Não é um texto escrito e revisado pelo autor, André Perfeito. É apenas uma reflexão, com dúvidas e questionamentos, que ele gentilmente dividiu com seus leitores na rede social. Compartilho porque acho fundamental discutirmos para que buraco negro um ganancioso e desregulado sistema financeiro internacional poderá levar pessoas e nações. Ou seria a semente da autodestruição do capitalismo tal como conhecemos, com a criação de outra forma de relacionamento financeiro ainda mais destrutiva, uma espécie de metástase?
Paulo Martins
Sobre bitcoin e Marx: uma aproximação.
O assunto se espalhou feito rastilho de pólvora e não me vejo em entrevista que seja nestas últimas semanas sem ter que tecer opinões sobre se bitcoin é uma bolha ou não. Não me dava com o assunto e dei de ombros com os que afirmavam que bitcoin era uma moeda: não, bitcoin é muita coisa, menos uma moeda no sentido estrito da palavra. Ela não é meio de conta, nem reserva de valor e é meio de troca não por ela, mas pela tecnologia de blockchain que ela representa.
Mas hoje um frio na espinha me correu, destes que deixam aguçados os instintos intelectuais ao perceber algo mais sutil no sorriso imóvel da cotação na tela. Vi no Twitter, e repliquei aqui no meu facebook, que a valorização do bitcoin já superou a maior bolha conhecida pelo homem: a bolha das tulipas do século XVII.
O que está acontecendo com o bitcoin já supera em escala larga os maiores processos de apreciação conhecidos e desde 2011 seu valor subiu mais de 2 milhões porcento.
É algo que não posso ignorar como economista e tenho que formular uma resposta mais bem acabada sobre o assunto do que recomendar bom senso; afinal eu seria um canalha se recomendasse para clientes e para a sociedade um ativo que se valorizou mais de 1700% só este ano. Falo o que o bom senso manda. Quer entrar, entre, mas não me venha pedir conselhos depois.
O frio na espinha foi duplo hoje. Estava conversando hoje com o diretor de câmbio da corretora – que por sinal é cético quanto ao futuro do bitcoin – e ele me informou que o mais provável é que as autoridades econômicas tratem bitcoin como mercadoria e como tal teremos a incidência de ICMS além da legislação pertinente.
Este é um assunto sensível para nós na corretora: não permitimos nem queremos envolver nossa operação em zona cinzenta, o risco pode ser elevado e assim preferimos ficar numa distância calculada.
Mas a palavra “mercadoria” me pegou. Havia ali, neste tratamento jurídico do fenômeno, uma revelação material do que se apresenta como ideia em abstrato.
Já escrevi aqui que sou keynesiano uma vez que que vejo no esforço de Keynes uma contraposição ao autoritarismo que se revelava na Europa Continental durante a Segunda Grande Guerra. Mantenho essa posição, mas também disse que a caixa de ferramentas de um economista tem que ter mais que uma ferramenta e não posso negar que o marxismo me permite entender com maior precisão o que é o bitcoin que a teoria ortodoxa (que uso muito) ou mesmo a teoria keynesiana (que uso todo o dia).
O frio na espinha é o que segue….
Para Marx o dinheiro é uma mercadoria, uma mercadoria especial sem dúvida, mas uma mercadoria que contém sua especialidade em poder de maneira fetichista informar o quanto de cada uma se expressa em outra.
Se todos sabemos o valor, por exemplo do ouro, posso relativizar um cafezinho em proporção de um carro ao media-la pelo ouro. De tempos em tempos as mercadorias elegem uma em especial para fazer a função de “tradutor universal” (este é o conceito de fetiche em Marx, de algo que faz as vezes de substituir o fundamental por alguma mediação; tal qual uma cinta liga ou um espartilho estão ao serviço de excitar uma vez que a cinta liga e o espartilho apenas mediam o sexo propriamente, a vulva, o corpo).
Se o bitcoin é uma mercadoria isto implica dizer que ela pode virar também uma moeda, afinal toda mercadoria o é. Para explicar esse ponto faço uma pequena digressão: se eu produzo lápis e estoco estes eu sei que tenho, naquele estoque, dinheiro em potencial, só produzo lápis porque para mim é “mais fácil” fazer lápis do que canivetes, logo toda mercadoria é, neste sentido, dinheiro também.
Para Marx o valor de uma mercadoria está ligado ao quanto de trabalho que nela é incorporado. A única substância que exprime o real valor é a quantidade de trabalho necessário a sua produção.
Vamos supor que se demore três dias para caçar uma onça e vamos supor que se demore um dia para caçar uma capivara. O lógico – o fetiche – é que se troque uma onça por três capivaras num mercado equilibrado.
A questão que se impõe aqui é que o valor de um bitcoin é que, no sentido do valor, ele tende à zero. São computadores criando códigos atras de códigos. Não há em tese mão de obra “nova” no processo (fora o gasto significativo de energia elétrica, mas isso deixo pra depois).
Dito de maneira marxista a composição orgânica dessa mercadoria bitcoin é infinita uma vez que o capital constante (c) é infinitamente maior que o capital variável (v). Isso só pode acontecer uma vez que um computador é, de forma absoluta e relativa, todo o acúmulo de capital até hoje na forma de capital constante.
Chegamos assim ao segundo frio na espinha.
Uma tulipa é uma tulipa afinal…
Uma tulipa é algo material, visível e até útil. Já uma linha de zeros e uns? O que é?
Marx apontava que a produção de mais-valia (que se expressa em parte na composição orgânica que apontei acima) é a parte desagradável da tarefa do capitalista. Se este pudesse faria dinheiro do ar como no mais fez como vimos na cara durante a crise subprime.
Meu espanto, meu maior temor é que talvez o bitcoin não seja uma bolha, mas antes a mercadoria absoluta, a mercadoria “perfeita”, sem um dono humano, a mercadoria que desafia e pode destruir os estados nacionais ao criar algo que escapa todas as convenções sociais organizadas.
O bitcoin pode ser a utopia final do capitalismo: o não lugar e todos os lugares ao mesmo tempo, a mercadoria sem trabalho.
Isso só ocorre porque está evidente que o Dólar encontrou seu limite e a expansão trilionária do balanço do FED: o canto do cisne de uma superpotência que não consegue dar sentido real para a liquidez criada.
O surgimento da inteligência artificial seria um desafio para nós humanos com a internet, com o bitcoin e o blockchain se torna quase intransponível.
Não há um botão mais para desligar a máquina…
(Quem não conhece Marx sugiro que veja esse documentário da BBC)
Obs: O vídeo em referência pode ser encontrado no Youtube, com o título de Masters of Money -3. Conheço este vídeo e