“Auto-emprego”: morrer de trabalhar aos 33 anos …

Artigo de Fernando Almeida, publicado no Facebook.

O título é minha responsabilidade.

Na semana passada, um motoboy a serviço de um desses aplicativos de entrega sofreu um AVC quando levava uma encomenda ao bairro de Perdizes, em São Paulo. Um motorista do uber, acionado para levar o rapaz de 33 anos a um hospital, se recusou a transportá-lo quando viu que ele tinha urinado nas próprias roupas. Antes disso, a empresa do aplicativo, consultada pela cliente que havia solicitado a entrega, limitou-se a orientá-la a dar baixa no pedido. O entregador morreu no hospital, depois de esperar quase duas horas por uma ambulância do SAMU. A médica que o atendeu disse que o frio da noite paulistana havia acentuado a gravidade do quadro. Familiares disseram que o rapaz trabalhava doze horas por dia, de segunda a segunda.

Esse episódio terrível ilustra muitos aspectos do momento social e político em que entramos. As pessoas evitam sair de casa porque as cidades grandes se tornaram intransitáveis e perigosas ou porque o cotidiano embrutecido que vivemos nos faz preferir a segurança da distância e da impessoalidade (o “conforto”) a qualquer forma de interação humana que se dê fora das pequenas cidadelas privadas (condomínios, academias, escritórios) em que nos refugiamos contra o inferno hobbesiano da via pública. A tecnologia cria novas formas de trabalho precário, intensificando a jornada dos trabalhadores até o nível da autoexploração, numa interminável maratona pela sobrevivência.

Trabalhar “para si mesmo” sem folga, sem férias, sem proteção social contra os riscos de sua atividade não é uma expressão da liberdade de escolha do trabalhador, de uma “autonomia” do trabalho criada pela tecnologia dos aplicativos digitais: é um sintoma da sua desfiliação, do seu isolamento frente a um regime econômico que, em vez de substituir a mão de obra humana pela tecnologia e liberar as pessoas do trabalho, parece antes substituir os empregadores pela tecnologia no controle direto da força de trabalho. Os empregadores em carne e osso ou mesmo as empresas com suas instalações físicas desapareceram: o patrão é o capital. Ninguém “escolhe” trabalhar e, portanto, ninguém escolhe as condições sob as quais trabalha se delas depende algo absolutamente inegociável como a própria vida.

A glamourização da autoexploração como “empreendedorismo” dissimula o caráter extremo dessa estratégia de “gestão” de curto prazo da sobrevivência. A massificação do acesso a celulares não é o avanço tecnológico que permitiu aos trabalhadores se tornarem autônomos, livres das “amarras” contratuais das relações formais de assalariamento: foi justamente aquilo que permitiu reduzir, para o capital, os custos da exploração do trabalho (de vigilância, de aferição de produtividade etc.), de tal modo que esta passou a prescindir da relação de assalariamento formal para se intensificar. Sujeitos a maior instabilidade e mais expostos ao desemprego, os trabalhadores assumem maiores riscos por uma remuneração menor.

Chico de Oliveira, sociólogo brasileiro morto também na semana passada, formulou, no ensaio “Crítica à razão dualista”, a tese segundo a qual a grande questão da “modernidade tardia”, entre nós, não era, como colocavam seus predecessores, a “superação do atraso”, mas, sim, o fato de que, aqui, a consolidação do capitalismo ocorrera pela introdução de relações novas no arcaico e pela reprodução de relações arcaicas no novo. O arcaico estrutura a forma sob a qual o novo é apropriado socialmente, o novo se expande por meio de relações arcaicas. Uma cadeia produtiva altamente tecnologizada, como o agronegócio, cujos produtos são negociados nas bolsas de valores internacionais, emprega mão de obra precária, às vezes em condições análogas à escravidão. Um aplicativo digital que, funcionando com comunicação por satélite, permite aos clientes receber em poucos minutos suas encomendas em casa usa jovens de bicicleta com mochila nas costas para realizar as entregas.

Sem equipamentos de proteção individual, sem jornadas definidas com remuneração garantida, sem proteção social contra acidentes, sem férias nem folgas, sem um contrato formal que assegure um rol mínimo de direitos: as condições de trabalho dos entregadores dos aplicativos digitais remontam ao séc. XIX. Se, do lado do capital, a tecnologia da entrega por aplicativos é o que há de mais moderno na era pós-industrial, do lado do trabalho a “máquina” que os entregadores pedalam ainda é movida a tração humana.

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