Tim Vickery: As contradições e os bodes expiatórios por trás do revés dos conservadores britânicos
Tim Vickery
Colunista da BBC Brasil*
16 junho 2017
Há quase 40 anos, quando Margaret Thatcher era primeira-ministra da Grã-Bretanha, ela falava muito em “economia de dona de casa”. O bordão era o seguinte: “não podemos continuar gastando mais do que o que ganhamos”.
Mas ela logo criou um programa econômico baseado exatamente no contrário. Em seu governo houve uma explosão de dívida privada (de pessoais físicas e jurídicas).
No século anterior, essa dívida nunca havia superado os 72% do PIB e ficava numa média de 57%. A partir de 1980, o índice iniciou uma subida alucinante, chegando em 2010 ao patamar de quase 200%.
Há duas explicações.
A primeira é que os salários britânicos pararam de crescer. A década de 70 foi o período em que a mão de obra ganhava melhor. Trinta anos de emprego pleno fortaleceram o trabalho contra capital (e explica a inflação no mundo ocidental na época. A única maneira de preservar lucros foi aumentando os preços).
O governo de Thatcher enfrentou os sindicatos, e o capitalismo global começou a deslocar empregos para o mundo em desenvolvimento, onde podia pagar bem menos. Sem aumento de renda, o cidadão precisou, então, buscar crédito.
Ao mesmo tempo, houve um aumento expressivo na oferta do crédito, consequência do desenvolvimento mais importante desses anos – a desregulamentação do setor financeiro.
Colunista fala das mudanças na regulamentação financeira iniciadas no governo da ex-premiê britânica
Foi uma política seguida depois com entusiasmo também pelo governo trabalhista de Tony Blair. Numa frase que ficou famosa, um de seus aliados mais importantes (Peter Mandelson) declarou que “economicamente, somos todos thatcheristas agora”. A ideia era que, deixando o setor financeiro fazer o que bem quisesse, se geraria dinheiro de impostos para custear os serviços públicos.
O modelo tem um problema óbvio. O setor financeiro pode ser um bom servo, mas é um péssimo mestre.
Bancos lucram com a criação de endividamento. O sonho deles é transformar todo mundo num escravo vitalício de dívida, proporcionando-lhes uma renda eterna. Uma vez que foram removidas as regulamentações que os limitavam, os bancos fizeram a festa.
Tem um velho ditado no setor que diz: não empreste dinheiro para pessoas que realmente precisam dele. Aí você não corre riscos.
O problema é que emprestar para quem precisa é – pelo menos no curto prazo – muito lucrativo. Pode-se cobrar pelo risco e ganhar mais. Até, é claro, a casa cair. Porque chega num ponto em que a dívida se torna impagável, e é quando ocorrem os calotes em massa. É a história do colapso financeiro de 2008.
Aí o Estado passou quantidades enormes de dinheiro para sustentar o setor financeiro. Foi – ou deveria ter sido – o fim do argumento de que não existe uma fábrica de dinheiro para custear investimentos em educação ou infraestrutura.
Mas em vez de identificar a fonte do problema – a expansão desenfreada de crédito conduziu também a uma crise da dívida privada -, o governo britânico tentou olhar na outra direção. A grande dor de cabeça, argumentava, era a dívida do governo, ou seja, a grana que tinha sido transferida do Estado para os bancos para salvá-los da sua própria ganância.
A solução, então, era cortar o orçamento e reduzir serviços públicos.
A politica tem sido malsucedida por onde se aplica. Não apenas não resolve a questão do endividamento estatal, pois reduz o tamanho da economia, como mantém as pessoas afundando em dívida, especialmente para pagar moradia.
Tanto Cameron quanto May convocaram pleitos dos quais pretendiam sair fortalecidos, mas perderam
Tudo isso explica a crise que se abriu no Partido Conservador, que governa o Reino Unido desde 2010. Porque, nesse cenário, o governo tem pouca coisa positiva para oferecer. E é óbvio o que vem depois: é preciso buscar um bode expiatório.
Há, inevitavelmente, uma coalizão de contradições no Reino Unido: de um lado os interesses dos grandes empresários. De outro, a força do patriotismo popular. É uma aliança às vezes desconfortável, em que o divisor de águas tem sido a participação do país na União Europeia.
Os empresários querem acesso ilimitado ao mercado europeu. Os nacionalistas detestam a perda da soberania e as suas consequências. Complicações em torno disso haviam minado Thatcher, derrubada em 1990 por uma rebelião interna.
A questão veio à tona novamente nos últimos anos, com divisões ainda mais fortes. A ala nacionalista do partido posicionou radicalmente contra a UE, principalmente por causa da quantidade de imigrantes do leste do continente com direito a entrar no Reino Unido – bodes expiatórios convenientes.
Eis que, no ano passado, o então premiê e líder dos conservadores David Cameron convocou um plebiscito abrindo a possibilidade de saída da UE. Cameron queria manter o país na União Europeia e apostou, contra a ala nacionalista, que os eleitores britânicos votariam com ele. Perdeu, se demitiu.
Foi substituído por Theresa May, renascida como uma nacionalista, que convocou uma eleição antecipada e desnecessária na expectativa de melhorar sua posição nas negociações para sair da UE. Apostou, perdeu a sua maioria no Parlamento e se encontra com o cargo ameaçado.
Só convocou a eleição porque tinha a certeza da vitória, que não aconteceu. Durante a campanha, a sua liderança nas pesquisas evaporou – pesou a falta de uma agenda positiva. E May enfrentou uma oposição que, pela primeira vez em muito tempo, rompeu com a dominância do setor financeiro, mas isso é uma outra história…
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.