Um passo além da banalidade do mal, por Eliane Brum

Peço uma espécie de licença poética à filósofa Hannah Arendt, para brincar com o conceito complexo que ela tão brilhantemente criou e chamar esse passo a mais de “a boçalidade do mal”. Não banalidade, mas boçalidade mesmo.
Arendt, para quem não lembra, alcançou “a banalidade do mal” ao testemunhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, e perceber que ele não era um monstro com um cérebro deformado, nem demonstrava um ódio pessoal e profundo pelos judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem e de mal. Eichmann era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava apenas ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões de seres humanos.
Eichmann seria só mais um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal se instala na ausência do pensamento.
A boçalidade do mal, uma das explicações possíveis para o atual momento, é um fenômeno gerado pela experiência da internet.
Ou pelo menos ligado a ela.
Desde que as redes sociais abriram a possibilidade de que cada um expressasse livremente, digamos, o seu “eu mais profundo”, a sua “verdade mais intrínseca”, descobrimos a extensão da cloaca humana.
Quebrou-se ali um pilar fundamental da convivência, um que Nelson Rodrigues alertava em uma de suas frases mais agudas:
“Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”.
O que se passou foi que descobrimos não apenas o que cada um faz entre quatro paredes, mas também o que acontece entre as duas orelhas de cada um. Descobrimos o que cada um de fato pensa sem nenhuma mediação ou freio.
E descobrimos que a barbárie íntima e cotidiana sempre esteve lá, aqui, para além do que poderíamos supor, em dimensões da realidade que só a ficção tinha dado conta até então.
Descobrimos, por exemplo, que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades bem educadas no elevador defende o linchamento de homossexuais. E que mesmo os mais comedidos são capazes de exercer sua crueldade e travesti-la de liberdade de expressão.
Nas postagens e comentários das redes sociais, seus autores deixam claro o orgulho do seu ódio e muitas vezes também da sua ignorância.
Com frequência reivindicam uma condição de “cidadãos de bem” como justificativa para cometer todo o tipo de maldade, assim como para exercer com desenvoltura seu racismo, sua coleção de preconceitos e sua abissal intolerância com qualquer diferença.
Foi como um encanto às avessas – ou um desencanto. A imagem devolvida por esse espelho é obscena para além da imaginação.
Ao libertar o indivíduo de suas amarras sociais, o que apareceu era muito pior do que a mais pessimista investigação da alma humana. Como qualquer um que acompanha comentários em sites e postagens nas redes sociais sabe bem, é aterrador o que as pessoas são capazes de dizer para um outro, e, ao fazê-lo, é ainda mais aterrador o que dizem de si. Como o Eichmann de Hannah Arendt, nenhum desses tantos é um tipo de monstro, o que facilitaria tudo, mas apenas ordinariamente humano.
Ainda temos muito a investigar sobre como a internet, uma das poucas coisas que de fato merecem ser chamadas de revolucionárias, transformaram a nossa vida e o nosso modo de pensar e a forma como nos enxergamos.
Mas acho que é subestimado o efeito daquilo que a internet arrancou da humanidade ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras: a ilusão sobre si mesma. Essa ilusão era cara, e cumpria uma função – ou muitas – tanto na expressão individual quanto na coletiva. Acho que aí se escavou um buraco bem fundo, ainda por ser melhor desvendado. (…) Já demos um passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade.”
Eliane Brum, jornalista. Via Jorge Furtado. Via João Lopes.

Indignação do dia, de sempre (revisado)

Este devia ser o blog intitulado “opinião do dia”, onde eu tentaria externar minha opinião sobre o assassinato, o extermínio de vidas, praticado por aqueles que só sabem se impor pela violência. Pelo fuzilamento covarde com AK 47 ou com a utilização malígna da força do Estado, do governo da Indonésia, que vai assassinar, este fim de semana, um ser humano, por mero acaso chamado Marco Archer, por mero acaso brasileiro.

Na opinião de alguns amigos é ruim o blog posicionar-se sobre assuntos tão polêmicos, mas muito pior ainda seria omitir-se.  Eu concordo, em parte.

No caso do assassinato do Marco Archer pela Indonésia e em qualquer outro caso de pena de morte, sou radicalmente contra. O posicionamento é fácil. Tomando a vida como principal valor humano, ao qual todos os demais importantes valores de certa forma se vinculam , é impossível aceitar que qualquer Estado, por mais poderoso que seja, qualquer lei, por mais legal que seja, possa prescrever a execução ou assassinato de um ser humano. Se sacrificar um animal de estimação que está sofrendo muito com dores insuportáveis no fim de sua vida corta nosso coração, imagina a dor pela execução de um ser humano saudável.

A Constituição Federal do Brasil, sabiamente, não aceita a pena de morte. Se um ateu convicto, como eu, abomina a pena de morte por razões humanitárias, como aceitar que cristãos aceitem assassinar pessoas para atender a uma lei específica, de determinado país, votada por Congressistas míopes, em momento de privação de sentidos, de cegueira total?

No caso Charlie Hebdo, a discussão tem que ser mais aprofundada. Tenho lido muito sobre o assunto e ainda não tenho uma posição clara. É muito fácil dar respostas rápidas e simplistas. A primeira coisa que todos deviam evitar é jogar mais lenha na fogueira.

Apelo para Lennon: reproduzo suas músicas “Imagine” e “Give peace a chance” em outro blog. É pouco; vou ter que apelar para o Papa Francisco, em outro blog, que pretendo escrever nos próximos dias. Peço a todos vocês – mais ou menos três pessoas – que acompanham este blog, que aguardem.

Complemento (revisão): embora o assunto do Charlie Hebdo seja complexo, passado algum tempo, depois de refletir, tenho uma posição clara sobre o assunto: não é ilimitado o direito dos meios de comunicação de debochar, injuriar, caluniar ou denegrir a religião de quem quer que seja. Existem formas civilizadas de discutir o assunto e avaliar ou questionar aspectos de religiões que vão contra princípios básicos da dignidade humana.

Por outro lado, é inadmissível e incoerente, para dizer o mínimo, que seja cometida qualquer tipo de violência em nome de uma religião. Massacres coletivos ou assassinatos como aqueles cometidos contra os jornalistas do Charlie Hebdo e contra a população civil em geral são assassinatos, provas de barbárie, situadas nos mais baixos degraus da dignidade humana.

Paulo Martins