Trabalho infantil e a esperança

Mais uma declaração imbecil do número Zero. Desta vez minimizando os danos causados pelo trabalho infantil. Compartilho, a seguir, texto de Marcelo Medeiros. Eu poderia relatar a realidade de meus primos e primas, fora da escola e jogados na dureza do trabalho infantil ou pré-adolescente. Éramos 14 primos e primas em nosso quintal compartilhado e quase todos começaram a trabalhar cedo. Apenas os que tiveram oportunidade de conciliar trabalho e estudo – somente três de nós – escaparam de um destino cruel e miserável. Foi necessário, nos momentos cruciais, contar com o apoio da família para centrar os esforços no estudo, deixando o trabalho em segundo plano. Não é a realidade da grande maioria dos brasileiros. A erradicação da praga do trabalho infantil deveria ser meta de todo governante inteligente e interessado no bem público. Como explicar isto para o número Zero, este “pôsso” de ignorância?

Paulo Martins

Sobre essa declaração de trabalho infantil, lembro-me de que, aos seis anos, meu padrasto chegou e disse que eu ia trabalhar. Recordo-me que, calado, chorei bem muito à noite na rede puída porque, naquela idade, eu queria mesmo era ver desenhos na TV. Comecei então a vender jornais na rodoviária de Campina Grande aos seis anos. Precisava vir do Bairro das Cidades, passando por debaixo da catraca dos ônibus, ouvindo piadas de cobradores, para a Rodoviária Nova – Terminal Argemiro de Figueiredo. O frio era grande, casaco não havia, mas era preciso chegar cedo. Antes das 5h da manhã, já devia estar lá porque o embarque das 5h, 6h, 7h e às vezes 8h era o que mais tinha passageiros. Logo, se poderia vender mais jornais. O dinheiro obtido era 20% sobre o valor de cada exemplar vendido. Vendi jornal dos 6 aos 17 anos, algo assim. Como minha família se mudou para a Vila Cabral de Santa Terezinha, eu não precisava mais ouvir piadas de cobrador, mas precisava continuar vendendo jornal. Agora, o trajeto era a pé porque morava perto da rodoviária e porque, muitas vezes, era aquele ínfimo “ordenado” que servia para comprar meio quilo de galeto, de arroz, feijão, açúcar – não necessariamente nessa ordem. Aprendi muita coisa sobre isso e a vida como gazeteiro me marcou profundamente. Aprendi a enfrentar o frio, quando o que eu queria era dormir mais um pouco; aprendi a ter raiva da vida que levava porque o que eu queria era poder participar, por exemplo, das aulas de Educação Física e ficar brincando mais um pouco, mas as aulas eram pela manhã e eu tinha de correr para vender jornal no embarque de 5h, 6h e 7h, voltar a correr para ir em casa e disparar para a escola, pois as aulas de educação física eram às 8h. Se eu pudesse escolher, escolheria ter tido outra infância. Uma infância com mais riso e menos fome. Com mais amigos e menos responsabilidades. Com mais sonhos e menos angústias, medo e falta de esperança. Eu escolheria poder ter tido escolha porque naquela época não havia escolha alguma. Era colocar o jornal debaixo do braço e contar com a sorte para que os compradores aparecessem e eu pudesse ganhar algumas moedas. Nasci quase no final da ditadura, cresci e vivi a minha infância toda entre o governo de Sarney, Color, Itamar Franco e FHC e assim como muitos de minha geração permanecemos vivos por insistência, teimosia. Por isso, não romantizem a miséria. Afinal, com raríssimas exceções, ninguém trabalha porque quer. Trabalha porque precisa. E quando o trabalhador é uma criança, esta está sendo duplamente explorada: na força de seu trabalho e nos sonhos que lhe estão sendo tolhidos. Lugar de criança é na escola! Isso não é clichê. Deveria ser projeto de nação. Somente com uma população com educação e com comida à mesa é que esse país pode se desenvolver, mas esse sonho voltou a ser enterrado nas urnas de 2018. Ainda assim, há esperança, mesmo agrilhoada. E ela não é verde. Ela ainda é vermelha!

Marcelo Medeiros, prof da UEPB

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