao contrário, o INSS ainda se fundamenta em um “sistema solidário”: além dos patrões também contribuírem obrigatoriamente, os assalariados do presente financiam os atuais aposentados e serão sustentados pelos assalariados do futuro. Com a atual reforma da previdência, contudo, a aposentadoria pública brasileira receberá um “choque” destrutivo de dimensões aterradoras. Não podemos esquecer que o sentido geral da proposta de Temer foi inaugurado no primeiro governo Lula. Aliás, é significativo que a reforma da previdência de Lula tenha sido o primeiro pacote de lealdade entregue pelo PT aos mercados financeiros em 2003, o que motivou a ruptura dos parlamentares fundadores do PSOL.
A deterioração contínua do INSS abrirá espaço para que a previdência privada se fortaleça. Se até agora o PT contribuiu para o discurso da “solução complementar”, estamos caminhando para a consolidação do discurso da previdência privada como “solução principal”, impulsionada pela ideologia da “liberdade de escolha” dos indivíduos. A realidade chilena, porém, é uma vitrine dos resultados nefastos que esse modelo pode produzir no Brasil.
Previdência privada e pobreza
Como alertou Rivanadeira, “os ideólogos do sistema não reconheceram a seguridade social como ferramenta distribuidora de renda, mas sim a transformaram em um meio de injeção de recursos no mercado”. Não existem alternativas públicas de aposentadoria no Chile e tampouco um valor mínimo que as AFP devem garantir para as pensões. O Estado atua como “variável de ajuste”, como diria o jargão neoliberal. Assim, pensões inferiores a 150 mil pesos (231 dólares) mensais recebem do Estado um complemento de 80 mil (123 dólares). Considerando o custo da cesta básica no país, a 5ª mais cara da América Latina, nos encontramos aqui com a fabricação da pobreza.
Entre os países da OCDE, o Chile é a nação com aposentadorias mais baixas e com a maior desigualdade social. Em 2015, ocupou a 14ª posição na lista de países mais desiguais do mundo. Segundo o Censo de 2011 (Casen), os 5% dos lares mais ricos do Chile ganham 260 vezes mais que os 5% mais pobres. Ao mesmo tempo, o Chile figura como a economia regional que mais cresceu dos anos 1980 até hoje, demonstrando como os “índices de crescimento” podem representar realidades indesejáveis.
O sistema previdenciário chileno é central para explicar esses dados. No ano passado, a média nacional do valor das pensões foi de apenas 207.409 pesos (319 dólares) ao mês. Além disso, segundo a Fundação Sol, atualmente metade dos trabalhadores chilenos ganha salários de 251 mil pesos (386 dólares) ao mês. Em 2013, o conselheiro do Banco Central reconheceu que em média, quase 60% dos chilenos vão se aposentar no futuro com pensões de 150 mil pesos. O que significa que todos os aposentados que puderem, naturalmente, seguirão trabalhando.
A situação é agravada por uma legislação laboral que enfraquece a negociação salarial coletiva e na qual o direito de greve não é efetivo, uma vez que as demissões são certas. No Chile, segundo a Fundação Sol, a cada 10 novos empregos, 7 são “externos”, ou seja, terceirizados e temporários. Além disso, quase 700 mil subempregados tem uma renda média de 86 mil pesos mensais, o que debilita completamente as capacidades desse setor alcançar uma aposentadoria digna.
No outro lado, os lucros das AFP são animadores para os seus donos, alcançando quase 900 milhões de dólares em 2015. Por isso, no ano passado, o movimento No+AFP denunciou que enquanto o lucro das empresas cresceu 9,6% entre 2015 e 2016, a rentabilidade média das pensões foi de apenas 3,34%. Ou seja, a ideia de associar o crescimento das AFP com bem estar de seus afiliados não passa de um mito.