Compartilho artigo de Alexande Valadares
Paulo Martins
Após a eleição de trump nos EUA, circulou pela internet um artigo de Nancy Fraser que assinalava esse triunfo desconcertante como o fim da era do “neoliberalismo progressista”. A autora definia essa tendência política – iniciada com clinton – como produto de uma aliança entre, de um lado, setores do alto empresariado ligado ao capital financeiro (wall street) e “simbólico” (hollywood) e, de outro, forças políticas progressistas (movimentos antirracistas, femininstas, multiculturalistas).
Empunhadas por esses movimentos, as bandeiras do empoderamento de minorias e da não-discriminação conferiram, acidentalmente, um verniz “moderno” à crescente dominação do capital financeiro sobre a economia norte-americana, um processo que devastou tradicionais redutos industriais do país, destruiu milhões de empregos de classe média e instalou uma forma contemporânea de capitalismo marcada pelo trabalho precário, pela desregulação do mercado e por uma austeridade fiscal que reduziu o papel social do Estado. Ao mesmo tempo, aponta Fraser, um discurso de matiz progressista, que enaltecia os exemplos individuais de sucesso a partir de uma lógica meritocrática, disseminava a ideia de que a “emancipação” política se realizava por meio da ascensão de mulheres, gays e negros “talentosos” na hierarquia social, construindo uma espécie de consenso espontâneo em torno do liberalismo de mercado como um sistema capaz de promover justiça social.
Embora as estatísticas ainda mostrassem, por exemplo, que, na média, mulheres e negros viviam e trabalhavam em condições mais desvantajosas que homens brancos, uma florescente variedade de filmes e programas de tv dedicados a romantizar as trajetórias pessoais daqueles que “tiveram uma chance e não a desperdiçaram” seguia iluminando as exceções do sistema como se fossem casos comuns e reiterando a visão de mundo segundo a qual cada indivíduo é responsável por sua própria condição. Assim, o que parecia uma celebração cultural da diversidade não deixava de ser uma homenagem ao Indivíduo; do mesmo modo, a defesa da liberdade como valor absoluto era subliminarmente uma defesa da liberdade mercantil, da liberdade de cada um para ser o que quiser, desde que aceite as regras do jogo do capitalismo e possa pagar por isso.
O “neoliberalismo progressista” que, para Fraser, morreu com a eleição de trump nos EUA parece querer renascer em terras brasileiras. Não me refiro só à tática neoliberal de representar as “reformas” econômicas como sopro de “modernização” capaz de criar novas oportunidades “emancipatórias”, mas, sobretudo, à estratégia pela qual certa direita “progressista” tenta agora se diferenciar dos conservadores. Veículos e colunistas da grande mídia que, alimentando um discurso conservador, denuncista e pró-mercado para desestabilizar os governos petistas, formaram ao longo da última década uma jovem e radical militância de direita, têm desde o início do ano assumido um tom moderado, mais “lúcido”, em relação a programas que atacavam violentamente até pouco tempo atrás.
Na primeira semana de abril, por exemplo, a veja publicou o artigo “Mais Médicos: o tempo da sensatez”, elogiando a iniciativa de temer de manter um programa que, afinal de contas, funcionava bem; em 12 de agosto, a revista divulgou a reportagem “Cotas? Melhor tê-las”, defendendo os êxitos das politicas de ações afirmativas nas universidades (que, aliás, já eram conhecidos há anos). Essas matérias não atendiam apenas ao objetivo de convidar o público da revista a assumir posição mais moderada, “esclarecida”, nos debates sociais: o essencial era, após a consolidação do golpe, transmitir a ideia de que a revista (logo, seus leitores) não se movia por paixões ideológicas, mas somente pelo desejo de informar. A capa que, semanas atrás, a veja deu a bolsonaro, retratando-o como uma ameaça, é o complemento dessa estratégia.
A globo, por sua vez, atua em duas frentes. No jornalismo, sustenta contra temer o discurso anticorrupção, acumulando denúncia sobre denúncia para, agora, retratar toda a política partidária como uma prática intrinsecamente corrupta. Na grade de entretenimento, a emissora parece disposta, agora, a promover valores identificados com a diversidade e a expressão de minorias (antes, suprimidos de sua programação, a pretexto de não ofender a família brasileira nem criar divisões sociais em um país tão unido). O apelo à tolerância e o direito à diferença passaram a ser a tônica moral da programação.
No campo partidário, por vocação natural, o psdb tem assumido o discurso do neoliberalismo progressista: fhc e alckmin têm dado sucessivas declarações em favor da pacificação do debate político e, mesmo, reivindicado certa tradição de esquerda como um traço genético do partido. Em suas diretrizes principais, porém, o projeto político do neoliberalismo progressista e o projeto conservador representado por bolsonaro se parecem mais que se distinguem: ambos são privatistas e entreguistas, ambos são a favor da desregulação do mercado de trabalho e da redução do papel do Estado, ambos são punitivistas. O que tem feito a grande mídia e o setor financeiro do qual ela é porta-voz tender em favor do neoliberalismo progressista do psdb é a necessidade de desradicalizar o ambiente político para garantir que as reformas liberalizantes do governo temer possam prosperar em uma atmosfera mais estável.
O crescimento da extrema direita no cenário eleitoral se opõe a esse projeto, mas, ao mesmo tempo, permite ao neoliberalismo progressista projetar-se como uma opção “moderada” diante dos riscos imprevisíveis de um governo francamente autoritário.