Prender para prender

Compartilho texto publicado por Flavio Antônio da Cruz – juiz de Direito e professor – em sua página no Facebook. O título é responsabilidade minha.

19.10.2019

Paulom

1 – Há muitos mitos sobre o papel do Direito e do Estado. Há muitos mitos sobre a função do Direito Penal e sobre o tal do “saldo negativo de violência”. Mas, não tratarei deles aqui.

2 – Nosso Código de Processo Penal, de 1941, foi inspirado em uma tradição fascista, consolidada com o Código Rocco de 1930.

3 – Com a sua redação original, havia uma distinção entre o regime de liberdades assegurado aos suspeitos/acusados, conforme o grau da suspeita ou da acusação.

4 – Por exemplo, quando preso em alegado flagrante delito, o sujeito poderia responder solto, se a suposta infração fosse leve; poderia responder em liberdade, desde que pagasse fiança, se a infração fosse média; e teria que responder ao processo preso, se a infração fosse inafiançável.

5 – Ademais, ainda segundo a lógica do CPP/1941, os direitos do acusado eram restringidos de modo automático, na medida em que o processo avançasse para determinadas etapas. Ele era recolhido à prisão, quando pronunciado; tinha que recolher-se à prisão para poder apelar de sentença condenatória. Então, diante desse sistema, a execução provisória da pena era uma consequência inexorável.

6 – O ponto é que não havia, então, maior distinção – na prática processual penal – entre prisão para punir e prisão cautelar. Havia efetiva antecipação de pena no curso do processo.

7 – Mas, sobreveio a lei Fleury – Lei 5.941/1973 – passando a admitir a liberdade provisória para quem, ainda que suspeito/acusado da prática de crimes inafiançáveis, tivesse residência fixa, ocupação lícita e não estivesse em vias de fugir etc. Essa lei alterou os arts. 408, 474, 594 e 596, CPP.

8 – Com isso, surgia uma situação estranha, dado que se condicionava a liberdade de alguém ao recolhimento de fiança, quando se tratasse de suspeita da prática de crimes de média gravidade. Ao mesmo tempo, se possibilitava tal liberdade, quando em causa a desconfiança da prática de crimes mais graves, mesmo sem o recolhimento de fiança.

9 – Note-se também que a liberdade era chamada de “provisória”, pelo fato de haver a percepção de que o sistema levaria, de um modo quase inexorável, à condenação do suspeito. A liberdade concedida seria revogada, logo adiante.

10 – Mas, sobreveio a Constituição de 1988… E tentou-se constitucionalizar o processo. A prisão automática decorrente de pronúncia foi reputada inválida; também foi reconhecida a inconstitucionalidade da prisão para recorrer… Passou-se a exigir a presença de requisitos cautelares para a decretação da prisão no curso do processo ou da apuração.

11 – Claro que remanesceram, a despeito disso, prisões automáticas ou manutenções automáticas de prisões, a exemplo da inafiançabilidade da suspeita da prática de tráfico de drogas, com apreensão em cogitado flagrante (havendo debates, ainda hoje, sobre o alcance do art. 5, XLIII, CF). E é claro que a prática não foi tão constitucionalizada assim, ao contrário do discurso processual penal.

12 – Mas, por essencial, é indispensável tomar em conta essa premissa: há uma fundamental distinção entre prisão ad custodiam e prisão ad poenam. A prisão ad custodiam tem a função de garantir o próprio processo ou – em casos excepcionais – de servir como mecanismo inibitório (prisão para impedir crimes que estejam na iminência de acontecer), com todos os debates existentes a respeito da categoria “defesa da ordem pública”.

13 – Mas, dado que o cotidiano não havia sido efetivamente constitucionalizado, dado o punitivismo – de direita e de esquerda -, dados também o protagonismo e o ativismo judicial, o pêndulo passou a regredir.

14 – Caminhamos, pouco a pouco, para o sistema anterior… Aquele mesmo que limita o respeito ao estado de inocência a uma pretensa “presunção de não culpabilidade” (algo bem distinto, e que encontrou anteparo na obra do fascista Vincenzo Manzini).

15 – Ainda hoje há “juristas” que não atinam com a diferença entre prender para acautelar e prender para executar pena. Outros simplesmente desconsideram a Constituição, como se não constituísse. Há também aqueles que querem funcionar como criadores de dicionários, atribuindo às palavras sentidos que o uso coletivo não alberga.

16 – Assim, passa-se à prisão automática, sem exame de imprescindibilidade cautelar. Volta-se, pouco a pouco, à prisão automática decorrente da pronúncia; prisão para apelar e prisão conforme o grau da suspeita. Rocco ainda dormita no espírito de muita gente.

17 – Claro… diante de um cotidiano violento, tingido de sangue, há quem pense que esse retorno a Rocco seja promessa de um sistema “efetivo”, que combaterá o mal e fará o bem reluzir “de novo” (aquela idealização tacanha do passado…). Vá lá. Há muita violência mesmo… infelizmente. Há quem mate por simplesmente não gostar da cor da camiseta da vítima.

18 – Todavia, o ponto é que o Direito Penal não é emplasto universal. E não podemos ser como Brás Cubas, procurando soluções metafísicas para problemas que são sociais. O Direito Penal cumpre qual função em sociedades de modernidade tardia? Essa é a pergunta importante… mas, disse que não iria tratar de mitos de fundação aqui.

É isso.

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